Como me escreveu o tradutor do artigo (de 2018), Leonildo Trombela Junior, “parece que após a exortação do Pe. Calderón de 2015 ele [o P. Gleize] mudou em algo sua posição. Aqui parece muito mais próxima sua posição da do Padre argentino do que em Vatican 2 en débat e Magistere et foi”.
Pe.
Jean-Michel Gleize, FSSPX
Fonte:
Courrier de Rome nº 606, Janeiro de 2018 – Tradução: Dominus
Est
UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIO
A exortação pós-sinodal Amoris laetitia não deixou ninguém indiferente. Mas eis que, segundo o parecer do próprio Papa, a única interpretação possível do capítulo 8 desse documento é aquela dada pelos bispos da região de Buenos Aires na Argentina, quando afirmaram abertamente que o acesso aos sacramentos pode ser autorizado a certos casais de divorciados recasados. «O escrito é muito bom e explicita perfeitamente o sentido do capítulo 8 de Amoris laetitia, e não há outra interpretação», afirmou o Papa em uma carta de setembro de 2016. E eis que em junho de 2017 a Secretaria de Estado do Vaticano reconhece o estatuto de «Magistério autêntico» a essa afirmação.
Isso suscitará de novo uma questão já há muito estudada[1]. Estando admitido que as autoridades da hierarquia eclesiástica continuam em posse de seu poder de Magistério, pode-se perguntar: qual valor atribuir aos atos de ensino concedidos pelas autoridades em vigor na Igreja (o Papa e os bispos) desde o Concílio Vaticano II? Deve isso ser visto como o exercício de um verdadeiro Magistério, ainda que, no todo ou em parte, esses ensinamentos se desviem da Tradição da Igreja? A posição da Fraternidade São Pio X[2] sustenta que desde o Vaticano II em diante assolou (e ainda assola a Igreja), «um novo tipo de magistério, imbuído de princípios modernistas, que vicia a natureza, o conteúdo, o papel e o exercício».
Essa posição reteve toda a atenção de
um representante designado pelo Sumo Pontífice, o Secretário da Comissão
Pontifical Ecclesia Dei, Mons. Guido Pozzo, e inspirou a
problemática fundamental de todo o seu discurso[3], indo na mesma linha
daquele do Papa Bento XVI. O objetivo dessa problemática é validar aos olhos da
Fraternidade o valor propriamente magisterial dos ensinamentos conciliares,
antes de lhes fazer aceitá-lo. Porquanto é preciso que esse ensinamento seja
aceito. Já antes das discussões doutrinais de 2009-2011, Bento XVI havia
claramente anunciado essa intenção: «Deste modo torna-se claro que os
problemas, que agora se devem tratar, são de natureza essencialmente doutrinal
e dizem respeito sobretudo à aceitação do Concílio Vaticano II e do magistério
pós-conciliar dos Papas. […] Não se pode congelar a autoridade magisterial da
Igreja no ano de 1962: isto deve ser bem claro para a Fraternidade»[4].
Isso mostra a urgência ainda atual dessa questão crucial, que é uma questão de
princípio. Nós a reexaminaremos aqui sob a forma sintética de uma questão
disputada, fazendo valer os diferentes argumentos pró e contra, a fim de
colocar em evidência a legitimidade da posição defendida até aqui pela
Fraternidade.
OS
ENSINAMENTOS CONCILIARES SÃO PROPRIAMENTE MAGISTERIAIS?
