Carlos Nougué
A Danilo Rehem
Nota prévia: este
opúsculo destina-se antes a servir de guia e compêndio aos alunos da Escola
Tomista. Sua leitura, no entanto, longe está de poder substituir a leitura e
estudo do De analogia de Santiago Ramírez O.P., a mais perfeita e
completa obra sobre o assunto. Sucede todavia que são quatro grossos volumes
ainda não traduzidos do latim ao português. Alguém se aventurará a prestar este
grande serviço? Ao autor destas linha já o impede a idade.
1) Como se dividem antes de tudo, quanto ao significado, os
termos linguísticos?
Resposta. Triplamente.
a) Dizem-se em primeiro lugar unívocos,
quando significam uma espécie, que pois se atribui aos indivíduos que estejam
sob ela, ou um gênero, que pois se atribui às espécies que estejam sob ela.
Assim, urso se diz de quaisquer indivíduos ursinos, e animal se
diz de formiga, pinguim, castor, urso, homem e qualquer outra espécie animal.
Insista-se: os termos dizem-se igual ou univocamente de tudo a
que se possam predicar.
b) Dizem-se depois equívocos,
quando significam coisas diversas, ou seja, completamente distintas
entre si. Assim, cão se diz do animal, da constelação, da peça da arma
de fogo, do demônio.
c) E dizem-se por fim análogos, quando
significam coisas em parte diversas, em parte afins de algum modo. Assim, ente
se diz tanto das criaturas como do Criador, os quais em parte são afins (são ou existem), em parte contudo
são diversos (o Criador, que é ser por si, é ente por essência, enquanto suas
criaturas, que só têm ser participado por Deus, são entes por participação).
Observação: mais adiante se dirá que
espécie de analogia há entre o Criador e suas criaturas. Mas ponha-se desde já
que não se trata de “analogia do ser”, mas de “analogia do ente”. Ente é o que é. Mas o que é tem ser. Logo, não
pode ser “ser” aquilo que o tem. É precisamente ente. Na metafísica aprendemos, porém, que Deus não tem ser
propriamente: ele é o único ente que é o próprio Ser subsistente por si mesmo,
assim como a brancura seria a própria brancura subsistente por si mesma se
pudesse separar-se da superfície branca.
2) Qual é contudo a precisa relação entre o termo e seu
significado nestes três casos?
Resposta. Também é tripla.
a) A equivocidade é exclusiva dos termos, e funda-se tão só
no caráter convencional da linguagem: com efeito, não há nem pode haver
conceitos equívocos, porque uma mesma concepção intelectual não pode
representar duas coisas diversas, ou seja, totalmente distintas entre
si.
b) Mas tanto a univocidade como a analogia terminológicas
resultam de propriedades lógicas dos conceitos, que são, por conseguinte,
capazes de modificar seu grau ou modo de predicabilidade.
Observação: a
analogia terminológica não raro depende do contexto linguístico: matéria,
por exemplo, não significa exatamente o mesmo se se usa quanto à natureza que
quando se usa quanto à arte. Mas tampouco significa coisas de todo diversas,
razão justamente por que é termo análogo.
3) Em que radica a analogia conceptual e pois a terminológica?
Resposta. Suposto que a equivocidade não
tem nenhum fundamento outro que a convencionalidade da linguagem, há que
responder a essa pergunta tão só com respeito ao unívoco e ao analógico.
a) O fundamento real da univocidade é que determinada quididade
(por exemplo, a quididade animal ou a quididade urso) ou alguma outra perfeição
(por exemplo, a unidade ou a bondade) é possuída identicamente por muitos (a
quididade animal pela formiga, pelo
pinguim, pelo castor, pelo urso, pelo homem ou por qualquer outra espécie animal;
e a quididade urso por quaisquer indivíduos ursinos). E isso é assim
porque um mesmo modo de ser impõe um mesmo modo de significar.
Observação: quididade vem do latim quidditas,
ou seja, aquilo que se encontra ao responder à pergunta quid
sit (que é?). Quid sit homo? (Que é o homem?), pergunta-se.
