Carlos Nougué
Nota prévia: este artigo foi publicado
orginalmente no Facebook, donde a última parte de seu título.
A chamada “hermenêutica da continuidade”
não é uma invenção de Bento XVI: é própria do mesmo Concílio Vaticano II. Consiste
em mostrar-se em perfeita continuidade com o magistério autêntico e a tradição
da Igreja mediante uma novilíngua: usam-se o mais possível os termos
tradicionais, com significado todavia não só diferente mas, em questões
centrais, perfeitamente oposto.
Pois bem, o “Catecismo da Igreja Católica”,
promulgado por João Paulo II em 1992, é um dos cumes da hermenêutica da
continuidade. É um esforço titânico por não afastar-se da terminologia do magistério
tradicional; e certamente este foi um dos motivos de ter sido tão bem acolhido
não só pelos que nasceram depois do CVII, mas até por velhos católicos (mal)
formados no ambiente anterior. Hoje é brandido pela maioria dos católicos – em grande
parte sem culpa própria – como a mais pura e verdadeira expressão da fé, razão
por que este meu artigo mexe em casa de marimbondo, com a consequência dita em
seu título.
Como, porém, graças a Deus, nunca me moveu
nem me move a busca de sucesso, devo dizer aqui que este Catecismo é tudo menos
uma pura e verdadeira expressão da fé. Nega a fé em pontos-chave. Por exemplo:
retira ao magistério da Igreja o carisma da infalibilidade e transfere-o ao
Povo de Deus por si; destrona Cristo na sociedade e afirma a “[mal]sã laicidade”;
nega a capacidade da razão e da abstração para entender, na parca medida de nosso
possível, os artigos da fé, e, negando assim um aristotelismo-tomismo assumido
infalivelmente pelo magistério anterior, adere à simbólica neokantiana de
autores publicados pela Loyola e pela Paulus, como Paul Ricoeur, Mircea Eliade,
Carl Jung, Ernst Cassirer, Susanne Langer (filósofa cuja doutrina sobre a arte,
no entanto, como o mostro no livro Da Arte do Belo, tem alguma utilidade
se depurada de seu neokantismo); nega que a fé nos chegue “ex audito”, pelo
ouvido, pela audição mediante a pregação apostólica das proposições ou artigos
de fé, para afirmar a gnóstica doutrina da “experiência presencial” (vide
sua defesa, por exemplo, por OdC); e sobretudo nega o “escândalo da cruz” e o
substitui pela sutil mas hereticíssima doutrina do “mistério pascal”, da qual
decorre, por exemplo, a missa nova e seu caráter essencialmente memorial e convivial, não
sacrifical: com efeito, para esta doutrina, que inapelavelmente cai sob o
anátema de Trento, a Redenção não decorre do sacrifício da Cruz, mas sobretudo
da Ressurreição de Cristo, e fez-se por todo o gênero humano com vontade
antecedente e com vontade consequente, motivo pelo qual, se o inferno existe,
está ao menos pouco povoado.
Exagero
eu? Não: nos n.
604 e 605 do Catecismo de João Paulo II, sob o título de “Deus tem a iniciativa
do amor redentor universal”, lemos: “Ao entregar seu Filho por nossos pecados,
Deus [deveria dizer 'Deus Pai', mas, com odor de arianismo, não o faz]
manifesta que seu desígnio sobre nós é um desígnio de amor benevolente que
precede a todo mérito de nossa parte... [e até parece a
doutrina tomista da predestinação…]. Jesus recordou no final da parábola da ovelha
perdida que este amor é sem exceção: ‘Da mesma maneira, não é vontade de vosso
Pai celestial que se perca um só destes pequenos’ (Mt 18, 14). Afirma que dá ‘sua
vida em resgate de muitos’ (Mt 20, 28); este último termo não é restritivo: opõe
o conjunto da humanidade à única pessoa do Redentor que se entrega para salvá-la
[donde o ‘por todos’ da missa nova, expressão que Bento XVI tentou corrigir substituindo-a
pela tradicional ‘por muitos’, mas entendendo-a neste sentido não restritivo do
Catecismo amarelinho]. A Igreja, seguindo os apóstolos, ensina que Cristo morreu
por todos os homens sem exceção: ‘Não há, nem houve nem haverá homem algum por
quem não haja padecido Cristo’ (Concílio de Quiercy)”. A intenção está clara:
Cristo veio salvar o gênero humano com vontade consequente; mas, sendo Deus, o
que quis ele o fez; razão por que a redenção é universal. E, para sustentá-lo
nisto, o Catecismo traz em seu apoio nada menos que o Concílio de Quiercy (no
qual aliás me fundo para mostrar a justeza da doutrina tomista da predestinação,
em “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo”, in Do Papa Herético e outros
opúsculos). Sucede, no entanto, que a frase do cânon citado não termina aí.
Ei-la inteira: “Não há, nem houve nem haverá homem algum por quem não haja
padecido Cristo, ainda que nem todos sejam
redimidos pelo mistério de sua paixão” (Denzinger 319). Diante de tal
supressão, é difícil não suspeitar de malícia. Como quer que seja, vê-se que
pelo só e mesmo cânon do Concílio de Quiercy o Catecismo, por sua doutrina do “mistério
pascal” em perfeita continuidade com o CVII, já se encontra sob anátema. E que me
venha a perda de seguidores...