ARGUMENTOS
A FAVOR E CONTRA
Parece que sim
1. Primeiramente[5], a verdadeira natureza dos ensinamentos do Concílio Vaticano II e do pós-Concílio situa-se como que sobre um cume, acima de dois erros extremos e opostos, e é por isso que conviria traçar duas linhas brancas intransponíveis à esquerda e à direita que devem conduzir a inteligência à verdade. À esquerda, a linha branca deve evitar a posição maximalista, que faz do Concílio Vaticano II um tipo de super-dogma de natureza pastoral, em nome do qual relativiza-se a doutrina católica da Tradição. À direita, ela deve evitar a posição minimalista, que sustenta que o Vaticano II é apenas um concílio pastoral e, por isso mesmo, desprovido de qualquer valor doutrinal e magisterial. Recusando as duas posições, maximalistas e minimalistas, «deve-se ler e compreender os documentos do Magistério do Vaticano II e dos pontífices posteriores diretamente a partir do que eles pretendiam realmente ensinar (a mens do autor) sem se deixar condicionar pela realidade virtual ou alterada posta em circulação por outros intérpretes humanos não autorizados»[6]. Assim, devemos considerar que o Concílio, mesmo se ele não tenha querido propor novas definições dogmáticas, tenha mesmo assim dado um ensinamento magisterial que diz respeito à fé e à moral, e que ele exige o assentimento interior do intelecto e da vontade, assim como os demais ensinamentos de caráter prático-pastoral, que pedem uma adesão respeitosa, ainda que diferente.
2. Em segundo lugar, de fato bem vemos que existem atos de ensino do Concílio Vaticano II e dos papas posteriores que são propriamente magisteriais — como por exemplo a sacramentalidade do episcopado no capítulo III da constituição Lumen gentium ou a condenação do sacerdócio feminino na Carta apostólica Ordinatio sacerdotalis de João Paulo II — visto que o conteúdo, o tom e a finalidade desses atos manifestam claramente que o Papa pretendeu aí realmente fazer uso de sua autoridade magisterial no sentido o mais tradicional.
3. Em terceiro lugar, o Magistério é, como ensina Pio XII, a regra próxima da verdade em matéria de fé e costumes. Ora, assim como a Igreja não poderia manter-se indefectível por um longo período sem um papa que verdadeiramente reine, Ela tampouco o poderia sem que o Magistério se exerça em ato. É por isso que negar que os ensinamentos pós-conciliares sejam propriamente magisteriais, e negar que verdadeiramente haja um papa verdadeiramente reinante, conduz às mesmas consequências, ou seja, a colocar em questão as promessas feitas por Nosso Senhor e a negar a indefectibilidade da Igreja.
4. Em quarto lugar, Mons. Lefebvre
declarou quando falava do Concílio Vaticano II: «Existe um magistério ordinário
pastoral que certamente pode conter erros ou exprimir simples opiniões»[7].
Ele também declarou que seria preciso julgar os documentos do Concílio à luz da
Tradição para aceitar aqueles que estão em conformidade com Ela[8].
Portanto, o Concílio Vaticano II representava aos seus olhos um «Magistério»
propriamente dito.
Parece que não
5. Em quinto lugar, em uma conferência dada em Écône[9], Mons. Lefebvre declarou: «Temos o Papa João XXIII, o Papa Paulo VI e o Papa João Paulo II. […] São liberais. Eles têm um espírito liberal. […] Então como vocês querem que almas como essas realizem atos que eles considerem definitivos e que obriguem todos os fiéis a aderir de uma maneira definitiva? Eles não podem realizar atos como esse. É por isso que sempre trazem restrições em seus comentários, em suas cartas e em seus comunicados oficiais, seja em um consistório, seja numa reunião pública. […] Há agora, portanto, todo um sistema em Roma que não existia outrora e que não pode nos dar leis da maneira que os papas nos deram anteriormente, porque eles não têm mais o espírito verdadeiramente católico nessa questão. Eles não tem a concepção claramente católica da infalibilidade, da imutabilidade do dogma, da permanência da Tradição, permanência da Revelação, e nem mesmo, eu diria, da obediência doutrinal. […] Então toda essa concepção que eles têm os impede de realizar atos nas exatas condições e com a mesma concepção que tinham os papas de outrora. Isso me parece claro. E é por isso que nós nos encontramos em uma confusão inconcebível». Portanto, Mons. Lefebvre tinha ao menos uma séria dúvida sobre a natureza magisterial dos novos ensinamentos conciliares.
