Carlos Nougué
O que diz o título deste escrito não supõe um argumento ad
hominem; não visa a desqualificar uma doutrina adversária sem prova, nem
requer do leitor um ato de fé. Absolutamente não é isto. É que, para fazer boa
teologia – coisa de que estão muito distantes os sedevacantistas –, há que
obedecer a um critério fundamental: a analogia da fé. E não se diga
que tal analogia, brandida por Leão XIII na Providentissimus Deus,
se aplica tão somente à interpretação das Sagradas Escrituras. Não: aplica-se
igualmente ao magistério autêntico da Igreja e, quanto ao que nos interessa, a toda
a teologia com respeito ao mesmo magistério. Que porém quer dizer aplicar a
analogia da fé? Simplesmente isto, se se trata da teologia com respeito ao
magistério da Igreja: não se há de defender nada que contrarie o já definido (e
definição supõe infalibilidade) pelo mesmo magistério. Um exemplo:
se alguém quer sustentar que o mundo durará mil anos após a morte do Anticristo
– o que considero ao menos improbabilíssimo –, que o faça, mas sem ferir de
modo algum o já definido pelo magistério: quem até o fim dos tempos reinará
imediatamente na terra será sempre o vigário de Cristo, nunca diretamente
Cristo mesmo, nem o Espírito Santo, nem Maria. Tampouco haverá de negar que o
Demônio continuará durante tais mil anos – se os houver – a ser de algum modo o
príncipe deste mundo, nem que os homens, incluindo os batizados, continuarão a
padecer as sequelas do pecado original: fazê-lo é, uma vez mais, ir contra o
definido pelo magistério da Igreja ao longo do tempo.
Pois bem, o Concílio Vaticano II e o chamado magistério conciliar (e
pós-conciliar) trazem-nos um problema teológico novo, obviamente nunca tratado
pelo magistério autêntico da Igreja: no e após o CVII, o magistério da Igreja
depôs sua autoridade doutrinal em favor de uma soi-disant autoridade
do conjunto do Povo de Deus enquanto tal, o qual seria dotado de um
suposto sensus fidei infalível por si. Diante de tal e tão
terrível novidade, portanto, é legítimo que se dispute em torno de sua solução.
Mas, pela analogia da fé, toda solução quanto a esta questão que contrarie algo
definido pelo magistério da Igreja será não só errada mas ilegítima.
É o caso do sedevacantismo.
Com efeito, definiu o Concílio Vaticano I (D 1825): “Cânon. Se
alguém, pois, disser que não é de instituição de Cristo mesmo, isto é, de
direito divino, que o bem-aventurado Pedro tenha perpétuos sucessores
no primado sobre a Igreja universal [...], seja anátema”. Os sedevacantistas
tentam enganar-se a si mesmos e aos outros pondo que “perpétuos” não quer dizer
“(papas) ininterruptos”, senão que neste cânon só se quis dizer que “o papado
será perpétuo”. Sofisma e novilíngua de quinta categoria, claro. Definiu mais,
todavia, o Concílio Vaticano I: “A perenidade da Hierarquia definiu-a
implicitamente o Concílio Vaticano [I]. Com efeito, definiu explicitamente a
perenidade do Primado (D 1824s). É assim que também definiu que é próprio do
Primado ter subordinados a si e governar os Pastores ou Bispos da Igreja
universal (D 1827-1831); logo, sempre haverá Pastores ou Bispos subordinados ao
Primado. Isto mesmo é ensinado explicitamente na introdução à Constituição da
Igreja (D 1821)” (P. J. Salaverri S. J., Sacrae Theologiae Summa [dos
Padres da Companhia de Jesus, 4.ª ed., Madrid, B.A.C., 1962], trat. III, “De la
Iglesia de Jesucristo”, n. 294.). [Quanto, ademais, à perenidade da
Igreja, define-a o Vaticano I explicitamente mas indiretamente (D 1821-1824;
cf. P. J. Salaverri S. J., ibidem).] Se é assim, por conseguinte,
incorrem em anátema os sedevacantistas; e pô-lo supõe aplicar ao caso vertente a
analogia da fé.
Se pois tivermos qualquer dúvida quanto à solução que se dê à questão
gravíssima suscitada pelo magistério vaticano-segundo, não podemos porém de
modo algum resolvê-la rompendo a analogia da fé. E é segundo esta analogia que
respondo a seguir às dúvidas que me enviou um aluno.
1) “Diz Calderón que o CVII influi até mesmo no código de Direito
Canônico. Mas se é assim, e tendo em vista as mudanças que foram feitas sob
Paulo VI (Romano Pontifice Elegendo) e João Paulo II (Universi Domini
Gregis), mudanças que, se Calderón estiver certo, foram feitas sem
autoridade magisterial, se pois é assim, creio que é possível concluir que sua
promulgação e sua execução sejam ilícitas. Mas, se tal o são, deveríamos
concluir, como os sedevacantistas, que já não há eleição de cardeais, e, então,
de papas e enfim de presbíteros?”
