Carlos Nougué
O liberalismo do Padre Félicité Robert de
Lamennais, fundador do jornal L’Avenir, foi condenado pela Encíclica Mirari
vos (1831), de Gregório XVI, e pela Encíclica Singulari Nos (1834),
do mesmo Papa. Mas Lamennais não foi só liberal; fora antes ultramontano e tradicionalista,
ao modo de De Bonald e De Maistre, e seria depois socialista “utópico”, ao modo
de Fourier. Não se creia, todavia, que Lamennais padecesse algum transtorno de
personalidade múltipla. Os três Lamennais têm uma raiz comum: em vez de, como
devido, defender que o poder temporal deve ordenar-se essencialmente e diretamente ao poder
espiritual quanto ao fim deste, que é Deus mesmo e a salvação das almas,
Lamennais dividia a Igreja em duas, uma terrestre, outra celestial. Caberia à
terrestre perseguir um fim imanente das sociedades humanas, ou a tradição conservadora
e ultramontana, ou a perfeita democracia, ou o socialismo; e deveria fazê-lo
independentemente do fim sobrenatural da outra Igreja, a celeste. Quase o mesmo
trajeto percorreria Jacques Maritain no século XX: de ultramontano a liberal laicista
e ecumenista. Que pois tudo isso nos sirva de lição, para que não adiramos a
nenhuma das possíveis vertentes da “Igreja terrestre”. Ainda que as sociedades não voltem a ordenar-se essencialmente à Igreja e seu fim divino e sobrenatural, nem por isso devemos aderir a nenhum conservadorismo, a nenhum liberalismo,
a nenhum socialismo. Havemos sempre de repetir, como parte de nossa confissão
de fé: ou as sociedades se porão sob o estandarte de Cristo Rei, ou, sob
governos de direita ou de esquerda, nunca passarão de pasto de demônios.