Carlos Nougué
Desde que há
25 anos comecei a estudar a doutrina de S. Tomás, deparei com alguns pontos que
só tempo me permitiu compreender perfeitamente, ou mais perfeitamente, desentranhando-lhes o sentido original, o que não raro se mostra difícil pelo
modo lacônico do nosso Mestre de expor. Esse laconismo é fundamental em vários sentidos, incluindo o deixar aos seguidores de Tomás a salutar tarefa de explicitar o não
expresso e, em decorrência, muitas vezes, aprofundá-lo. É o que, por exemplo,
fez Santiago Ramírez O.P. com respeito à analogia, e o que faz o P. Álvaro Calderón com respeito ao amor. Se porém tal laconismo é fundamental, não
raro todavia se faz ocasião de erro por parte dos tomistas, sobretudo se a ele
se junta o uso por Tomás de terminologia algo inadequada – ou antes, aviceniana ou
boeciana ou, até, agostiniana – para tentar fazer que sua ampla audiência
compreendesse uma doutrina, a tomista, absolutamente nova. E, com efeito, foi o
que se deu com a tese-eixo da doutrina do Mestre: a distinção real entre
essência e ser ou ato de ser, a qual só hoje, com o P. Calderón, se mostra íntegra, na esteira dos esforços muito importantes mas algo parciais de Cornelio Fabro.
Pois bem,
algo análogo se dá com a questão do modo humano de conhecer. Não me refiro,
naturalmente, à tão equivocada doutrina de Xavier Zubiri; mas à dificuldade que
temos todos os tomistas em desentranhar de S. Tomás o que ele efetivamente
pensava do assunto em seus múltiplos aspectos. Ademais, também aqui a doutrina
de Tomás de Aquino progrediu desde sua fase jovem até sua fase sênior. Não,
entenda-se bem, não que S. Tomás tenha mudado simpliciter ou essentialiter
de doutrina, senão que, sim, a aprofundou, a poliu, a despiu de influências
avicenianas, boecianas e agostinianas, e a expurgou de defeitos ou impurezas,
para mostrá-la como ouro puro na Suma Teológica. Mas temos aqui um agravante: é que Tomás, como
aliás todos os aristotélicos e todos os escolásticos aristotélicos, usa os
termos referentes a este modo de conhecer de modo demasiado plástico ou
análogo, muitas vezes sem lhe dar maior precisão. É o caso do termo imaginação:
Tomás ora significa com ele o sentido interno da imaginação ou fantasia, ora significa
o conjunto dos quatro sentidos internos. Ademais, quanto, por exemplo, aos
fantasmas, diz ora que são formados pela imaginação (qual? o sentido interno da fantasia ou
o conjunto dos sentidos internos?), ora que são preparados pela
cogitativa. Esta é a razão, aliás, de que Martín Echavarría, em seu estupendo A
Práxis da Psicologia – ao menos na versão original, espanhola –, atribua ao
sentido da imaginação a formação dos fantasmas, sem nunca referir que seja a
cogitativa a que os prepara; fica parecendo assim que, para ele, Martín, a
cogitativa não intervém para nada na formação dessas imagens sensíveis. Não
posso senão discordar.[1] O
que contudo importa dizer ou repetir aqui é duplo. Primeiro – como se pode ver
até por vídeos meus postados em meu canal do Youtube e por opúsculos da década
de 2000, alguns dos quais longos, que hoje todavia desautorizo –, a questão do
modo humano de conhecer sempre esteve, com outras, no centro de meus interesses
filosóficos. Segundo, que quanto a esta questão vim mudando evidentemente,
ainda que não essencialmente; o que se pode constatar se se compara o tratado
de Psicologia que gravei (há um ano) para a Escola Tomista com o que se
lerá aqui, abaixo. Com efeito, esta é minha última palavra sobre o assunto.
Estarei, nesta última palavra, perfeitamente de acordo com a mente de S. Tomás
sobre esta questão? Quero crer que sim, ou pelo menos de acordo com as consequências
que se podem e devem tirar do que se lê no Mestre sobre o modo humano de conhecer, saltados
os escolhos dos referidos laconismo e polissemia com que Tomás tratou todo o
implicado neste assunto.[2] Assim,
ei-la, esquematicamente:
1) Os sentidos externos (tato, paladar,
olfato, audição e visão), reduzidos a ato pelas espécies sensíveis das coisas
sensíveis, enviam suas captações parciais, por exemplo de uma maçã, desta maçã, ao sentido
comum.
Observação: são quatro os sentidos internos, e
dividem-se em dois pares: sentido
comum/imaginação ou fantasia; e cogitativa/memória
– todos localizados em nosso cérebro.
2) O sentido comum unifica as captações parciais enviadas pelos sentidos externos e produz uma só imagem da coisa singular: ainda por exemplo, desta maçã. Ou seja, o sentido comum é produtivo.
