Carlos Nougué
2) Mas uma de minhas muitas “Questões Metafísicas”
será atinente ao sujeito (ou gênero sujeito, aquilo que com imprecisão a
maioria dos tomistas chama “objeto formal”) da Metafísica. Com efeito,
Aristóteles já a denominava Filosofia Primeira (porque trata das causas e
princípios primeiros) ou Teologia (porque trata de Deus). Se todavia trata de
Deus, que é a Causa primeira de tudo, a Causa das causas, por que então o
sujeito da Metafísica é, segundo o próprio Aristóteles, S. Tomás e os
principais tomistas, o ente enquanto ente, o ente comum, e não Deus mesmo?
Porque nenhuma ciência pode ter por sujeito algo cuja essência não nos é dado
conhecer (nesta vida), como, obviamente, é o caso de Deus. Claro, esta só
afirmação já dá pano para mangas, porque, com efeito, falando estritamente, não
conhecemos a essência senão dos gêneros (ou seja, uma essência – digamos –
potencial e pois imperfeita) e de uma única espécie especialíssima: o homem. Esta
dificuldade já a comecei a enfrentar em Da Arte do Belo, mas ainda há
muito que solucionar quanto a ela. Por outro lado, a afirmação de que não nos é
dado conhecer a essência de Deus (nesta vida) e que, portanto, dele conhecemos basicamente o que ele não é (trata-se
do conhecimento chamado apofático) levou teólogos importantes a não ver que
conhecemos, sim, já nesta vida, algo quiditativo ou essencial de Deus, sem o
que se cai no agnosticismo, por exemplo, de um Maimônides. Apenas, não o conhecemos
univocamente, mas por certo modo, superior, de equivocidade – a analogia. – A analogia,
porém, subdivide-se: pode ser de proporcionalidade imprópria ou própria, ou de
atribuição extrínseca ou intrínseca (alguns acrescentam a estas alguma espécie
mais); e há que assinalar aqui que a partir e por influência do Cardeal Caetano
a maioria dos tomistas põe que é por uma analogia de atribuição extrínseca
que se conhece o ente. Terão todavia razão quanto a isto o grande Cardeal
e sua multidão de importantes seguidores (entre os quais, assinale-se, não se
contam por exemplo o P. Santiago Ramírez e o P. Álvaro Calderón)?
3) Estamos obrigados a pôr que o ente se
conhece antes de tudo por uma analogia de atribuição intrínseca.
Para que se entenda isto, insista-se: a analogia pode ser de dois modos gerais,
ou seja, de razão simples ou atribuição, em que os analogados secundários
guardam uma razão proporcional a um primeiro e principal; ou de razão composta
ou proporcionalidade, em que a razão de dois termos é proporcional à razão de
dois outros. No primeiro caso, a quididade significada pelo nome dá-se de modo
primeiro e simpliciter no analogado principal, ao passo que os outros
analogados recebem o nome enquanto mantêm determinada relação proporcional com
o primeiro. No segundo caso, no entanto, o nome só indica em cada um dos
analogados certa relação de quididades proporcionalmente semelhantes, razão por
que aqui não se dá atribuição simpliciter. Sucede ademais que o conceito
de ente se reporta primeiramente, propriamente e simpliciter
à substância, devendo tudo o mais (partes e acidentes) referir-se à substância.
Não é difícil pois notar que a analogia do ente é de atribuição, e não
de proporcionalidade.
4) Não obstante, e como antecipado, a analogia
de atribuição pode ser extrínseca ou intrínseca. No primeiro caso, os
analogados secundários recebem seu nome por denominação extrínseca a partir do
primeiro analogado. No segundo caso, os analogados secundários recebem seu nome
por aquilo mesmo que são. É evidente contudo que tudo o que é de qualquer
modo e pode pois ser distinguido e apreendido pelo intelecto deve dizer-se ente
por aquilo mesmo que ele é. Sendo assim, é inescapável a conclusão de
que a analogia do ente é de atribuição intrínseca. Mas, como dito, o Cardeal
Caetano e multidão de importantes seguidores seus põem que a analogia do ente é
de atribuição extrínseca, razão por que, se na analogia do ente a substância
é analogado principal mas há predicação intrínseca em todos os modos, tal se
deve a que, em verdade, no mesmo ente sucedem as duas analogias de atribuição
(extrínseca) e de proporcionalidade. Entenda-se: enquanto se dá analogia de
atribuição (extrínseca), a substância é o analogado principal mas os outros
modos não se dizem entes pelo que eles mesmos são de fato, e sim tão somente
enquanto são algo da substância; ademais, os acidentes e outros modos
secundários dizem-se propriamente e intrinsecamente entes na medida em que se
dá também uma analogia de proporcionalidade – uma vez que todo ente só tem ser em
proporção à sua essência.