6. Em sexto lugar, na ocasião do 25º
aniversário das sagrações episcopais de 1988, Mons. Lefebvre declarou: «Nós
estamos certamente obrigados a constatar que esse Concílio atípico, que só quis
ser pastoral e não dogmático, inaugurou um novo tipo de magistério,
desconhecido até então na Igreja, sem raízes na Tradição; um magistério
decidido a conciliar a doutrina católica com as ideias liberais; um magistério
imbuído dos princípios modernistas do subjetivismo, do imanentismo e em
perpétua evolução segundo os falsos conceitos de tradição viva, que vicia a
natureza, o conteúdo e o papel do exercício do magistério eclesiástico»[10].
Tiramos a mesma conclusão que no sétimo argumento.
PRINCÍPIO DE RESPOSTA
Para dar uma resposta, é preciso
definir os termos da questão.
Definamos o predicado da nossa questão e vejamos o que é um ato «propriamente magisterial». O ato do Magistério eclesiástico é aquele de um testemunho prestado com autoridade em nome de Cristo: é essencialmente o ato de uma autoridade vicária. Esse ato é então definido e limitado por seu objeto, que é a salvaguarda e a explicação das verdades divinamente reveladas. Fora desse objeto, o ato da autoridade eclesiástica não poderia corresponder ao de um Magistério propriamente dito[11]. A reta razão esclarecida pela fé é capaz de verificar em certos casos quando a autoridade eclesiástica é exercida fora de seus limites, que é precisamente quando ela vê que essa autoridade contradiz o objeto próprio do Magistério, já proposto enquanto tal. Há um critério negativo destacado por São Paulo na Epístola aos Gálatas[12]: as autoridades eclesiásticas agem fora de seus limites quando elas dão um ensinamento contrário às verdades já definidas pelo Magistério infalível ou constantemente propostos pelo Magistério ordinário, inclusive o simplesmente autêntico. Em tal caso, então é possível verificar a ilegitimidade e a natureza não-magisterial de um ato de ensino procedendo a posteriori, e examinando o objeto desse ato, na sua relação com os outros objetos de outros atos anteriores do Magistério. Mas isso então levanta a questão da natureza propriamente magisterial desse ensino, porque, se o objeto mesmo desse ensinamento (seu «quod», falando em linguagem escolástica) é a negação do objeto do Magistério, ainda que somente sobre alguns pontos, poderíamos certamente perguntar se o motivo formal desse ensinamento (o «quo») é habitualmente (ou seja, em todos os demais atos) aquele do Magistério; com efeito, há uma relação necessária de adequação entre os dois. Certamente pode suceder que o papa ensine em um ato isolado algo que não é o objeto de seu magistério (por exemplo, uma opinião teológica) sem que isso seja o sinal que seu ensinamento habitual não é de natureza magisterial. Todavia, quando o Papa ensina, mesmo num ato isolado, algo que contradiz o objeto de seu Magistério (um erro grave, inclusive uma heresia), não é desarrazoado se perguntar se não há aí o sinal que seu ensinamento habitual não é mais de natureza magisterial. Com efeito, a negação do «quod» (que é mais que sua ausência) é ordinariamente o sinal da ausência do quo, em se tratando de atos do poder, e não do poder mesmo.
Definamos em seguida o sujeito da nossa questão e vejamos o que são «os ensinamentos conciliares». Os ensinamentos do Vaticano II, assim como aqueles dos papas posteriores ao Concílio, são primeiramente ensinamentos que contradizem, ao menos em vários pontos importantes (a liberdade religiosa e o indiferentismo dos Estados, a nova eclesiologia latitudinarista do «subsistit», o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, a colegialidade e o sacerdócio comum, a nova liturgia, o novo Código de Direito Canônico), os dados objetivos do Magistério constante, já claramente proposto com a autoridade requerida. São, em segundo lugar, ensinamentos que trazem como consequência prática uma protestantização generalizada dos fiéis católicos. São, em terceiro lugar, ensinamentos que se dão como aqueles de um novo «magistério», que os Papas João XXIII[13] e Paulo VI[14] apresentaram como sendo do tipo pastoral; e do qual o Papa Bento XVI[15] disse que estava sendo proposta a redefinição da relação da fé da Igreja, em relação a certos elementos essenciais do pensamento moderno.