Responde-se: Animal rationalis (Animal racional) – e esta é a quididade
ou essência do homem. Como se explica todavia na Escola Tomista, entre
quididade e essência há distinção de razão.
b) Mas o fundamento real da analogia é que determinada quididade
é possuída em parte diversamente e em parte identicamente ou semelhantemente por
muitos. Basta para exemplo o dado acima, o de Deus e de suas criaturas. E isso
é assim porque um modo de ser em parte diverso e em parte idêntico ou
semelhante impõe um modo justamente análogo de significar.
4) Que aspectos estão sempre presentes
na analogia?
Resposta. Suposto
pois que as noções análogas expressam uma mesma perfeição que, todavia, se dá
de modos distintos em sujeitos diversos e em âmbitos diversos do real, ponha-se
que dois aspectos estão sempre presentes na analogia:
a) conveniência em alguma perfeição (ser, unidade, bondade, nobreza,
beleza, etc.) e, por conseguinte, em um mesmo conceito analógico ou análogo.
b) diversidade no modo (diversos modos de ser, de ser uno, de ser bom, de ser
nobre, de ser belo, etc.) e, por conseguinte, sentidos diversos do conceito
análogo.
5) Qual é a razão de que tenhamos de
recorrer ao analógico para compreender parte considerável da realidade?
Resposta. O
recurso à analogia, essa propriedade de nossos conceitos imprescindível
sobretudo na metafísica e na sacra teologia, deve-se em parte à limitação
própria de nosso intelecto (o que é assunto justamente da metafísica). Tal
limitação requer que burilemos nossas concepções para torná-las capazes de
apreender os diferentes modos e matizes das coisas significadas que,
insista-se, sejam em parte diversas e em parte idênticas ou semelhantes entre
si.
Observação 1:
“Esta delicada aplicação de nossos pensamentos à realidade contraria o espírito
racionalista”, diz o Padre Calderón, e supõe o respeito máximo possível para
nós à mesma realidade e seus modos ou matizes. “Noções”, continua o nosso
Padre, “como ‘unidade’, ‘ciência’, ‘justiça’, ‘história’ possuem uma amplitude
de significados: não cabe forçar a realidade, adotando uma definição unívoca
para cada um deles que depois não encontraria aplicação real”.
Observação 2:
até um que outro semanticista ou semiólogo moderno notou que muitos termos não
têm significado exatamente idêntico em seus diversos usos. É o caso de
Wittgenstein com sua teoria das “semelhanças de família”.
6) Quantas espécies de analogia há?
Resposta. Duas:
• a analogia de proporcionalidade; e
• a analogia de atribuição.
7) Mas parece claro que para entender a
ideia de analogia de proporcionalidade convém antes entender o que seja
proporção.
Resposta.
Sem dúvida alguma. Ponha-se pois que proporção é a adequada relação
entre duas coisas. Dá-se em muitos âmbitos, e em especial na matemática.
a) Nas ciências naturais, por exemplo, vê-se que há
proporção entre forma e matéria, entre causa e efeito, entre os sentidos e o sentido,
entre o intelecto e o inteligido, etc.
b) Na matemática, vê-se que há proporção entre as
quantidades, de modo que será dupla na relação 2 : 1, ou 4 : 2, ou 8 : 4, etc.
Observação: Se
tal relação é inadequada, tem-se desproporção: ainda por exemplo, a força
de um homem é desproporcionada para levantar um elefante; ou a capacidade mental
de um bebê é desproporcionada para captar os primeiros princípios da razão especulativa
ou da razão prática.
8) Não se diz no entanto em matemática
que há igualdade entre proporções?
Resposta. Sim:
trata-se justamente da proporcionalidade. Com efeito, e por exemplo, a
relação dupla se vai repetindo nas proporções 2 : 1, 4 : 2, 8 : 4, 100 : 50,
1.000 : 500, etc.. Naturalmente, 2 não é igual a 1, 4 não é igual a 2, 8 não é
igual a 4, 100 não é igual a 50, 1.000 não é igual a 500, etc. Mas a relação de
2 a 1 é a mesma que a de 4 a 2, que a de 8 a 4, que a de 100 a 50, que a de 1.000
a 500 – e é justamente tal igualdade a que se diz proporcional.