RESPOSTA. Veja-se que a própria pergunta já é inadequada, porque supõe
possível uma negação de algo definido pelo magistério. A resposta à questão,
portanto, há de ser outra.
a) Que o magistério conciliar e pois o CVII sejam ilegítimos, não o
podemos decretar nós. Só um Papa ou um concílio sob um Papa. Os
sedevacantistas, ao decretá-lo, caem sob outro anátema implicado por outra
definição: a de que ninguém pode depor um papa (nem de fato, nem de direito).
Mas não disse o Papa Adriano II numa carta incluída na Ação VII do VIII
Concílio Ecumênico “que o Romano Pontífice sempre julgou as cabeças de todas as
igrejas; mas não vemos em parte alguma que quem quer que seja o tenha julgado a
ele. No entanto, é verdade que [o Papa] Honório [I], após sua morte, foi
vergastado com o anátema pelos orientais. É necessário todavia não esquecer que
ele foi acusado de heresia e que este é o único crime que torna legítima a
resistência dos inferiores aos superiores, bem como a rejeição de suas
perniciosas doutrinas”? Disse-o, mas disse também que Honório I foi
anatematizado pelos orientais num concílio (o VI
Ecumênico), com a aprovação de um Papa (São Leão II), e após
a morte do Papa vergastado. Mas os sedevacantistas, sem ser padres
conciliares e sem a aprovação de nenhum Papa, decretam que nada menos seis
Papas não o são!... Ou seja: acrescentam ao anátema uma presunção sem tamanho.
b) Depois, na Candeia Calderón diz exatamente (contra os
sedevacantistas da tese de Cassiciacum) o contrário do posto pela pergunta: as
mudanças nas regras da eleição papal feitas pelo magistério conciliar são
perfeitamente legítimas. Por quê? Porque tais regras, digo-o eu,
não fazem parte do poder autoritativo (de autoridade
doutrinal) do magistério (nem de seu objeto primário nem de seu objeto
secundário, os quais são os que, ainda que de diferente modo, podem dizer-se
infalíveis, ou certos, ou prováveis). Fazem parte do poder governativo (ou
seja, aquele meramente de ordem prática e prudencial) do magistério (como
também fazem parte deste poder atos como, por exemplo, indicar bispos para esta
ou aquela diocese, ou fechar igrejas durante uma pandemia). Por si, isto é a
única coisa que não implicaria que o Magistério conciliar (com maiúscula porque
agora se trata do sujeito do magistério) tivesse jurisdição precária,
ou seja, merecesse não sê-lo por seus desvios da fé (cf. meu Do Papa
Herético, p. 286-288, salvo engano). Reproduzo-o: “Como Caetano, João de
Santo Tomás, os Carmelitas de Salamanca, Billuart, Afonso Maria de Ligório e
tantos outros, pôde dizer Báñez que, ‘como a noção de membro [da igreja] é
empregada metaforicamente, dissemos mais acima que pode haver vários ângulos da
metáfora: segundo um ângulo [ou seja, a influência espiritual recebida de
Cristo, segundo a própria terminologia de Báñez] o pontífice [a fide devius,
desviado da fé] não é membro de Cristo ou da Igreja, e segundo outro [o poder
de governar] é membro seu’.[...] Para entendê-lo, recorra-se a uma analogia.
Como dizia Pio XII, um assassino já perdeu por seu mesmo ato o direito à vida e
à cidadania. Mas, digo, é preciso que o estado o julgue, lhe retire a cidadania
e o condene à morte. Enquanto ou se não o faz, tal assassino continua com a
vida e a cidadania, ainda que só de certo modo, ou seja, em estado
precário. Pois é, analogamente, o que nos parece se passa com o papa a
fide devius: já deixou ipso facto de ser membro de Cristo
e da Igreja; mas ainda preserva a jurisdição, ainda que tão só por falta do
devido juízo: mantém-se papa, portanto, com jurisdição precária.[...] –
Pode-se recorrer ainda a uma analogia com a potestade civil, como o faz, aliás,
o mesmo Domingo Báñez.[...] Com efeito, um governo civil pode dizer-se tirânico
se não se funda na verdade, razão por que só secundum quid mantém
a autoridade e a jurisdição: ou seja, só enquanto não é deposto. Enquanto
todavia não é deposto, segue sendo, de modo precário, o governo da
nação. Pois bem, dá-se o mesmo, mutatis mutandis, com a cabeça
visível da Igreja que tenha incorrido em heresia: está ipso facto excomungada,
mas mantém precariamente a jurisdição.[...] E não é
essencialmente outra coisa o que se dá com todos os demais clérigos que se
tenham desviado da fé: enquanto não são admoestados duas vezes e julgados [declaratoriamente],
mantêm precariamente a jurisdição”. Mas, para que mantenha a jurisdição ainda
que precariamente, é preciso que formalmente possam ser
válidos os atos de seu poder governativo. Ergo.
