segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

A ANALOGIA DO ENTE – UM MERO ESBOÇO OU ESQUEMA

                                                                                                                     Carlos Nougué

 1) Certos hereges usurpadores do nome tomista tacham o Padre Álvaro Calderón de “paleotomista”, querendo dizer com isso que ele se atém servilmente à letra de S. Tomás e despreza tudo o mais, incluindo os tomistas posteriores. São detratores que não podem senão sê-lo, porque em verdade são incapazes de sequer vislumbrar que o P. Calderón é o próprio antipaleotomista: porque ele foi nada menos que o primeiro a perceber e assinalar que a doutrina de S. Tomás padeceu progressão, da fase da juventude (de forte sombra aviceniana) à fase madura (a propriamente tomista). Mas foi justamente uma reverência servil ao Mestre, reverência que antes deslustra que enaltece sua figura e doutrina, o que fez que os tomistas anteriores ao P. Calderón, incluindo gigantes como o Cardeal Caetano, fossem incapazes de apreender a absoluta novidade do tomismo (tomasiano) – donde suas aporias e sua debilidade ante a filosofia e a ciência modernas. De tudo isso tratarei no livro Questões Metafísicas. Mas não por nada não hesito em dizer: o P. Calderón é o maior dos tomistas; e, se hoje sou capaz eu mesmo de escrever Da Arte do Belo – em que, quanto ao sujeito do livro, supero a Aristóteles, a S. Tomás e até, de certo modo, ao mesmo P. Calderón sem negá-los de modo algum – ou os futuros Da História e Sua Ordem a Deus e Questões Metafísicas – que, estou certo, deixarão embasbacado mais de um detrator –, não é senão graças à clarividência fundacional deste grande mestre argentino (atrás de cuja doutrina se divisa, ademais, um grande e santo sacerdote).  

2) Mas uma de minhas muitas “Questões Metafísicas” será atinente ao sujeito (ou gênero sujeito, aquilo que com imprecisão a maioria dos tomistas chama “objeto formal”) da Metafísica. Com efeito, Aristóteles já a denominava Filosofia Primeira (porque trata das causas e princípios primeiros) ou Teologia (porque trata de Deus). Se todavia trata de Deus, que é a Causa primeira de tudo, a Causa das causas, por que então o sujeito da Metafísica é, segundo o próprio Aristóteles, S. Tomás e os principais tomistas, o ente enquanto ente, o ente comum, e não Deus mesmo? Porque nenhuma ciência pode ter por sujeito algo cuja essência não nos é dado conhecer (nesta vida), como, obviamente, é o caso de Deus. Claro, esta só afirmação já dá pano para mangas, porque, com efeito, falando estritamente, não conhecemos a essência senão dos gêneros (ou seja, uma essência – digamos – potencial e pois imperfeita) e de uma única espécie especialíssima: o homem. Esta dificuldade já a comecei a enfrentar em Da Arte do Belo, mas ainda há muito que solucionar quanto a ela. Por outro lado, a afirmação de que não nos é dado conhecer a essência de Deus (nesta vida) e que, portanto, dele conhecemos basicamente o que ele não é (trata-se do conhecimento chamado apofático) levou teólogos importantes a não ver que conhecemos, sim, já nesta vida, algo quiditativo ou essencial de Deus, sem o que se cai no agnosticismo, por exemplo, de um Maimônides. Apenas, não o conhecemos univocamente, mas por certo modo, superior, de equivocidade – a analogia. – A analogia, porém, subdivide-se: pode ser de proporcionalidade imprópria ou própria, ou de atribuição extrínseca ou intrínseca (alguns acrescentam a estas alguma espécie mais); e há que assinalar aqui que a partir e por influência do Cardeal Caetano a maioria dos tomistas põe que é por uma analogia de atribuição extrínseca que se conhece o ente. Terão todavia razão quanto a isto o grande Cardeal e sua multidão de importantes seguidores (entre os quais, assinale-se, não se contam por exemplo o P. Santiago Ramírez e o P. Álvaro Calderón)?