Então é possível concluir dizendo que: primeiramente, os ensinamentos conciliares não são certamente de natureza magisterial em todos aqueles pontos particulares e isolados em que são contrários às verdades já definidas pelo Magistério infalível ou constantemente propostas pelo Magistério ordinário; em segundo lugar, quanto aos outros pontos, nós estamos em dúvida, porque os ensinamentos conciliares procedem globalmente de um novo «magistério» de tipo pastoral, cuja intenção «vicia a natureza, o conteúdo, o papel e o exercício do Magistério eclesiástico»[16], e duvidosamente faz parte do Magistério propriamente dito. Por isso que se os consideramos formalmente como a expressão desse novo «magistério» (e não somente na medida em que eles podem ser materialmente conformes à Tradição, e eventualmente se beneficiarem da autoridade do Magistério anterior), esses ensinamentos conciliares são duvidosamente de natureza magisterial. Em razão dessa dúvida, parece-nos prudente, por regra geral, evitar apresentar na nossa pregação as declarações do novo «magistério» como argumentos revestidos de uma autoridade magisterial propriamente dita, a fim de não inspirar a respeito dos ensinamentos conciliares e pós-conciliares uma confiança que se mostraria prejudicial no longo prazo para o espírito dos nossos fiéis. Com isso, sobre todos os pontos isolados em que esses ensinamentos são materialmente e aparentemente conformes à Tradição (como por exemplo a condenação do sacerdócio feminino em Ordinatio sacerdotalis), a mesma prudência não nos impede de levá-los em conta e de tirar, na medida do possível, um razoável proveito deles, utilizando-os de uma maneira ou de outra, abaixo do grau de autoridade magisterial, em particular como argumentos ad hominem ou a título de assunto informativo ou reflexão teológica.
Essa dupla conclusão se impõe do fato de que nós julgamos a árvore pelos seus frutos, em conformidade com o método preconizado e seguido por Mons. Lefebvre: «Sem rejeitar em bloco o Concílio, penso que ele é o maior desastre deste século e de todos os séculos passados, desde a fundação da Igreja. Nisso eu não faço senão julgar seus frutos, utilizando o critério dado por Nosso Senhor (Mt VII, 16)»[17]. Com efeito, esse juízo é a conclusão de um raciocínio a posteriori, que remonta do objeto do ensinamento à natureza duvidosamente magisterial desse ensinamento, como do efeito à sua causa formal. Esse caráter duvidoso do ensinamento se acentua quando os detentores da autoridade afirmam ademais uma mudança no nível de sua intenção. E esse juízo parece ainda mais justificado se levarmos em conta a mentalidade liberal que infecta seus espíritos.
Esta dupla conclusão se dá como
verdadeira não especulativamente, mas praticamente falando. Não é uma conclusão
dogmática estabelecida pela lei e nem mesmo pela teologia. É uma conclusão
estabelecida pela prudência sobrenatural e o Dom de Conselho[18]. Ela é
verdadeira, portanto, até segunda ordem e mantendo salvo o juízo futuro do
Magistério da Igreja, que Deus certamente suscitará para esclarecer todas as
dúvidas levantadas pela crise presente.