Também em geometria há igualdade proporcional: com efeito,
e ainda por exemplo, entre vários cubos de dimensões diversas se repete a mesma
figura com suas propriedades (sólido de seis faces quadradas de mesmo tamanho, formando um hexaedro),
mas de modo proporcional. Uma mesma razão formal vai-se
reproduzindo em escalas ou proporções diversas.
9) Como dito, contudo, a
proporcionalidade estende-se a outras ordens, não quantitativas.
Resposta. Exato. Tem-se então semelhança de
relações, de modo que, sempre por exemplo, a matéria está para a forma
(assunto físico) ou a essência está para o ser (assunto metafísico) assim como
a potência está para o ato (assunto de toda a filosofia, desde a racional ou
lógica):
matéria / forma ou essência / ser = potência
/ ato.
10) Insista-se
então: quando um conceito se predica de vários sujeitos com analogia de
proporcionalidade?
Resposta. Quando estes
possuem a mesma quididade ou a mesma perfeição expressas pelo conceito mas não
do mesmo modo, e sim de modo apenas semelhante – ou seja, de modo justamente
proporcional. A quididade “animal racional” realiza-se univocamente em todos os
indivíduos humanos; mas, como já se antecipou, a quididade “o que é” não se realiza
do mesmo modo no Criador e nas criaturas, nem a quididade “potência intelectiva”
se realiza do mesmo modo no homem e no anjo. Em outras palavras, uma mesma
quididade ou uma mesma perfeição realizam-se de modo proporcional à natureza de
cada sujeito.
11) Para que se
fixe melhor o assunto, dê-se um par de exemplos de utilização nas ciências da
analogia de proporcionalidade.
Resposta. Em certa altura da
história das ciências naturais, o sistema planetário serviu de modelo analógico
para representar a estrutura do átomo, então pouco conhecida. Na metafísica, a
rainha das ciências, aprendemos que, se tanto cada vivente como cada não
vivente são unos, ou seja, têm unidade, a unidade do vivente, no
entanto, é superior à do não vivente, ou, o que é o mesmo, todo vivente é mais
uno que todo não vivente. Do mesmo modo, os animais são mais unos que os
vegetais.
12) Lê-se nos
tomistas, contudo, que a analogia de proporcionalidade é dupla. Por quê?
Resposta. Porque de fato a analogia de
proporcionalidade se subdivide em analogia de proporcionalidade própria e
analogia de proporcionalidade imprópria. A própria foi a tratada até aqui. A imprópria, porém, também dita metafórica, tem-se quando a quididade significada não
se realiza formalmente em um dos sujeitos ou termos analogados. Assim, quando
se chama cabelos de fogo aos cabelos ruivos, comparam-se tais cabelos
ao fogo por causa de sua cor; mas, evidentemente, a ignescência não se dá de
modo formal nos cabelos.
Observação: na linguagem
corrente e mesmo na científica, as metáforas tendem a “fossilizar-se”, ou seja,
tornam-se tão comuns que já não se sentem como metáforas. Exemplos: os pés da mesa; a menina dos olhos; a
batata das pernas; o rio corre; o tempo voa; a raiz das palavras; etc. (Para metáfora fossilizada, cf. Carlos Nougué, Suma Gramatical da Língua Portuguesa e [no prelo] A Arte de Escrever Bem na Língua Portuguesa.)
13) Em que âmbitos se usam com toda a propriedade metáforas não
“fossilizadas”?
Resposta. Na literatura, no teatro, no
cinema, e na Sagrada Escritura (no artigo 9 da primeira questão da Prima pars da Suma Teológica, Santo Tomás trata detida e
cabalmente o uso de metáforas na Escritura). Na ciência em geral (incluída a
teologia), convém usar só muito parcamente de metáforas não “fossilizadas”. Com
efeito, como o diria Santo Tomás, o grande problema para a exegese dos diálogos
platônicos é que seu autor se vale não só de abundantes mitos, mas de
abundantes metáforas não “fossilizadas”.