3) O sentido comum envia esta imagem ou
fantasma para a imaginação ou
fantasia, que o guarda ao modo de memória. Ou seja, a imaginação é
retentiva; razão por que, como diz S. Tomás, é um tesouro de imagens.
4) A cogitativa – nosso sentido interno
superior – prepara um fantasma, digamos, de nível superior: já não a imagem ou
fantasma, por exemplo, desta maçã, mas um fantasma que reúne todos os fantasmas de maçãs que estão retidos ou guardados na imaginação: fantasmas de maçãs grandes
e pequenas, verdes ou vermelhas, suculentas ou farinhentas, etc.
5) O fantasma da cogitativa é, por um lado,
guardado ou retido na memória, e,
por outro, é “exposto” para que o intelecto
agente o ilumine e abstraia dele a espécie inteligível, ainda por exemplo, da
maçã. A abstração da espécie inteligível já não se dá no cérebro, mas na parte intelectiva e pois espiritual da alma, ainda que, obviamente, para proceder a ela o intelecto agente tenha tido
de contar com o concurso dispositivo da cogitativa e seu fantasma.
6) O intelecto agente, então – e agora já não só não se está no cérebro, senão que já nem sequer se requer o concurso dispositivo da cogitativa e seu fantasma –, imprime esta espécie inteligível no intelecto possível, que, reduzido assim a ato, pode empreender suas três operações. – Mas atenção: de certo modo, a única espécie inteligível é a do ente. Veja-se o que se diz a seguir e que tem relação com isto.
a) A primeira operação do intelecto possível
é chamada simples apreensão ou
inteligência dos incomplexos, e sua obra é o conceito ou
definição. Mas atenção: de certo modo, o único
conceito da primeira operação do intelecto é o de ente, reduzindo-se de alguma maneira todos os outros – tanto
os transcendentais como os predicamentais – a este quer como adições quer como
modalizações ou categorizações, como aliás o diz de certo modo o mesmo Tomás de Aquino jovem em
De veritate.
b) A segunda operação do intelecto é o juízo ou composição ou divisão, de caráter duplamente reflexivo, e onde residem a verdade e a falsidade. Assinale-se porém que – tão corretamente segundo a mente de Tomás, ainda que contra a mente de todos os outros tomistas, aqui (como em muitos outros pontos) antes caetanistas que tomistas – Calderón demonstra cabalmente em El orden sobrenatural que não só a verdade enquanto adequação do intelecto à coisa já se encontra de algum modo na primeira operação, senão que ao cabo desta mesma operação já se dá um retorno ao fantasma mediante uma reiluminação deste pelo intelecto agente. A obra da segunda operação é a proposição.
c) A terceira operação do intelecto, por fim,
é o raciocínio, cuja obra é a argumentação.
E, enquanto as duas primeiras operações são do intelecto enquanto intelecto,
a terceira é do intelecto enquanto razão – porque nesta se discorre do
desconhecido ao conhecido por um meio ou termo médio que é ou a causa (e
temos a demonstração propter quid, a mais propriamente científica), ou algum efeito que faz as vezes
da causa (e temos a demonstração quia, como nas cinco vias tomistas
que provam que Deus é).
Observação final 1: para surpresa dos zubirianos, S. Tomás diz que o conhecimento de nosso intelecto pode dizer-se, sim, sensível, ainda que só per accidens; ao passo que Zubiri diz que nossa inteligência é per se senciente ou sentinte – o que obviamente conduz à negação da imortalidade da alma. É o passo do equilíbrio de Tomás ao anseio de novidade de um filósofo, Xavier Zubiri, talentoso, mas malogrado justamente por tal anseio cartesiano de reinventar do zero a filosofia.
Observação final 2: o maravilhoso esquema que se vê abaixo é de Urlan
Salgado de Barros, a quem o agradeço. Clique-se nele para vê-lo bem.
[1] Atenção: isto
absolutamente não quer dizer que eu não recomende seu livro. Não só acima já o
disse estupendo, mas o cito largamente em Da Arte do Belo e até já
comprei sua edição brasileira, pelo Centro Dom Bosco. Gostaria, no entanto, de deixar consignada aqui uma divergência de
fundo quanto à mesma doutrina geral de Echavarría: o que ele chama Psicologia
parece ser um misto das duas ciências que, com fundamento efetivo em Aristóteles e em S. Tomás, tenho por perfeitamente distintas: por um lado, a Psicologia ou ciência da alma e de suas potências;
por outro lado, a Ética ou ciência do agir monástico ou individual, a qual é o
que correntemente e erroneamente se vem chamando desde há muito tempo Psicologia e
envolve o estudo das patologias da alma. E esta disjunção é para mim radical,
sem concessão, como bem o sabem meus alunos da Escola Tomista. Mas compreendo
perfeitamente que Echavarría não possa proceder assim, dada sua vida
profissional e seu interesse na aplicação, digamos, clínica de sua ciência.
[2] Ademais, este brevíssimo
opúsculo disponibilizá-lo-ei aos alunos da mesma Escola Tomista, como material
de estudo do tratado da Psicologia.