Resposta aos argumentos
1. Ao primeiro nós respondemos que esse argumento, no que ele contesta a posição «minimalista», decorre logicamente de um duplo postulado. O primeiro postulado é o da continuidade sistemática de todos os ensinamentos conciliares com a Tradição, em nome da inerrância do Concílio; trata-se aí precisamente de um postulado, ou seja, de uma posição não verificada, e inverificável, visto que os fatos a contradizem. O segundo postulado é o da mens segundo a qual os autores dos ensinamentos conciliares teriam a intenção de exercer um ato de Magistério, embora não infalível; trata-se novamente de um postulado, visto que esta intenção não está provada. Temos razões mais sérias para presumir em todos os sucessores de João XXIII e Paulo VI a intenção radical e ordinária de se vincular aos pressupostos liberais e personalistas do pensamento moderno. Em seu livro publicado em 1982, Les Principes de la théologie catholique, o Cardeal Joseph Ratzinger afirma que a intenção fundamental do Concílio Vaticano II está contida na constituição pastoral Gaudium et spes[19]. O prefeito da fé afirma: «O texto faz o papel de um contra-Syllabus na medida em que ele representa uma tentativa de reconciliação oficial entre a Igreja e o mundo, tal como ele passou a ser desde 1789». Em 1984, o mesmo Cardeal Ratzinger declara ainda que o Concílio foi reunido para fazer entrar na Igreja doutrinas que nasceram fora dela, doutrinas que vêm do mundo[20]. O discurso de 22 de dezembro de 2005 afirma também que o Concílio Vaticano II se propôs definir de uma maneira nova «a relação entre a fé da Igreja e determinados elementos essenciais do pensamento moderno». Portanto, o Vaticano II foi estabelecido com o propósito de harmonizar a pregação da Igreja com os princípios do pensamento moderno e liberal saído de 1789. Tal é também a constatação feita por Mons. Lefebvre desde o fim do Concílio: «Nós assistimos ao casamento da Igreja com as ideias liberais. Seria negar a evidência, fechar os olhos se não afirmarmos corajosamente que o Concílio permitiu àqueles que professam os erros e as tendências condenadas pelos Papas supracitados que cressem legitimamente que suas doutrinas estavam a partir de então aprovadas»[21]. Mais tarde, em Écône, ele dirá: «Então toda essa concepção que eles têm os impede de realizar atos nas exatas condições e com a mesma concepção que tinham os papas de outrora»[22]. Essa intenção fundamental não foi recusada, ela inclusive é sempre implicitamente mantida na referência habitual (e mais frequentemente exclusiva) que os homens da Igreja fazem ao Concílio Vaticano II. Ela torna duvidosa a natureza magisterial da pregação habitual desses homens da Igreja.
2. Ao segundo nós respondemos que, mesmo que se admita por pura hipótese (dato non concesso) que os ensinamentos conciliares sejam sobre alguns pontos conformes à Tradição, esses pontos se encontram inseridos em uma síntese global que é contrária à Tradição católica de sempre. Nós podemos nos ater ao princípio de análise que nos deixou Mons. Lefebvre: «O Concílio foi desviado de seu fim por um grupo de conspiradores e nos é impossível entrar nessa conspiração, mesmo que tivessem muitos textos satisfatórios no Concílio. Porque os bons textos serviram para que fossem aceitos os textos equívocos, minados e ardilosos»[23]. O que Mons. Lefebvre diz aqui do Concílio globalmente considerado pode-se dizer também de maneira análoga de todos os ensinamentos pós-conciliares globalmente considerados: nós não podemos aprovar esse novo «Magistério», mesmo que ele tivesse muitos textos materialmente satisfatórios, porque esses textos materialmente bons se inscrevem formalmente em uma lógica ruim e servem para tornar aceitável outros textos equívocos, minados e ardilosos. Por outro lado, mesmo sobre os pontos assinalados à maneira de exemplo, não é difícil mostrar que a conformidade com os ensinos da Tradição é mais aparente que real. A sacramentalidade do episcopado tal como Lumen gentium ensina[24] e os pressupostos epistemológicos de Ordinatio sacerdotalis[25] situam-se numa óptica que duvidosamente é aquela da Tradição.