14) Parecendo já ser suficiente o posto sobre a analogia de
proporcionalidade, parece convir falar agora da analogia de atribuição.
Resposta. De fato, e deve-se começar
por dizer que não só a analogia de proporcionalidade implica – o
mais das vezes? sempre? – a analogia de atribuição, senão que – o mais das vezes?
sempre? – esta é o fundamento último daquela. Com efeito, com a analogia de
proporcionalidade se comparam semelhanças, que – o mais das vezes? sempre? – se
resolvem em um único e mesmo princípio causal, seja eficiente, exemplar ou final
este princípio, ou seja, resolvem-se em um sujeito de que a perfeição que se
compara na proporcionalidade se diga de modo principal ou mais próprio.
15) Poderia explicar-se isso?
É que a analogia de proporcionalidade não faz senão comparar proporções
com abstração da possível dependência de uma proporção a outra. Por exemplo,
pela analogia de proporcionalidade no máximo se alcança que Deus tem de modo superior
ou mais eminente as mesmas perfeições que os demais entes. Mas a analogia de
atribuição vai além, por exemplo, ao encontrar o princípio causal de um dos
membros da proporcionalidade. Por exemplo, pela analogia de atribuição se diz
que Deus não só tem de modo superior as mesmas perfeições dos demais entes,
senão que é a causa ou princípio mesmo dessas perfeições.
Observação: no tratado da
metafísica da Escola Tomismo, vê-se que se deve ir mais além ainda: não só as
perfeições de Deus são mais eminentes que as dos demais entes, e não só Deus é
a causa das perfeições dos demais entes, senão que as perfeições de Deus – que são o próprio Deus – estão acima e fora da mesma série ascendente de
tais perfeições. São pura transcendência. Com isso se fere de morte a doutrina gnóstico-perenialista
de que Deus é transcendente e ao mesmo tempo imanente, como o sustenta, por exemplo,
Wolfgang Smith. – Mas aqui estamos ainda no âmbito da lógica.
16) Mas a analogia de atribuição limita-se a casos em que o analogado principal
seja causa ou princípio dos demais?
Resposta. Não. Mas leiam-se
antes de tudo as seguintes palavras de Santo Tomás (Suma Teológica I, q. 13, a.
6): “Nos nomes que se
dizem de vários analogicamente [em analogia de atribuição], é necessário que
todos eles se digam com respeito a um. E este um se inclui na noção de todos os
demais [...]. É necessário que esse nome se diga anteriormente [ou
principalmente, per prius] daquilo que entra na noção de todos, e posteriormente
(ou secundariamente, per posterius) dos outros, segundo uma ordem pela
qual se aproximam dessa unidade em maior ou menor grau. Por exemplo, são
[= sadio, saudável], que se diz do animal, entra na noção de são [também]
quando se diz de um medicamento, pois este é são quando causa a saúde do
animal; e entra também na noção de são que se aplica à urina, que se diz
sã porque é sinal da saúde do animal”.
Há portanto dois elementos na analogia de atribuição:
a) O a um (ad unum): há sempre
uma noção central única com respeito à qual se dizem as demais noções. Como – segundo
o exemplo do nosso Santo – diz o Padre
Calderón, “ao sentido principal de ‘saúde corporal’ ordenam-se as noções
derivadas de saúde, como ‘medicina [remédio] sã’, ‘instrumental sanitário’, ‘casa
de saúde’, ‘rosto são’, ‘clima são’, etc. Nos sentidos derivados entra sempre a
noção central: assim, para definir o ‘clima são’, havemos de dizer que é ‘o
clima que favorece a saúde’, etc.”.
b) O por anterioridade ou principalidade (per prius): a noção analógica diz-se anterior ou principalmente do sujeito – chamado,
insista-se, analogado principal – que
encerra ou realiza o sentido principal dessa noção; e diz-se posterior ou
secundariamente dos outros sujeitos – chamados analogados
secundários.
17) Por que precisamente, então, se chama de atribuição a esta espécie de analogia?
