Carlos Nougué
Santo Tomás, na “Suma Teológica”, diz que em
princípio alguém pode ser moralista sem ter uma vida moral. E está
corretíssimo. Mas há que acrescentar a isso outras coisas ditas pelo mesmo
Santo ao longo de sua vasta obra. Sobretudo, que, tendo o pecado original
afetado de modo profundo a capacidade de operação de nossas potências – e a
operação é o último grau de perfeição do ente –, o fato é que sem o auxílio da
graça um moralista que não tenha vida moral não poderá alcançar maiores
alturas na ciência ética, de modo que contribua para sua ampliação. Veja-se o caso de S. Tomás, que foi cinzelado especialmente por
Deus para, isento de toda tentação, escrever as maiores obras de que o espírito
humano já foi capaz. Mas alma tão beneficiada não poderia deixar de ser mística
no sentido preciso de estar em união perpétua com Deus, o que, se sem dúvida se
deve à graça, supõe por outro lado méritos devidos ao bom uso do livre-arbítrio
sem os quais S. Tomás não teria crescido na amizade com Deus. Nada disto quer
dizer, todavia, que a obra de S. Tomás seja mística no sentido em que o são as
obras de um S. João da Cruz. A do Dr. Angélico é teológico-sagrada em sentido
estrito, ainda que possa dizer-se mística em sentido lato; mas, por ser teológico-sagrada
em sentido estrito, supõe da parte de seu autor considerável esforço de estudo
próprio, e estudo no sentido corrente. O que sucede é que suas conclusões que
tangenciam o místico podem dizer-se em palavras perfeitamente humanas e
cristalinas, com o que se negam, assim, os exageros “místicos” ou gnósticos ou
modernistas que hoje infestam de tantos modos a Igreja – ao passo que as obras
de um S. João da Cruz não raro se vazam em metáforas (ou analogias de proporção
imprópria), porque, com efeito, S. João da Cruz não quer concluir ao modo
teológico-sagrado, o que supõe o silogismo demonstrativo, mas expor na medida
do possível uma experiência sobrenatural. E tanto é verdade o que digo, que o
mesmo S. Tomás, após ter tido, ao que parece – e como Moisés e S. Paulo –, um
vislumbre da essência de Deus, já não quis escrever, porque para ele escrever
significava fazê-lo por silogismos demonstrativos. – Como quer que seja, de
todo o dito aqui fiquemos com o seguinte: ninguém será grande metafísico nem muito
menos bom teólogo sem o auxílio da graça, sem vida de oração, e sem estar em
amizade com Deus. Se se nega isto, nega-se ipso facto que nossa natureza esteja
decaída por causa do pecado original. Mas, hão de objetar, Aristóteles e Platão
eram pagãos e no entanto eram grandes metafísicos... Ao que se deve
responder: Crê-se que o Espírito Santo deixou de agir em almas como a de Platão
e a de Aristóteles? crê-se que estes não receberam graças atuais para ser o que
foram? Neste caso, crê-se mal.