5) No entanto, como escreve o P. Calderón
em El orden sobrenatural – una inmersión en el tomismo profundo (Primera
parte – El misterio de Dios), esta doutrina do Cardeal Caetano e de seus
seguidores “não se ajusta à doutrina fundamental do ente primum cognitum
[primeiro conhecido], segundo a qual ambos os membros de toda distinção que o
intelecto estabeleça caem própria e absolutamente sob o conceito de ente, e não
por denominação extrínseca nem por proporção de aspectos; porque o intelecto nada
pode conhecer senão sob este conceito [de ente]”. Consigne-se, aliás, que
Santiago Ramírez O.P seguiu num primeiro momento a doutrina do Cardeal Caetano,
mas, após estudar profundamente e como ninguém até então a analogia (em seu volumosíssimo
De analogia, que está a esperar uma civilizatória tradução ao português),
passou a pôr que a melhor exegese tomista há de sustentar que a analogia do
ente é de atribuição intrínseca. Cf., aliás, o precioso livro de José
Miguel Gambra La analogia en general, síntesis tomista de Santiago Ramírez,
EUNSA, 2002 (p. 256-271).
6) Mas – e eis o tratamento principal e mais propriamente metafísico que darei a esta questão em Questões Metafísicas – a analogia do ente tem de ser de atribuição intrínseca antes de tudo (conquanto só o possamos ver ao fim de tudo) porque Deus, o analogado principal, é causa primeira e absoluta do ente, o que de imediato suscita a seguinte objeção: Mas Deus também é ente... Ao que se deve responder: Até por uma necessidade de nosso intelecto, tendemos a “definir” o ente com alguma composição, ou seja, boecianamente, como id quod est, aquilo que é, ou seja, aquilo que tem ser. Mas Deus, como o vemos ao cabo de nossa ascensão analógica, não é propriamente um ente que tenha ser, senão que é o próprio Ser subsistente por si mesmo, assim como a brancura seria subsistente se pudesse destacar-se da superfície branca. Em outras palavras, Deus é Ente, sim, mas não do mesmo modo como são entes os entes criados, porque, diferentemente destes, não tem ser, senão que é o Ser – motivo pelo qual pode criar ex nihilo (de nada) os demais entes. E este é o fundamento último e, insista-se, mais propriamente metafísico da analogia de atribuição intrínseca do ente – quando caímos de cheio na “dialética” entre o Ente ou Ser por essência e o ente por participação (conquanto não se alcance essa “dialética” sem passar pelo miolo do tomismo: a distinção real entre essência e ser ou ato de ser).
7) Mas haverá
mais em minha “Questão Metafísica”: assim como tudo quanto é per accidens se reduz ao que é per se, assim também toda analogia proporcional
se reduz à analogia de atribuição – e de atribuição intrínseca. Veja-se o caso
do transcendental verdadeiro.
“Verdadeiro”,
com efeito, diz-se com relação ao intelecto de várias maneiras. Em primeiro
lugar, como adequação dos conceitos com relação às coisas, razão por que
dizemos que o intelecto “é verdadeiro” quando pela simples apreensão ele se assimilou
à quididade ou essência da coisa: por exemplo, quando concebe de homem: animal
racional. Mas também se diz que o intelecto conhece o verdadeiro quando,
julgando-se a si mesmo, considera-se como adequado em seu conhecimento ao real:
O homem é animal racional. Mas também como adequação das palavras com
relação às coisas. Com efeito, quando expressamos qualquer proposição, dizemos
que é verdadeira se de fato corresponde à realidade significada. Não basta que
corresponda ao que pensamos; tem de adequar-se ao que são verdadeiramente as
coisas. Uma proposição pode até ser “sincera”, mas não deixa de ser falsa se lhe
falta a devida correspondência com a realidade. E, se alguém diz algo diferente
do que efetivamente pensa, dirá uma “mentira”, que todavia até pode per
accidens verdadeiro (ou seja, se o que pensava era falso). – Pois bem, nestes
modos vários se dá muito diversamente a razão de adequação a que se reporta a
noção de verdadeiro, motivo pelo qual temos aqui uma analogia de
proporcionalidade. Como no entanto há de ser manifesto, a referida adequação se
dá no intelecto, enquanto a coisa em si é o que é segundo seu modo de ser e essência.
Mas a adequação se dá justo quando a essência (ou melhor, sua espécie) se
encontra no intelecto e o reduz a cognoscente em ato, pelo que se pode dizer que
a verdade é o objeto próprio que define e especifica a potência intelectiva (o
que também dá pano para mangas). Sendo porém assim, acabamos por ver com luz
meridiana que a analogia do verdadeiro é, com efeito, uma analogia de atribuição
cujo primeiro analogado é a verdade conhecida, isto é, a que se dá no segundo
verbo mental ou cordial: a obra da segunda e propriamente reflexiva operação do
intelecto. Mas será que esta doutrina sobre a verdade, que é amplamente majoritária
entre os tomistas e que segue de algum modo o dito por S. Tomás em
sua obra de juventude De veritate, pode ter-se por segura? Ademais, como
toda analogia de proporcionalidade e toda analogia de atribuição extrínseca
podem reduzir-se, como dito mais acima, a uma analogia de atribuição intrínseca?
e como todas as analogias de atribuição intrínseca podem reduzir-se a uma
primeira? É sobretudo em torno disso que girará minha referida “Questão Metafísica”.
Observação final: como muitos me perguntam
se lançarei de fato o anunciado livro Tratado dos Universais, digo aqui
que ele será incorporado ao livro Questões Metafísicas – o que transfere
todo o seu assunto lógico para sua solução metafísica última.