2) “Por fim, outra pergunta: o Código de Direito Canônico faz parte do
objeto segundo do objeto primário do magistério, não? É possível que se aplique
infalibilidade a ele, não? Se é assim, e o infalível, suponho, é imutável, como
a verdade é também imutável, como pode haver mudanças no Código de Direito
Canônico ao longo da história?”
RESPOSTA. Diga-se, antes de tudo, que o Direito Canônico não é objeto
segundo do objeto primário do magistério; isto não existe. É parte do objeto
secundário do magistério da Igreja em seu poder autoritativo, e, como todo ato
deste objeto secundário, só participa da infalibilidade se se
funda em ato infalível do objeto primário do mesmo poder. Se
todavia se funda em ato certo, será certo; se se funda em ato provável, será
provável; se não se funda em nada disto, terá autoridade nula. (E cuidado para
não reduzir ou empobrecer, como o fazem astutamente ou ineptamente os
sedevacantistas, a tese de Calderón supondo que ela gira em torno de uma
minguada oposição magistério infalível versus magistério não
infalível. Não: o cerne mesmo da tese do Padre argentino é, na esteira de Pio
XII (Humani Generis), a oposição magistério autêntico (que
pode ser infalível, certo ou provável, sempre com assistência do Espírito Santo
em algum desses graus) versus magistério conciliar ou liberal
(não assistido pelo Espírito Santo) por ter deposto, ele mesmo, sua potestade
autoritativa.)
Diga-se, depois, que os atos do objeto secundário do magistério enquanto
potestade autoritativa estão a cavaleiro entre o doutrinal e o prático. É o
caso das leis canônicas, das leis litúrgicas, das canonizações, das
excomunhões, etc. Pois bem, as excomunhões podem ser revistas, se um Papa
perceber que se fundaram em informações falsas. As canonizações, se se fundarem
em doutrina infalível e resultarem de preciso processo, então participarão da
infalibilidade em modo irrevogável. Mas as leis canônicas e as leis litúrgicas,
pelo caráter mesmo de seu objeto ou matéria, não são absolutamente fixas, ainda
que participem da infalibilidade. Por quê? Porque as condições mesmas em que se
formularam na ordem do prático não só podem mudar, mas efetivamente mudam. Por
isso é um erro pernicioso o de muitos tradicionalistas que dizem que nenhum
Papa pode alterar a Missa tridentina tal como estabelecida por São Pio V. Não
só o pode, senão que alguns já o fizeram, em especial São Pio X e Pio XII
(ainda que este antes quanto ao rito da Missa nos dias da Semana Santa). O
problema do Novus Ordo Missae de Paulo VI é que, além de não fundado em
doutrina assistida pelo Espírito Santo (mas na doutrina herética do “mistério
pascal”), institui uma antimissa, ou seja, uma “missa” de caráter centralmente
convival e memorial e não sacrifical. Quanto ao Código de Direito Canônico
pós-conciliar, diga-se algo análogo: apesar de sua novilíngua ordenada a dar às
novidades do direito pós-conciliar o caráter de continuadoras do direito do
magistério autêntico da Igreja (trata-se ainda da “hermenêutica da
continuidade”), não passa de uma colcha de retalhos fundada na doutrina
do sensus fidei soi-disant infalível do Povo de Deus por si, o
que só por si já lhe retira qualquer verdadeira autoridade.
À guisa de conclusão, no entanto, e voltando ao título deste breve
escrito, diga-se que se funda não só no posto ao longo destas linhas, mas em
evidência: é absolutamente evidente que parte considerável dos sedevacantistas
– na maioria jovens sem a menor iniciação em teologia – não só cai sob o
anátema do Vaticano I, mas acaba por perder a fé ou a caridade, ou formalmente
(aderindo, por exemplo, à ortodoxia ou ao protestantismo), ou materialmente
(numa vida sem sacramentos, sem oração, com as consequências disso). E tudo
isso decorre grandemente de que tais jovens nem sequer têm o senso de
pertencimento a uma Igreja real, apenas a uma “igreja pneumática”. Sei que
estas linhas, como aliás meu mesmo livro Do Papa Herético, são
incapazes de abrir os olhos de ao menos grandíssima parte dos sedevacantistas,
cujo coração se endureceu; até porque, ao fim e ao cabo, isto é efeito do
processo – conducente ao Anticristo – de apostasia da própria hierarquia da
Igreja iniciado expressamente pelo Concílio Vaticano II (ou seja, a abominação
da desolação instalada no lugar santo). Mas ainda assim devo alertá-los e
alertá-los: o canto de sereia do sedevacantismo, tão atraente à primeira vista,
não é senão um convite à perdição.