3) Estamos obrigados a pôr que o ente se conhece antes de tudo por uma analogia de atribuição intrínseca. Para que se entenda isto, insista-se: a analogia pode ser de dois modos gerais, ou seja, de razão simples ou atribuição, em que os analogados secundários guardam uma razão proporcional a um primeiro e principal; ou de razão composta ou proporcionalidade, em que a razão de dois termos é proporcional à razão de dois outros. No primeiro caso, a quididade significada pelo nome dá-se de modo primeiro e simpliciter no analogado principal, ao passo que os outros analogados recebem o nome enquanto mantêm determinada relação proporcional com o primeiro. No segundo caso, no entanto, o nome só indica em cada um dos analogados certa relação de quididades proporcionalmente semelhantes, razão por que aqui não se dá atribuição simpliciter. Sucede ademais que o conceito de ente se reporta primeiramente, propriamente e simpliciter à substância, devendo tudo o mais (partes e acidentes) referir-se à substância. Não é difícil pois notar que a analogia do ente é de atribuição, e não de proporcionalidade.

4) Não obstante, e como antecipado, a analogia de atribuição pode ser extrínseca ou intrínseca. No primeiro caso, os analogados secundários recebem seu nome por denominação extrínseca a partir do primeiro analogado. No segundo caso, os analogados secundários recebem seu nome por aquilo mesmo que são. É evidente contudo que tudo o que é de qualquer modo e pode pois ser distinguido e apreendido pelo intelecto deve dizer-se ente por aquilo mesmo que ele é. Sendo assim, é inescapável a conclusão de que a analogia do ente é de atribuição intrínseca. Mas, como dito, o Cardeal Caetano e multidão de importantes seguidores seus põem que a analogia do ente é de atribuição extrínseca, razão por que, se na analogia do ente a substância é analogado principal mas há predicação intrínseca em todos os modos, tal se deve a que, em verdade, no mesmo ente sucedem as duas analogias de atribuição (extrínseca) e de proporcionalidade. Entenda-se: enquanto se dá analogia de atribuição (extrínseca), a substância é o analogado principal mas os outros modos não se dizem entes pelo que eles mesmos são de fato, e sim tão somente enquanto são algo da substância; ademais, os acidentes e outros modos secundários dizem-se propriamente e intrinsecamente entes na medida em que se dá também uma analogia de proporcionalidade – uma vez que todo ente só tem ser em proporção à sua essência.  

5) No entanto, como escreve o P. Calderón em El orden sobrenatural – una inmersión en el tomismo profundo (Primera parte – El misterio de Dios), esta doutrina do Cardeal Caetano e de seus seguidores “não se ajusta à doutrina fundamental do ente primum cognitum [primeiro conhecido], segundo a qual ambos os membros de toda distinção que o intelecto estabeleça caem própria e absolutamente sob o conceito de ente, e não por denominação extrínseca nem por proporção de aspectos; porque o intelecto nada pode conhecer senão sob este conceito [de ente]”. Consigne-se, aliás, que Santiago Ramírez O.P seguiu num primeiro momento a doutrina do Cardeal Caetano, mas, após estudar profundamente e como ninguém até então a analogia (em seu volumosíssimo De analogia, que está a esperar uma civilizatória tradução ao português), passou a pôr que a melhor exegese tomista há de sustentar que a analogia do ente é de atribuição intrínseca. Cf., aliás, o precioso livro de José Miguel Gambra La analogia en general, síntesis tomista de Santiago Ramírez, EUNSA, 2002 (p. 256-271).      

