segunda-feira, 2 de agosto de 2021

O Catecismo de João Paulo II – um dos cumes da “hermenêutica da continuidade”, ou de como perder seguidores por uma só postagem...

                                                                                                                         Carlos Nougué

Nota prévia: este artigo foi publicado orginalmente no Facebook, donde a última parte de seu título.

A chamada “hermenêutica da continuidade” não é uma invenção de Bento XVI: é própria do mesmo Concílio Vaticano II. Consiste em mostrar-se em perfeita continuidade com o magistério autêntico e a tradição da Igreja mediante uma novilíngua: usam-se o mais possível os termos tradicionais, com significado todavia não só diferente mas, em questões centrais, perfeitamente oposto.

Pois bem, o “Catecismo da Igreja Católica”, promulgado por João Paulo II em 1992, é um dos cumes da hermenêutica da continuidade. É um esforço titânico por não afastar-se da terminologia do magistério tradicional; e certamente este foi um dos motivos de ter sido tão bem acolhido não só pelos que nasceram depois do CVII, mas até por velhos católicos (mal) formados no ambiente anterior. Hoje é brandido pela maioria dos católicos – em grande parte sem culpa própria – como a mais pura e verdadeira expressão da fé, razão por que este meu artigo mexe em casa de marimbondo, com a consequência dita em seu título.

Como, porém, graças a Deus, nunca me moveu nem me move a busca de sucesso, devo dizer aqui que este Catecismo é tudo menos uma pura e verdadeira expressão da fé. Nega a fé em pontos-chave. Por exemplo: retira ao magistério da Igreja o carisma da infalibilidade e transfere-o ao Povo de Deus por si; destrona Cristo na sociedade e afirma a “[mal]sã laicidade”; nega a capacidade da razão e da abstração para entender, na parca medida de nosso possível, os artigos da fé, e, negando assim um aristotelismo-tomismo assumido infalivelmente pelo magistério anterior, adere à simbólica neokantiana de autores publicados pela Loyola e pela Paulus, como Paul Ricoeur, Mircea Eliade, Carl Jung, Ernst Cassirer, Susanne Langer (filósofa cuja doutrina sobre a arte, no entanto, como o mostro no livro Da Arte do Belo, tem alguma utilidade se depurada de seu neokantismo); nega que a fé nos chegue “ex audito”, pelo ouvido, pela audição mediante a pregação apostólica das proposições ou artigos de fé, para afirmar a gnóstica doutrina da “experiência presencial” (vide sua defesa, por exemplo, por OdC); e sobretudo nega o “escândalo da cruz” e o substitui pela sutil mas hereticíssima doutrina do “mistério pascal”, da qual decorre, por exemplo, a missa nova e seu caráter essencialmente memorial e convivial, não sacrifical: com efeito, para esta doutrina, que inapelavelmente cai sob o anátema de Trento, a Redenção não decorre do sacrifício da Cruz, mas sobretudo da Ressurreição de Cristo, e fez-se por todo o gênero humano com vontade antecedente e com vontade consequente, motivo pelo qual, se o inferno existe, está ao menos pouco povoado.

Exagero eu? Não: nos n. 604 e 605 do Catecismo de João Paulo II, sob o título de “Deus tem a iniciativa do amor redentor universal”, lemos: “Ao entregar seu Filho por nossos pecados, Deus [deveria dizer 'Deus Pai', mas, com odor de arianismo, não o faz] manifesta que seu desígnio sobre nós é um desígnio de amor benevolente que precede a todo mérito de nossa parte... [e até parece a doutrina tomista da predestinação…]. Jesus recordou no final da parábola da ovelha perdida que este amor é sem exceção: ‘Da mesma maneira, não é vontade de vosso Pai celestial que se perca um só destes pequenos’ (Mt 18, 14). Afirma que dá ‘sua vida em resgate de muitos’ (Mt 20, 28); este último termo não é restritivo: opõe o conjunto da humanidade à única pessoa do Redentor que se entrega para salvá-la [donde o ‘por todos’ da missa nova, expressão que Bento XVI tentou corrigir substituindo-a pela tradicional ‘por muitos’, mas entendendo-a neste sentido não restritivo do Catecismo amarelinho]. A Igreja, seguindo os apóstolos, ensina que Cristo morreu por todos os homens sem exceção: ‘Não há, nem houve nem haverá homem algum por quem não haja padecido Cristo’ (Concílio de Quiercy)”. A intenção está clara: Cristo veio salvar o gênero humano com vontade consequente; mas, sendo Deus, o que quis ele o fez; razão por que a redenção é universal. E, para sustentá-lo nisto, o Catecismo traz em seu apoio nada menos que o Concílio de Quiercy (no qual aliás me fundo para mostrar a justeza da doutrina tomista da predestinação, em “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo”, in Do Papa Herético e outros opúsculos). Sucede, no entanto, que a frase do cânon citado não termina aí. Ei-la inteira: “Não há, nem houve nem haverá homem algum por quem não haja padecido Cristo, ainda que nem todos sejam redimidos pelo mistério de sua paixão” (Denzinger 319). Diante de tal supressão, é difícil não suspeitar de malícia. Como quer que seja, vê-se que pelo só e mesmo cânon do Concílio de Quiercy o Catecismo, por sua doutrina do “mistério pascal” em perfeita continuidade com o CVII, já se encontra sob anátema. E que me venha a perda de seguidores...


P.S.: amanhã, se Deus quiser, publicarei aqui a terceira e última parte de minha série “A Penetração do Liberal-conservadorismo na Tradição Católica”, cujo subtítulo será: “Escândalos e Irracionalismo”.