quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O MAIOR DOS TOMISTAS

                                                                                                                                                                                                                                         Carlos Nougué

1) A história do tomismo, a partir da morte mesma de S. Tomás de Aquino, é uma história de sítio: desde a condenação de várias teses de S. Tomás pelo bispo de Paris Étienne Tempier até as adúlteras tentativas atuais de domesticar o tomismo fazendo-o amancebar-se com doutrinas espúrias e de todo alheias a ele, são sete séculos de resistência da parte de multidão de tomistas. Mas há que reconhecer que, pelo fato mesmo de o tomismo estar de mistura nas universidades com o scotismo, com o nominalismo, com o cartesianismo, com o kantismo, com o hegelianismo, com o existencialismo, quase nenhum dos grandes tomistas se mostrou infenso a alguma influência deformante de tais doutrinas. Não se veja nesta afirmação, todavia, um como zelo amargo de minha parte. Ao contrário, reconheço nesses homens verdadeiros heróis, cujo esforço teorético, muitas vezes inaudito, manteve acesa a chama da única doutrina filosófico-teológica que a Igreja fez sua (como o disseram João XXII, Bento XIII, Leão XIII, S. Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII...). Uma coisa porém é reconhecê-lo; outra, muito diferente, calar suas insuficiências em nome de uma reverência que nada tem que fazer no campo da ciência.

Observação: só falarei aqui dos tomistas mais importantes e que, ademais, conheço, sem nem de longe, obviamente, ter a pretensão de esgotar o assunto.

2) E a primeira e mais clamorosa falha dos grandes tomistas foi uma compreensível mas tão indevida reverência por Santo Tomás, que os impediu de ver que a doutrina do nosso Doutor progrediu. Com efeito, tanto no campo ontológico como, sobretudo, no gnosiológico, uma coisa é o Santo Tomás de Do Ente e da Essência, do De veritate, dos Comentários a Boécio, do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, etc., e outra é o Santo Tomás das Questões Disputadas sobre a Alma, do Comentário ao Liber de causis, das duas Sumas, do Compêndio de Teologia, do opúsculo Das Substâncias Separadas, etc. Entenda-se: não é que a doutrina de S. Tomás maduro ou sênior já não estivesse em germe na de S. Tomás jovem ou júnior. Estava-o, mas ao modo como um adulto bem formado está já presente nos desarmônicos membros de um adolescente. Pois bem, tal “desarmonia” tem um nome: a sombra de Avicena. S. Tomás foi pupilo de um grande avicenista, S. Alberto Magno, e, ademais, todo o ambiente universitário de então estava grandemente impregnado de avicenismo, quando não de averroísmo (lembre-se aliás que S. Tomás passou de chamar a Averróis “o Comentador [de Aristóteles]” a chamar-lhe, em A Unidade do Intelecto contra os Averroístas, “o Corruptor [de Aristóteles]”). Permaneceu-lhe essa sombra mais de uma década; mas S. Tomás livrou-se de todo dela, salvo pelo eventual uso de terminologia não tomista (antes avicenista ou até boeciana) em prol da compreensão de sua doutrina por parte de seus ouvintes e leitores de então. – Mas quem entre os tomistas foi capaz de assinalar vigorosa e taxativamente tal progressão doutrinal em S. Tomás? Quem foi capaz de mostrar que se não se reconhece tal progressão o tomismo fica indefeso ante a investida de doutrinas forâneas? O Mestre auxiliar de Tomás por antonomásia, o Cardeal Caetano? Este que vos escreve? Não. Foi o Padre Álvaro Calderón, sete séculos depois da morte de S. Tomás.             

3) Mas, se se trata da Lógica, quem deve dizer-se o maior dos tomistas? O Cardeal Caetano e sua negação da principalidade da analogia de atribuição intrínseca? João de S. Tomás e sua crença em que fosse do Mestre Tomás o longo e confuso opúsculo Summa totius Logicae Aristotelis, uma das causas pelas quais o mesmo João de Santo Tomás fundou toda uma longa escola (que culmina em Jacques Maritain) fundada, por sua vez, no triste imbroglio quanto à distinção entre lógica formal e lógica material? – Não. Na Lógica, o maior dos tomistas, sobretudo por seu De Analogia, é o P. Santiago Ramírez O.P., vindo logo depois o P. Calderón pela impressionante Introdução à Lógica de seus Umbrales de la Filosofía.

4) E quanto à Física? Reina absoluto o P. Álvaro Calderón, pelos dois tomos de La naturaleza y sus causas e pelo esotérico Curso de Física (ou melhor, de Cosmologia), que, Deo gratias, parece se publicará este ano como o terceiro tomo de La naturaleza... É verdade que La naturaleza... segue de perto o tratado físico de João de S. Tomás; mas, sem negá-lo, ultrapassa-o grandemente, além de que é o P. Calderón o primeiro tomista a assimilar perfeitamente as ciências modernas sem concordismo fácil. “Só” isto.