Resposta. Precisamente
porque a noção considerada analogicamente se diz antes de dado ente, e só por
derivação dos demais entes. Refaçamos nossos passos com a ajuda de Cornelio
Fabro (Partecipazione e causalità, Turin, SEI, 1960, p. 469-526). Em um primeiro momento, percebemos
que algo se diz ou predica de muitos em múltiplos sentidos: por exemplo, “bem” diz-se
dos meios e dos fins, dos objetos e das pessoas, das criaturas e de Deus. Em um
segundo momento, buscamos uma ordem entre estas coisas: no exemplo posto, “bem”
predica-se dos meios em função dos fins, em ordem a estes, e portanto os fins são
“bons” em sentido anterior ou principal ao de serem “bons” os meios que
conduzem a eles. Por fim, encontramos quanto à noção de “bem” um sujeito primeiro
em torno do qual se ordenam os demais: Deus não só como o bem supremo mas como
o princípio dos outros bens.
Observação: na metafísica, insista-se, vamos
além: não só Deus é o bem supremo e a causa dos outros bens, e não só Deus é o
Bem por essência – uma vez que o Bem por essência é o mesmo Deus –, senão que este
Bem – que, insista-se, é o próprio Deus – está acima e fora da mesma escala dos
bens criados. Que Deus seja o bem supremo e a causa dos outros bens, no-lo
demonstra Santo Tomás na quarta via demonstrativa de que Deus existe; que
todavia Deus seja o Bem por essência, Bem que está acima e fora da escala
ascendente dos bens criados, no-lo demonstra o mesmo Santo Tomás, por exemplo, nas
questões da Suma Teológica que se seguem às cinco vias demonstrativas da
existência de Deus. Esta questão, ademais, é detidamente tratada no opúsculo “Se
se contradiz Santo Tomás ao pôr que o mundo poderia ter existido desde sempre”
(in Carlos Nougué, Do Papa Herético e outros opúsculos) e no mesmo tratado da
metafísica da Escola Tomista.
18) Insista-se, contudo: por todo o posto, parece que a mesma analogia
de atribuição se subdivide em outras duas espécies.
Resposta. Sem dúvida: a analogia
de atribuição pode ser extrínseca ou intrínseca.
a) Tem-se analogia de atribuição extrínseca quando o
analogado principal é o único que possui de modo próprio e formal a quididade
ou perfeição em questão, enquanto os demais analogados, os secundários, não a possuem
senão de modo justamente extrínseco ou impróprio. É o caso de “são” posto
acima: com efeito, não há negar que o remédio, o clima, o rosto corado ou a urina
não têm de si saúde, senão que são ou causas extrínsecas da saúde daquele único
que a pode ter – o animal -, ou são ainda sinais da saúde do mesmo animal.
b) Tem-se no entanto analogia de
atribuição intrínseca quando a noção análoga se diz própria e
formalmente de todos os analogados, mas anterior ou principalmente de um
deles – o analogado principal – enquanto é princípio ou causa da
quididade ou da perfeição presente também nos demais analogados. Ponham-se dois
exemplos.
• Primeiro exemplo:
quando dizemos proporcionalmente que tanto a substância como seus acidentes são,
ou seja, são entes, esta proporção implica a analogia de atribuição intrínseca em
que a substância seja o analogado principal, porque a substância é o sujeito
sem o qual os acidentes não teriam onde inerir e portanto não seriam, e
porque, por isso mesmo, isto é, como sujeito dos acidentes, a substância pode
dizer-se causa material sua.
• Segundo exemplo: quando dizemos proporcionalmente que tanto as criaturas como Deus são, ou seja, são entes, esta proporção implica a analogia de atribuição intrínseca em que Deus seja o analogado principal, porque Deus é a causa eficiente do ser das criaturas, razão por que, na metafísica, se demonstra que Deus é o Ente por essência enquanto as criaturas são entes por participação.
19) Pode dizer-se,
então, que o fundamento da analogia de atribuição intrínseca é a causalidade?
Resposta. Sem dúvida
alguma, pelas razões seguintes.
