Carlos Bezerra
O pontificado de Francisco expôs, definitivamente, uma espécie de guerra civil no interior da própria Igreja, mas com repercussões políticas em âmbito mundial. Não se trata, porém, de uma batalha do bem contra o mal, como os mais simplistas gostariam que fosse; longe disso, trata-se na realidade de algo mais complexo, repleto de sutilezas, e que, por sua própria força de atração, ainda arrastará muitos para o erro, porque as pessoas se movem por suas paixões desordenadas e se cegam mesmo diante das evidências. Primeiramente definirei as principais características dos lados envolvidos neste conflito, com o que pretenderei ser mais didático na exposição dos fatos.
O Papa Francisco segue de forma objetiva
aquilo que mais obviamente se depreende das resoluções e disposições do
Concílio Vaticano II ( 1962-1965) e de toda extensão do próprio “magistério” conciliar:
ecumenismo, liberdade religiosa e colegialidade. Essa tríade correspondia,
desde o princípio, aos anseios de um governo mundial aos moldes
socialistas: igualitário, republicano e
democrático. O pontificado do Papa Paulo VI se encarregou do ecumenismo em
sentido mais restrito, ou seja, comunhão com os protestantes e os ortodoxos,
contribuindo para a farsa de um cristianismo que nunca existiu, porque a Igreja
de Cristo é, pura e simplesmente, a Igreja Católica.
No longo pontificado de João Paulo II, o
projeto se ampliou, correspondendo então aos anseios da “Nova Era” sonhada por
Madame Blavatsky, Annie Besant e Alice Bailey: o interconfessionalismo, ou
parlamento das religiões, como se verificou no encontro de Assis em 1986. Eram
os anos do Live Aid e da “We Are the World”, a canção que reuniu multidão de
artistas da música pop. Parecia mesmo o sonho de Lennon de um mundo sem
fronteiras, multicultural, sem céu nem inferno; apenas uma irmandade de homens.
João Paulo II era o líder religioso capaz de promover essa paz religiosa. O “comunismo”
ideal, o sonho de um mundo perfeito, sem pecado original – eram essas as marcas
de tal religião do amor.
Como era óbvio, a religião de Woodstock e
dos Beatles (John e Paul: ironicamente
os nomes dos papas do concílio) só poderia corresponder a uma utopia, “comunista”
em sua forma idealista , pacifista e contrária a qualquer forma de violência,
mas favorável a toda libertinagem: “É
proibido proibir”, “Toda forma de amor vale à pena”, “ Faça sexo, não faça a
guerra”. Logo, portanto, o comunismo
realmente existente teria de se transmutar, a partir de fins dos anos 80, para
alguma coisa mais panteísta; a ECO 92, a defesa da mãe terra, expressa na carta
redigida pelo próprio ex-presidente comunista Mikahil Gorbachev e assinada por
seu grande amigo João Paulo II, e a plena adesão da chamada “teologia da
libertação” eram sinais claros dessa mudança.
Entre o fim do pontificado de João Paulo II
e o de Francisco, houve um interregno importante para a compreensão deste
artigo: o movimento tradicionalista. Primeiramente lembremo-nos de Dom Marcel
Lefebvre: em verdade, sua defesa não foi a de um movimento chamado
tradicionalista, mas da tradição em sentido próprio, ou seja, a tradição
apostólica. “Transmiti integralmente”, disse ele, “tudo o que recebi de meus
predecessores e pretendo continuar a fazê-lo: a Doutrina ensinada por Nosso
Senhor Jesus Cristo.” E assim o fez porque se tornou evidente para ele que o
que ocorrido no e após o Concílio era a gênese de uma nova religião.
Mas voltemos ao dito movimento
tradicionalista, e veremos a antítese que marca a infernal e dialética hegeliana
nesse conflito. Bento XVI, em 2007, ampliou o indulto concedido anteriormente por
João Paulo II aos padres que desejassem celebrar a Missa no chamado “rito
extraordinário”, mas com a condição de aceitarem plenamente as disposições do
Concílio e, sobretudo, o reconhecimento do Missal de Paulo VI como o do rito
ordinário da Igreja. Obviamente, para os mais atentos, a questão já não era essencial
(doutrinal), mas acidental (prática): um apego à beleza da liturgia tridentina
em oposição aos excessos do Missal de Paulo VI. Bento XVI compreendeu bem que o
debate deveria ficar restrito apenas à Missa. O tradicionalismo não lhe era um
problema, e já veremos por quê.