6) Mas – e eis o tratamento principal e mais propriamente metafísico que darei a esta questão em Questões Metafísicas – a analogia do ente tem de ser de atribuição intrínseca antes de tudo (conquanto só o possamos ver ao fim de tudo) porque Deus, o analogado principal, é causa primeira e absoluta do ente, o que de imediato suscita a seguinte objeção: Mas Deus também é ente... Ao que se deve responder: Até por uma necessidade de nosso intelecto, tendemos a “definir” o ente com alguma composição, ou seja, boecianamente, como id quod est, aquilo que é, ou seja, aquilo que tem ser. Mas Deus, como o vemos ao cabo de nossa ascensão analógica, não é propriamente um ente que tenha ser, senão que é o próprio Ser subsistente por si mesmo, assim como a brancura seria subsistente se pudesse destacar-se da superfície branca. Em outras palavras, Deus é Ente, sim, mas não do mesmo modo como são entes os entes criados, porque, diferentemente destes, não tem ser, senão que é o Ser – motivo pelo qual pode criar ex nihilo (de nada) os demais entes. E este é o fundamento último e, insista-se, mais propriamente metafísico da analogia de atribuição intrínseca do ente – quando caímos de cheio na “dialética” entre o Ente ou Ser por essência e o ente por participação (conquanto não se alcance essa “dialética” sem passar pelo miolo do tomismo: a distinção real entre essência e ser ou ato de ser).

7) Mas haverá mais em minha “Questão Metafísica”: assim como tudo quanto é per accidens se reduz ao que é per se, assim também toda analogia proporcional se reduz à analogia de atribuição – e de atribuição intrínseca. Veja-se o caso do transcendental verdadeiro. “Verdadeiro”, com efeito, diz-se com relação ao intelecto de várias maneiras. Em primeiro lugar, como adequação dos conceitos com relação às coisas, razão por que dizemos que o intelecto “é verdadeiro” quando pela simples apreensão ele se assimilou à quididade ou essência da coisa: por exemplo, quando concebe de homem: animal racional. Mas também se diz que o intelecto conhece o verdadeiro quando, julgando-se a si mesmo, considera-se como adequado em seu conhecimento ao real: O homem é animal racional. Mas também como adequação das palavras com relação às coisas. Com efeito, quando expressamos qualquer proposição, dizemos que é verdadeira se de fato corresponde à realidade significada. Não basta que corresponda ao que pensamos; tem de adequar-se ao que são verdadeiramente as coisas. Uma proposição pode até ser “sincera”, mas não deixa de ser falsa se lhe falta a devida correspondência com a realidade. E, se alguém diz algo diferente do que efetivamente pensa, dirá uma “mentira”, que todavia até pode per accidens verdadeiro (ou seja, se o que pensava era falso). – Pois bem, nestes modos vários se dá muito diversamente a razão de adequação a que se reporta a noção de verdadeiro, motivo pelo qual temos aqui uma analogia de proporcionalidade. Como no entanto há de ser manifesto, a referida adequação se dá no intelecto, enquanto a coisa em si é o que é segundo seu modo de ser e essência. Mas a adequação se dá justo quando a essência (ou melhor, sua espécie) se encontra no intelecto e o reduz a cognoscente em ato, pelo que se pode dizer que a verdade é o objeto próprio que define e especifica a potência intelectiva (o que também dá pano para mangas). Sendo porém assim, acabamos por ver com luz meridiana que a analogia do verdadeiro é, com efeito, uma analogia de atribuição cujo primeiro analogado é a verdade conhecida, isto é, a que se dá no segundo verbo mental ou cordial: a obra da segunda e propriamente reflexiva operação do intelecto. Mas será que esta doutrina sobre a verdade, que é amplamente majoritária entre os tomistas e que segue de algum modo o dito por S. Tomás em sua obra de juventude De veritate, pode ter-se por segura? Ademais, como toda analogia de proporcionalidade e toda analogia de atribuição extrínseca podem reduzir-se, como dito mais acima, a uma analogia de atribuição intrínseca? e como todas as analogias de atribuição intrínseca podem reduzir-se a uma primeira? É sobretudo em torno disso que girará minha referida “Questão Metafísica”.

Observação final: como muitos me perguntam se lançarei de fato o anunciado livro Tratado dos Universais, digo aqui que ele será incorporado ao livro Questões Metafísicas – o que transfere todo o seu assunto lógico para sua solução metafísica última.