Carlos Nougué
Quando, com suas quase mil páginas, esta obra foi lançada pela
Ecclesiae, e depois de dar uma olhada muito superficial na tradução, saudei-a
publicamente. E não deixo de fazê-lo ainda agora, depois de tê-la lido efetiva
e mais detidamente; afinal, é algo de que o tomismo, e em particular seus
estudantes, necessitava no Brasil, além de que não deixa de ser louvabilíssimo
o trabalho árduo e – vê-se – honesto do tradutor. Mas tampouco posso deixar de
assinalar, também publicamente, problemas desta tradução, porque tenho
responsabilidade diante da multidão de meus alunos dispersa por meus vários
cursos e outros meios.
Em meu último livro lançado, No
Fragor da Batalha, incluí um escrito (“Termos e expressões de Santo Tomás”)
em que relaciono o que não se deve traduzir de seu latim, mas deixá-lo em
itálico com a devida explicação em nota de rodapé. Entre tais termos e
expressões, estão simpliciter (que
quer dizer pouco mais ou menos ‘pura e simplesmente’, ‘em termos absolutos’) e per se (que em alguns casos deve
traduzir-se por “por si”, mas em outros não, porque aqui quer dizer pouco mais
ou menos ‘em termos essenciais’ e se contrapõe a per accidens [‘acidentalmente, não essencialmente’], expressão que
tampouco deve ser traduzida, porque “acidente” tem conotações em português que
não convêm com a expressão). Pois bem, já na página 42 da referida tradução
(mas multiplicando-se ao longo do volume) aparecem traduções inconvenientes
justamente destes dois termos. Vejamo-las o mais brevemente possível.
a) “Ademais, alguma coisa se diz ser DE MODO SIMPLES, enquanto ela está
naquilo que lhe confere sua completude.” Lê-se em latim: “Praeterea, secundum
hoc dicitur esse aliquid SIMPLICITER, secundum quod est in sui complemento”.
Note-se que traduzir aqui SIMPLICITER
por “DE MODO SIMPLES” implica destruir o sentido mesmo da oração, fazendo-a
absurda. Se fôssemos traduzir o termo que é melhor deixar em latim, o que o
nosso Santo quis dizer é pouco mais ou menos o seguinte: “Diz-se que algo é [ou
seja, existe e é o que é] PURA E SIMPLESMENTE ou EM TERMOS ABSOLUTOS quando
esse algo está em seu estado completo”. Mas obviamente nossas palavras para
traduzir simpliciter, ainda que
acertadas, não expressam perfeitamente o que expressa o termo latino.
b) “Dizia-se que o universal não se corrompe por si, mas por acidente.”
O que o leitor que não conhece latim nem o latim de Tomás tenderá a pensar? Que
“o universal não se corrompe por si mesmo, por sua conta, sem intervenção de
outrem, mas só quando sofre algum acidente”. Mas veja-se o latim: “Sed dicebat,
quod universale non corrumpitur PER SE, sed PER ACCIDENS”. Antes de tudo,
diga-se que já a não tradução da palavra inicial da frase latina, sed, desfigura o esquema da disputatio, porque este sed (“mas”) introduz nela uma réplica, a
que se seguirá, ato contínuo, uma contrarréplica em forma de sed contra. Mas o pior é que o per se não quer dizer ‘por si’, mas
pouco mais ou menos ‘essencialmente falando’, ou no máximo, se se insiste em
traduzi-la, “de si”. Semelhantemente, per
accidens quer dizer pouco mais ou menos ‘em termos acidentais, não
essenciais’. Mas vê-se sem dificuldade como, com as devidas explicações em nota
de rodapé ou num glossário prévio, a frase fluiria se posta assim em nossa
pobre língua: “Mas dizia-se que o universal não se corrompe per se, mas per accidens”.
Por outro lado, na tradução de uma obra filosófica ou teológica deve
respeitar-se maximamente a tradição terminológica. O nosso tradutor
do De veritate, no entanto, põe na página 43 a
seguinte frase: “Mas, em contrário, uma coisa é o Pai ser Pai, e outra coisa é
o Filho ser Filho e SOPRAR o Espírito Santo”. Quer traduzir desse modo o
seguinte: “Sed contra, alio pater est pater et generat filium; alio filius est
filius et SPIRAT spiritum sanctum”, que todavia se traduz corretamente assim:
"Mas, em contrário, uma coisa é que o Pai seja o Pai e gere o Filho; outra
coisa é que o Filho seja o Filho e ESPIRE o Espírito Santo”. Trata-se da
ESPIRAÇÃO [não "expiração"] como propriedade ou noção. Colocar
“SOPRA” em vez de “ESPIRA” supõe dizer que há SOPRO na processão divina, termo
que não traduz precisamente a noção e, ademais, implica um rebaixamento do
nosso texto ao vulgar. Parece uma firula; mas não o é: usa-se desde sempre
“ESPIRAR” até para manter a coisa quase como no latim: “SPIRAT SPIRITUM”. Não é
difícil notar que SPIRAT não só é da
mesma família que SPIRITUM, mas cabe quase inteiro nesta palavra. Entendamo-lo melhor com esta passagem de S. Tomás no Compêndio de Teologia:
“CAPÍTULO 57
DAS PROPRIEDADES OU NOÇÕES EM DEUS,
E QUANTAS SÃO NO PAI
Existente em Deus [...] tal número de Pessoas, é necessário que haja
também certo número de propriedades pelas quais as Pessoas se distingam entre
si. Três aparecem como convenientes ao Pai. Uma pela qual se distingue só do
Filho, e esta é a paternidade; outra pela qual se distingue dos dois, ou seja,
o Filho e o Espírito Santo, e esta é a inascibilidade, porque o Pai não é Deus
procedente de outro, ao passo que o Filho e o Espírito Santo procedem de outro;
a terceira pela qual o mesmo Pai com o Filho se distinguem do Espírito Santo, e
esta se diz espiração comum. Mas não se há de assinalar nenhuma propriedade
pela qual o Pai difira do Espírito Santo só, porque o Pai e o Filho são um
único princípio do Espírito Santo, como se mostrou [c. 49]”.
Fico por aqui, insistindo: o que acabo de escrever não visa a nada mais
que alertar para a correta maneira de entender e de traduzir S. Tomás (e a filosofia e a
teologia em geral); não que eu mesmo não esteja sujeito a erros de tradução – falo em termos gerais. Para fazê-lo, é preciso profundo conhecimento não só do
latim e da língua para a qual se traduz, mas também da mesma doutrina do nosso
Doutor Angélico – até porque é uma temeridade não ser fiel a um quasi anjo.