3. Com o terceiro concordamos que a indefectibilidade da Igreja faz com que seja necessária a existência e o exercício perpétuo de um Magistério vivo, mas negamos que a natureza duvidosamente magisterial dos ensinamentos da hierarquia desde o Vaticano II resultaria na ausência absoluta de todo exercício de todo o Magistério em toda a Igreja, e isso por duas razões. Primeira e fundamentalmente porque o Magistério vivo que é necessário à indefectibilidade da Igreja não se reduz ao Magistério presente[26], porquanto ele integra todos os atos do Magistério passado. Depois, porque o Magistério presente se exerce enquanto tal no âmbito de uma ação comum ordenada, e não se reduz somente à atividade do Papa e nem só à atividade comum de todos os bispos. A unidade e a perpetuidade do exercício do Magistério são mantidas sempre que tiver ao menos uma parte dos pastores (ou até mesmo um só) que se mantenha fiel para transmitir a fé[27]. E a dúvida que nós colocamos diz respeito ao ensinamento posterior ao Vaticano II desde um ponto de vista precisamente lógico e não cronológico: todo ensinamento formalmente conciliar é duvidoso no sentido de que ele procede conforme a intenção formal indicada no princípio de resposta e comumente adotado pela hierarquia, queira ou não, em sua pregação oficial. O objetante coloca aqui um dilema que pode se reduzir a esses dois termos: ou o «magistério» conciliar presente é o Magistério da Igreja, ou o Magistério da Igreja não existe; ora, o Magistério da Igreja não pode não existir; portanto, o, o «magistério» conciliar presente é o Magistério da Igreja. Isso é esquecer que a regra da verdade em matéria de fé e costumes está suficientemente estabelecida na Igreja de uma maneira própria à condição humana, ou seja, a partir do momento em que o Magistério é exercido através de alguns atos de ensino de alguns pastores, sejam eles do passado, ou mesmo do presente, mas não necessariamente através de todos os atos de ensino de todos os pastores. Todo fiel pode recorrer a esses certos atos e se apoiar, encontrando neles a certeza necessária de ter encontrado a garantia que é preciso para professar sua fé na unidade católica da Igreja, e isso mesmo que a Providência autorizasse por algum tempo uma certa carência em todos os demais atos. Conforme sublinha Franzelin, já citado, a época do arianismo manifesta seriamente a possibilidade de uma situação parecida.
4. Ao quarto nós respondemos que a citação atribuída a Mons. Lefebvre está tirada de seu contexto. Trata-se de uma nota que especifica o verdadeiro significado de certos pontos evocados na troca de cartas entre Mons. Lefebvre e o Cardeal Ratzinger: «Supondo que os textos do Vaticano II sejam atos magisteriais, três fatos permanecem inegáveis. Primeiramente, diferente de todos os concílios ecumênicos anteriores, o Vaticano II se pretendeu “Concílio pastoral” e não definiu nenhum ponto doutrinal no sentido de definição irreformável. Por conseguinte, os documentos desse concílio no máximo caem sob a jurisdição do Magistério ordinário da Igreja, no qual não está excluída a possibilidade de encontrar erros». Esse «supondo que» (dato non concesso) dá todo o sentido verdadeiro à citação. Disso fica claro que não se poderia extrair daí o argumento que o objetante gostaria de encontrar. Ademais, o fim da nota especifica: «Atualizar a Igreja, ou seja, colocá-la em concordância com os erros modernos para fazê-la, por assim dizer, sair de seu gueto, virando as costas para a Tradição, que é veículo da fé, é uma heresia monstruosa. É o que fez o Vaticano II: casamento da Igreja com a ideologia de 1789». O verdadeiro pensamento de Mons. Lefebvre não obstante é mais complexo e nuançado que poderia parecer olhando só para uma nota isolada, citada a modo de contradição. Para se dar conta disso, basta percorrer as diferentes conferências em que o fundador da Fraternidade se exprime sobre a questão ao longo dos anos. Podemos perceber que Mons. Lefebvre raramente fala do Vaticano II como sendo um Magistério. Quando ele o faz, as precisões que ele emprega mostram que essa palavra não pode ser aplicada ao último Concílio em seu sentido próprio habitual. Com efeito, ele evoca: «um magistério que destrói o Magistério [de sempre], que destrói essa Tradição»[28]; «um magistério novo ou uma concepção nova do Magistério da Igreja, concepção que é, ademais, uma concepção modernista»[29]; «um magistério cada vez mais mal definido»[30]; «um magistério infiel, um magistério que não é fiel à Tradição»[31]; «um magistério que não é fiel ao Magistério de sempre»[32]; «um Magistério novo»[33]. Em uma correspondência oficial endereçada ao prefeito da Sagrada congregação para a doutrina da fé, Mons. Lefebvre sustentou o seguinte argumento: «Um magistério novo, sem raiz no passado, e com maior razão contrário ao Magistério de sempre, só pode ser cismático, quiçá herético»[34]. Eis o que é representativo da reflexão levada a cabo por Mons. Lefebvre diante da amplitude desse fenômeno inédito introduzido na Igreja pelo Vaticano II.