5) Se se trata porém da Política, qual será o maior dos tomistas? Aqui, é preciso falar antes da multidão de corruptores da doutrina política tomista (a da maturidade, a exposta, por exemplo, em Do Reino e na Suma Teológica, doutrina que em verdade é a mesma do magistério infalível da Igreja quanto à realeza de Cristo). A decadência começa com o nominalismo disfarçado de tomismo de Francisco de Vitoria e prossegue com Francisco Suárez, o introdutor nas escolas católicas de uma noção análoga à da vontade geral de Jean-Jacques Rousseau; para culminar, no século XX, numa sucessão de deformações mais ou menos graves, presentes no Cardeal Billot, em Louis Lachance, em Santiago Ramírez, no Cardeal Ottaviani e, sobretudo, em Jacques Maritain, o verdadeiro fautor do destronamento de Cristo no CVII. A tal sucessiva e longa débâcle não escaparam senão, imperfeitamente, S. Roberto Belarmino (que porém não era tomista) e, mais perfeitamente, o Cardeal Pie de Poitiers e o leigo Jean Ousset – e, muito à frente de todos, o nosso Padre Calderón, com Prometeu: a Religião do Homem e El Reino de Dios (e outros que ainda virão, se Deus quiser).

6) Quanto à tentativa geral de retornar a um tomismo mais puro, destacaram-se, já após Leão XIII, os padres Hugon, Gardeil e Fabro; mas nem sequer puderam divisar a perfeição com que o faria o P. Calderón ao longo de todas as suas obras (e trata-se de retorno, insista-se, a Santo Tomás sênior). Registre-se no entanto que aqui também há que destacar o P. Santiago Ramírez, cujo tropeço maior, como assinalado acima, foi na Política.

7) Mas, depois da Política, é na Psicologia e na Metafísica (as quais em prol da facilidade aqui misturo) que se há de falar de maior superioridade do P. Álvaro Calderón com respeito a todos os outros grandes tomistas. Por partes.

a) Antes de tudo, só o P. Calderón e poucos mais, depois de S. Tomás, não cederam de modo algum à tentação de dividir a Metafísica em partes subjetivas. Com efeito, os neotomistas tomaram de Leibniz, ainda que só de certo modo, a chamada “Teodiceia”, mediante a qual Leibniz pretendia conciliar Deus e o mal no mundo. Mas o que encontrou não é nada tomista, e Tomás de Aquino respondera-lhe previamente a ele de modo cabal em sua vasta obra. Sucede todavia que ao menos quase todos os neotomistas dividem a Metafísica em Ontologia e em Teodiceia, com o que se infringe a unidade simpliciter da Metafísica: esta, como a Teologia Sagrada, não tem partes subjetivas. É verdade também, infelizmente, que desde séculos anteriores alguns doutores e teólogos católicos passaram a dar à Teologia Sagrada partes subjetivas: Teologia Dogmática, Teologia Moral, etc. Mas a coisa agravou-se no âmbito do neotomismo.

b) Em várias obras, diz Garrigou-Lagrange O.P. que o “princípio de identidade” é o primeiro dos primeiros princípios; e ele certamente não foi o primeiro a dizê-lo. Por outro lado, em sua A Essência do Tomismo, Manser O.P. põe o “princípio da razão suficiente” entre os primeiros princípios. Mas nada disso é de Aristóteles nem de Tomás de Aquino: ambas as coisas são de Leibniz. Não que por serem de Leibniz sejam erradas; mas o fato é que também nisso errou Leibniz. O “princípio de identidade” (“todo ser é o que é”) responde ao matematicismo cartesiano-leibniziano, e corresponde à famosa e vácua fórmula 1 = 1 ou, algebricamente, A = A. Aí está um modo de ser profundo sem dizer absolutamente nada. Quanto porém ao “princípio da razão suficiente” (“nada existe sem razão suficiente”), responde ao idealismo de Leibniz: Deus conhecia todos os mundos possíveis, mas, como por sua sabedoria não podia agir sem razão suficiente, de todos os mundos possíveis só fez o melhor. É o chamado “otimismo” leibniziano. Mas Tomás de Aquino demonstra na Suma Teológica que Deus poderia ter criado outro e melhor mundo, ainda que nenhum mundo que Deus criasse pudesse ser inconveniente.