Agora tratemos do outro lado envolvido neste
conflito: a “Tradição”. Há uma tradição com T maiúsculo, que não é a tradição
apostólica defendida por Monsenhor Lefebvre, mas a chamada “Tradição perene”, cujos
principais expoentes são René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda Coomaraswamy,
Julius Evola e outros mais recentes, de que falaremos depois.
Em síntese, a Tradição perene defende que
Deus revelou uma religião primordial no início da humanidade, cuja essência
porém com o tempo se esoterizou, ou seja, ficou restrita a um grupo de homens
que conseguiam unir-se plenamente ao divino, enquanto para a maioria da
humanidade a religião seria apenas algo externo (exotérico), com ritos e
práticas litúrgicas tradicionais e adequadas a cada religião. Portanto, a
Tradição primordial é o fundamento de todas as religiões em sua busca de união
com a divindade, não devendo jamais se esvaziar daquilo que tem de mais
significativo em suas práticas ritualísticas.
Naturalmente, o Tradicionalismo perene
tende a opor-se a toda e qualquer forma de modernismo, globalismo, ecumenismo, multiculturalismo,
comunismo, nova era, socialismo, porque busca exatamente o contrário disso: o “nacionalismo”
e a tradição de todas as religiões, pois que sua união só pode dar-se de forma
transcendente, o que implica a desigualdade entre os homens. E, com efeito, somente
os pneumáticos ou espirituais podem unir-se ao divino. Portanto, o inimigo dos perenialistas
é tudo aquilo que eles próprios denominam Nova Ordem Mundial, Deep State, Deep
Church e, mais recentemente, Great Reset. Aí está o projeto de Steve Bannon, perenialista
seguidor de René Guénon e Julius Evola, articulador político da campanha de
Donald Trump em 2016 e da atual campanha de Jair Bolsonaro por sua reeleição.
Mas Bannon tem seus olhos também voltados para a Europa, para aquilo que ele
chama Cruzada pela Civilização judaico-cristã Ocidental, e para tal
empreendimento se faz necessária uma forte oposição ao Papa Francisco, seu
inimigo número um. Para isso é que Bannon arrendou o antigo mosteiro de Trisult,
a poucos quilômetros de Roma, contando com o apoio do Instituto Dignatis
Humanae, do qual fazem parte muitos cardeais e figuras proeminentes, como Matthew
Festing, ex-grão mestre da Ordem de Malta. No dizer de Bannon, é fundamental formar uma escola de gladiadores para assumir
a direção da Igreja e promover uma restauração da tradição – nos moldes, claro,
desejados por René Guénon. Mas isso só poderá ser bem-sucedido com a adesão de
todos os movimentos tradicionalistas católicos, em algo que se pode chamar a
união dos clãs: a FSSP, todas as comunidades Ecclesia Dei, os sedevacantistas,
a Resistência e sobretudo a FSSPX.
Obviamente, muitos católicos, apegados antes
aos sentidos, se deixam levar sobretudo pela beleza do rito tridentino,
principalmente quando acompanhado de canto gregoriano, em uma bela Igreja ou
catedral, ou ao som de um órgão, ou de um coral polifônico. Esses católicos
serão muito piedosos, lerão dezenas de livros de espiritualidade e de vidas dos
santos, mas pouco se importarão com a conversão do mundo a Nosso Senhor Jesus
Cristo. Continuarão a defender as liberdades modernas, a democracia
partidarista e o Estado laico, desde que
possam viver seu catolicismo tradicional. Por isso, muitos rejeitarão a Missa
de Paulo VI e o Concílio Vaticano II. Desejarão ardentemente alguma restauração
antimodernista. Mas outra característica desses católicos já aprisionados pelo
Tradicionalismo perenialista é justamente sua agenda oposta à que eles
identificam nas esquerdas: o imigracionismo, o movimento LGBT, as políticas pró-aborto
e o modelo pedagógico de Paulo Freire. De fato, toda essa agenda é demoníaca,
mas o erro é associá-la apenas às esquerdas, o que leva tais católicos a aderir,
sem restrições, à nova direita impulsionada pelo mesmo perenialismo
internacional, quando em verdade o perigo está em ambos os lados. E observe-se
que nenhum dos dois lados se opõe ao Concílio Vaticano II em sua essência: a
religião do homem.
É que é o humanismo a fonte de um e de
outro mal, ou seja, tanto do modernismo como do perenialismo, os quais de fato
se complementam, porque seu resultado será sempre um catolicismo cabalístico em
um mundo em ruínas e pronto para o reinado do Anticristo final.