5. Estamos de acordo com o quinto e o
sexto argumentos, na medida em que se trata de uma verdade prática e de uma
conclusão prudente, não de uma verdade especulativa e de uma conclusão
dogmática ou teológica — salvo futuro judicio Ecclesiæ[35].
Notas
1. A
reflexão que vem sendo levada a cabo no interior da Fraternidade há pouco mais
de dez anos conseguiu delimitar de maneira cada vez melhor o problema. Cf. por
exemplo: Mons. Lefebvre, «Vatican II. L’autorité d’un concile en question»,
Institut Universitaire Saint-Pie X, Vu de haut n° 13, 2 006
; Autorité et réception du concile Vatican II. Études théologiques.
Quatrième symposium de Paris (6-7 au 8 octobre 2005), Vu de haut hors série,
2 006 ; Fraternité Sacerdotale Saint-Pie X, Magistère de soufre. Études
théologiques sur le concile Vatican II, Iris, 2009; Padre Jean-Michel Gleize:
«Magistère et foi», Courrier de Rome n° 346 (536) de julho-agosto 2011; «Une
question cruciale», Courrier de Rome n° 350 (540) de dezembro de 2011;
«Magistère ou Tradition vivante», Courrier de Rome n° 352 (542) de fevereiro de
2012; «À propos d’un article récent», Courrier de Rome n° 358 (548) de setembro
2012; «Pour un Magistère synodal?», Courrier de Rome n° 390 (581) de outubro de
2015. [Nota do blog: Sobre esse debate interno, recomendamos a obra “A
Candeia debaixo do alqueire” do Pe. Álvaro Calderón, especialmente o
texto “R. P. Jean-Michel Gleize: Para aproximar posições”, presente ao final da
2ª edição brasileira de 2020.]
2. Mons.
Lefebvre, «Carta de 20 de dezembro de 1966 endereçada ao Cardeal Ottaviani»
em J’accuse le Concile, Éd. Saint-Gabriel, Martigny, 1976, p.
107-111; Mons. Fellay, «Declaração por ocasião do 25º aniversário das sagrações
episcopais», 27 de junho de 2013, nº 4 em Cor unum, n° 106, p. 36;
Pe. Jean-Michel Gleize, Vatican II em débat, 2ª parte, capítulo XI,
nº 19, Courrier de Rome, 2012, p. 196.
3. As
ideias principais desse discurso estão sintetizadas na conferência dada na
sexta-feira, 4 de abril de 2014, endereçada aos membros do Instituto Bom Pastor
e publicada no site Catholicae Disputationes: «Le concile Vatican
II: renouveau dans la continuité avec la Tradition». Essa declaração foi
analisada e refutada em detalhes em dois artigos: «40 ans plus tard» e «40 ans
passés autour du Concile», Courrier de Rome n° 382 (572) de
dezembro de 2014.
4. Bento
XVI, «Carta de Sua Santidade Bento Xvi aos bispos da Igreja católica a
propósito da remissão da excomunhão aos quatro bispo consagrados pelo Arcebispo
Lefebvre» de 10 de março de 2019.
5. Pozzo, Ibidem,
p. 8.
6. Id, ibidem,
p. 11.
7. Fideliter,
número 46 de julho-agosto de 1985, p. 4; Cor unum, números 21, p.