c) Quanto à distinção real entre essentia e esse (ou actus essendi, ato de ser), distinção que é o gonzo em torno do qual gira o tomismo, a maioria dos tomistas a defende expressamente, mas quase nunca convenientemente. Por quê? Porque confundem de algum modo ser ou ato de ser e existência ou ato de existir, com o que põem a perder de algum modo a distinção. Foi o P. Cornelio Fabro o campeão de um retorno mais perfeito ao gonzo do tomismo. Mas tampouco o fez perfeitamente, porque, com efeito, não deixa de incorrer em entitatismo, ou seja, o atribuir aos princípios de um composto a entitatividade deste, além de tentar engessar a doutrina com um rigor terminológico exacerbado. – De modo que também quanto a este ponto capital é o P. Calderón quem leva a palma: sobretudo em seu mais recente livro, El orden sobrenatural, o nosso sacerdote alcança a perfeita penetração da mente do Mestre Tomás.

d) Quanto ademais ao verbo mental  (a terminologia é dos tomistas, incluindo o P. Calderón, conquanto eu prefira chamá-lo verbo cordial, como insisto nas aulas da Escola Tomista), os tomistas dividem-se em dois extremos: o essencialismo de um Fabro ou de um Tonquédec (esta brecha para um indébito acordo com a epoché husserliana, tal como tentado por Edith Stein e pelos ecléticos tomistas de Navarra) e o existencialismo de um Maritain ou de um Gilson (e, ao cabo, também de Fabro, que aliás terminou sua carreira como um perfeito existencialista ao modo de Kierkegaard com uma boa pitada de voluntarismo scotista). Mas é outra vez o P. Calderón quem resgata a verdadeira doutrina do Mestre Tomás maduro, como se vê em seu mais recente livro.

e) Se se trata contudo da conversio ad phantasmata (a conversão ou retorno aos fantasmas) – ponto fulcral da Psicologia tomista –, efetivamente não conheço ninguém que sequer se aproxime do P. Calderón. É verdade que o P. Fabro e o Ferrariense (Francesco Silvestri) já haviam avançado bastante neste ponto; mas não haviam deixado de ficar a meio caminho. Leia-se El orden sobrenatural do P. Calderón, e saber-se-á por que o digo.

f) Quanto, por fim, ao “constitutivo formal” da essência divina, temos de um lado o tomismo autêntico (Capreolo, Báñez, Ledesma, Del Prado, Garrigou-Lagrange, Álvaro Calderón...) e de outro o tomismo espúrio (João de S. Tomás, os Salmanticenses, Billuart, Gonet...).

8) Se porém agora damos um salto para a Teologia Sagrada e para o espinhoso tema da predestinação, confesso que a doutrina de nenhum dos tomistas que li (e li muitos) foi capaz de agradar-me suficientemente, razão por que ainda fico com minha mesma exposição sobre o assunto em “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo” (in Do Papa Herético e outros opúsculos), que pretendo seja de todo fiel ao Santo Tomás da Suma Teológica. Veja-se, no entanto, que o P. Calderón nunca escreveu sobre isto.

Observação: aliás, por falar em mim, quanto à Arte do Belo, quanto à Gramática e quanto à questão do papa herético, minha referência sou eu mesmo; assim como creio que acabarei por ter como referências meu Comentário ao Apocalipse e minhas Questões Metafísicas... Se assim não fosse, por que afinal haveria de escrever livros?

9) Quer dizer então, Carlos Nougué, que o senhor não tem nenhuma divergência com o P. Álvaro Calderón? Tenho. Cito duas: a ordem em que se devem estudar as partes potenciais da Lógica (como o assinalo em “A Ordem das Disciplinas”, in Estudos Tomistas – Opúsculos II), e o caráter preciso da primeira operação do espírito (razão por que escrevi “Das Duas Primeiras Operações do Intelecto: uma Crítica a Maritain e a Outros Tomistas [incluindo o P. Calderón]”, in Do Papa Herético e outros opúsculos). Assinale-se todavia que, em seu mais recente livro, parece que o P. Calderón já não incorre, quanto à referida primeira operação, na deficiência que encontro nos Umbrales de la Filosofía.

10) Mas que são essas bagatelas diante do oceano de acertos do P. Álvaro Calderón? E não deixa de assombrar-me ver tantos narizes torcidos quando digo que o P. Calderón é meu grande mestre (depois de Tomás de Aquino, claro) e sobretudo que é o maior dos tomistas. Sua contemporaneidade o impediria? Mas tampouco deixa de assombrar-me, ou antes, horrorizar-me, que a obra do P. Calderón seja amplamente desconhecida no mesmo mundo hispânico e só tenha começado a traduzir-se ao português (do Brasil), mas não ao inglês, ao francês, ao alemão, ao italiano... Para mim, isso é uma sorte de “mistério de iniquidade.

Observação: quem sabe, no entanto, se o isolamento do Padre em seu amado Seminário de La Reja não é justamente uma das precondições para a grandeza e pureza de sua obra?

11) Muitos contudo hão de perguntar-se: Quem é esse Carlos Nougué para dizer tudo isso que acabamos de ler? Resposta simplicíssima: Sou este mesmo que vos escreve.