• Necessariamente os
efeitos refletem ou encerram pelo menos algo de suas causas. Por exemplo, as
causas eficientes ou agentes próprias são também causas exemplares de seus efeitos
– assim como Deus é o criador e suas criaturas são certa imago Deus,
certa imagem de Deus –, e a analogia de atribuição intrínseca, como o diz o
Padre Calderón, “permite precisamente o salto do exemplado ao exemplar, da representação
a seu modelo”. Assim, como o põe ainda Santo Tomás (Suma Teológica I, q.
13, a. 2), ao conhecermos a partir das criaturas que Deus é a Causa primeira do
universo, podemos tomar, em demonstração quia – ou seja, a que vai dos
efeitos à existência de sua causa –, podemos tomar as mesmas criaturas como meio
demonstrativo para conceber analogicamente algo da natureza de Dios.
Observação: fere-se de morte com isso a
chamada teologia apofática ou negativa, segundo a qual só
podemos conhecer de Deus o que ele não é, teologia que conduz, como no caso,
por exemplo, de Maimônides, ao menos às raias do agnosticismo. Com efeito, como
se mostra ainda no tratado da metafísica da Escola Tomista, nosso conhecimento
de Deus nesta vida começa pela demonstração de sua existência, prossegue com o
apofático – o conhecimento do que Deus não é –, mas termina no conhecimento de algo quiditativo de Deus,
mediante justamente analogias de atribuição intrínseca.
• De sorte que a
analogia de atribuição intrínseca implica de modo preciso tanto uma semelhança
como uma dessemelhança: a noção em questão compete antes ao analogado principal
e só posterior ou secundariamente aos analogados secundários, mas enquanto
estes são efeitos daquele. Insista-se não obstante em que, ao contrário do que
se dá na analogia de atribuição extrínseca, na intrínseca a noção em questão pertence
propriamente a todos os analogados: com efeito, as criaturas são própria e
formalmente entes, porque efetivamente são, ainda que só Deus seja
perfeitamente. Deus, com efeito, é o Ente perfeito.
• Na analogia de atribuição intrínseca, o
respectum ad unum realiza-se numa causa concreta (Deus, por exemplo), e
não numa noção abstrata (a saúde, por exemplo). Dê-se a palavra outra vez ao Padre
Calderón: “Deus e o mundo convêm no ser, mas não porque as duas realidades convenham
na noção abstrata de ‘ser’” – como o quer Duns Scot com sua univocidade
do ente –, “e sim porque o ser do mundo se refere ao Ser de Deus
como à sua Causa e Princípio. Seria inadequado realizar a convergência analógica
do ser na abstração universalíssima do ser em geral”.
Observação 1. Ao negarem a existência –
ou ao menos a principalidade – da analogia de atribuição intrínseca, também o
Cardeal Caetano e os que o seguem nisto acabam por incorrer de algum modo,
ainda que sem dar-se conta de tal, na inadequada convergência analógica do ser na
abstração universalíssima do ser em geral. – Diga-se, aliás, que o Padre
Santiago Ramírez O.P., inquestionavelmente a maior autoridade em analogia (vide,
repita-se, seu De analogia), de início seguiu ao Cardeal Caetano em negar
a existência mesma da analogia de atribuição intrínseca; mas depois se retratou.
Observação 2: Como decorre, ademais, do posto também mais acima, a anterioridade
ou prioridade ontológica do analogado principal nem sempre coincide com a
prioridade gnoseológica, porque – como no caso de Deus e de suas criaturas – por
vezes conhecemos primeiro os efeitos que sua causa, além de que, como posto
também mais acima, neste caso não podemos conhecer a causa senão a partir de seus
efeitos.
20) Para concluir, é possível solver a
dúvida quanto a se a analogia de proporcionalidade se reduz sempre ou só o mais
das vezes à de atribuição?
Resposta. Sim. Com efeito,
como tudo se reduz de algum modo a Deus, e como algo quiditativo de Deus se
conhece por analogia de atribuição intrínseca, há que pôr que tanto a analogia
de proporcionalidade – ao menos a própria, mas talvez a mesma imprópria – como
a analogia de atribuição intrínseca hão de reduzir-se necessariamente de
algum modo à analogia de atribuição intrínseca. Mas isto extrapola grandemente
o escopo deste opúsculo.