30-32 e 101, p. 29 e seguintes.
8. Mons.
Lefebvre, Conferência de 2 de dezembro de 1982 em Écône em Vu de haut nº
13, p. 57.
9. «Conferência
em Écône de 12 de junho de 1984», Cospec nº 111.
10. Mons.
Fellay, «Declaração por ocasião do 25º aniversário das sagrações episcopais»,
27 de junho de 2013, nº 4, em Cor unum, nº 106, p. 36.
11. Santo
Tomas de Aquino, Suma Teológica, IIaIIae, questão 104, artigo 5,
corpus e ad 3.
12. Gal
1, 8.
13. DC nº
1387, col. 1382-1383 et DC nº 1391, col. 101.
14. DC nº
1410, col. 1 348 ; DC nº 1462, col. 64.
15. DC nº
2350, col. 59-63.
16. Mons.
Fellay, «Declaração por ocasião do 25º aniversário das sagrações episcopais»,
27 de junho de 2013, nº 4, em Cor unum, nº 106, p. 36.
17. Mons.
Lefebvre, Ils L’ont découronné, Éditions Fideliter, 1986, p 23.
18. Mons.
Lefebvre, «Conferência em Écone no dia 5 de outubro de 1978», Cospec,
nº 060A e 060B.
19. Les Principes de la théologie
catholique. Esquisse et matériaux,
Téqui, 1982, p. 423-440.
20. Cardeal
Joseph Ratzinger, Entretiens sur la foi, Paris, Fayard, 1985, p.
38.
21. Mons.
Lefebvre, «Carta de 20 de dezembro de 1966 endereçada ao Cardeal Ottaviani»
em J’accuse le Concile, Éd. Saint-Gabriel, Martigny, 1976, p.
107-111.
22. Mons.
Lefebvre, «Conferência em Écone no dia 12 de junho de 1984», Cospec,
nº 111.
23. Id., J’accuse le
Concile, p. 10.
24. Pe. Jean-Michel Gleize, «Une
conception collégiale de l’Église vue comme communion» em Instituto
Universitário São Pio X, Vatican II, les points de rupture. Actes du
Colloque des 10 et 11 novembre 2012, Vu de haut nº 20, 2014, p. 31-44;
«Évêque de Rome?», Courrier de Rome n° 376 (566) de mai 2014.
25. Pe. Jean-Michel Gleize, Vatican
II en débat, 2ª parte, capítulo X, nº 21, Courrier de Rome, 2012, p.
176-178.
26. Cf.
«40 ans passés autour du Concile», Courrier de Rome nº 382
(572) de dezembro de 2014; «Seulement le Magistère?», Courrier de Rome de
fevereiro de 2016 ; Pe. Jean-Michel
Gleize, Vatican II en débat, 2ª parte, capítulo X, nº 28, Courrier
de Rome, 2012, p. 204-205.
27. Cf. Jean-Baptiste
Franzelin, La Tradition divine, tese 12, Corolário nº 209, Courrier
de Rome, 2008, p. 149-150.
28. Mons.
Lefebvre, «Conferência em Écône no dia 29 de setembro de 1975» em Vu de
haut nº 13, p. 23.
29. Id.,
«Conferência em Écône no dia 13 de janeiro de 1977» em Vu de haut nº
13, p. 51.
30. Id.,
«Conferência em Écône no dia 13 de janeiro de 1977» em Vu de haut nº
13, p. 52.
31. Id.,
«Conferência em Angers no dia 20 de novembro de 1980» em Vu de haut nº
13, p. 53.
32. Id.,
«Conferência em Écône no dia 10 de abril de 1981» em Vu de haut nº
13, p. 55.
33. Id.,
«Conferência em Écône no dia 10 de abril de 1981» em Vu de haut nº
13, p. 56.
34. Id.,
«Carta de 8 de julho de 1987 ao Cardeal Ratzinger» em Vu de haut nº
13, p. 62.
35. NdT:
Salvo o juízo futuro da Igreja.