quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

UM SÓ EXEMPLINHO PARA OS QUE DESCREEM DE QUE A DOUTRINA DE S. TOMÁS PROGREDIU

                                                                                                                         Carlos Nougué

1) No Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, o jovem Tomás escrevia: “Portanto, deve dizer-se, com outros, que o nome ‘verbo’, por virtude do vocábulo, pode tomar-se personaliter e essentialiter [pessoalmente e essencialmente]”.

2) Em De veritate, um Tomás recém-entrado na vida intelectual adulta já escrevia: “Se ‘verbo’ se toma propriamente no divino, não se diz senão personaliter; se, em contrapartida, se toma comumente [ou em geral], pode dizer-se também essentialiter”.

3) Mas na Suma Teológica o S. Tomás mais maduro é taxativo: “O nome ‘Verbo’ no divino, se se toma propriamente, é nome pessoal e nullo modo essentiale [de modo algum essencial]”.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O MAIOR DOS TOMISTAS

                                                                                                                                                                                                                                         Carlos Nougué

1) A história do tomismo, a partir da morte mesma de S. Tomás de Aquino, é uma história de sítio: desde a condenação de várias teses de S. Tomás pelo bispo de Paris Étienne Tempier até as adúlteras tentativas atuais de domesticar o tomismo fazendo-o amancebar-se com doutrinas espúrias e de todo alheias a ele, são sete séculos de resistência da parte de multidão de tomistas. Mas há que reconhecer que, pelo fato mesmo de o tomismo estar de mistura nas universidades com o scotismo, com o nominalismo, com o cartesianismo, com o kantismo, com o hegelianismo, com o existencialismo, quase nenhum dos grandes tomistas se mostrou infenso a alguma influência deformante de tais doutrinas. Não se veja nesta afirmação, todavia, um como zelo amargo de minha parte. Ao contrário, reconheço nesses homens verdadeiros heróis, cujo esforço teorético, muitas vezes inaudito, manteve acesa a chama da única doutrina filosófico-teológica que a Igreja fez sua (como o disseram João XXII, Bento XIII, Leão XIII, S. Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII...). Uma coisa porém é reconhecê-lo; outra, muito diferente, calar suas insuficiências em nome de uma reverência que nada tem que fazer no campo da ciência.

Observação: só falarei aqui dos tomistas mais importantes e que, ademais, conheço, sem nem de longe, obviamente, ter a pretensão de esgotar o assunto.

2) E a primeira e mais clamorosa falha dos grandes tomistas foi uma compreensível mas tão indevida reverência por Santo Tomás, que os impediu de ver que a doutrina do nosso Doutor progrediu. Com efeito, tanto no campo ontológico como, sobretudo, no gnosiológico, uma coisa é o Santo Tomás de Do Ente e da Essência, do De veritate, dos Comentários a Boécio, do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, etc., e outra é o Santo Tomás das Questões Disputadas sobre a Alma, do Comentário ao Liber de causis, das duas Sumas, do Compêndio de Teologia, do opúsculo Das Substâncias Separadas, etc. Entenda-se: não é que a doutrina de S. Tomás maduro ou sênior já não estivesse em germe na de S. Tomás jovem ou júnior. Estava-o, mas ao modo como um adulto bem formado está já presente nos desarmônicos membros de um adolescente. Pois bem, tal “desarmonia” tem um nome: a sombra de Avicena. S. Tomás foi pupilo de um grande avicenista, S. Alberto Magno, e, ademais, todo o ambiente universitário de então estava grandemente impregnado de avicenismo, quando não de averroísmo (lembre-se aliás que S. Tomás passou de chamar a Averróis “o Comentador [de Aristóteles]” a chamar-lhe, em A Unidade do Intelecto contra os Averroístas, “o Corruptor [de Aristóteles]”). Permaneceu-lhe essa sombra mais de uma década; mas S. Tomás livrou-se de todo dela, salvo pelo eventual uso de terminologia não tomista (antes avicenista ou até boeciana) em prol da compreensão de sua doutrina por parte de seus ouvintes e leitores de então. – Mas quem entre os tomistas foi capaz de assinalar vigorosa e taxativamente tal progressão doutrinal em S. Tomás? Quem foi capaz de mostrar que se não se reconhece tal progressão o tomismo fica indefeso ante a investida de doutrinas forâneas? O Mestre auxiliar de Tomás por antonomásia, o Cardeal Caetano? Este que vos escreve? Não. Foi o Padre Álvaro Calderón, sete séculos depois da morte de S. Tomás.             

3) Mas, se se trata da Lógica, quem deve dizer-se o maior dos tomistas? O Cardeal Caetano e sua negação da principalidade da analogia de atribuição intrínseca? João de S. Tomás e sua crença em que fosse do Mestre Tomás o longo e confuso opúsculo Summa totius Logicae Aristotelis, uma das causas pelas quais o mesmo João de Santo Tomás fundou toda uma longa escola (que culmina em Jacques Maritain) fundada, por sua vez, no triste imbroglio quanto à distinção entre lógica formal e lógica material? – Não. Na Lógica, o maior dos tomistas, sobretudo por seu De Analogia, é o P. Santiago Ramírez O.P., vindo logo depois o P. Calderón pela impressionante Introdução à Lógica de seus Umbrales de la Filosofía.

4) E quanto à Física? Reina absoluto o P. Álvaro Calderón, pelos dois tomos de La naturaleza y sus causas e pelo esotérico Curso de Física (ou melhor, de Cosmologia), que, Deo gratias, parece se publicará este ano como o terceiro tomo de La naturaleza... É verdade que La naturaleza... segue de perto o tratado físico de João de S. Tomás; mas, sem negá-lo, ultrapassa-o grandemente, além de que é o P. Calderón o primeiro tomista a assimilar perfeitamente as ciências modernas sem concordismo fácil. “Só” isto.

5) Se se trata porém da Política, qual será o maior dos tomistas? Aqui, é preciso falar antes da multidão de corruptores da doutrina política tomista (a da maturidade, a exposta, por exemplo, em Do Reino e na Suma Teológica, doutrina que em verdade é a mesma do magistério infalível da Igreja quanto à realeza de Cristo). A decadência começa com o nominalismo disfarçado de tomismo de Francisco de Vitoria e prossegue com Francisco Suárez, o introdutor nas escolas católicas de uma noção análoga à da vontade geral de Jean-Jacques Rousseau; para culminar, no século XX, numa sucessão de deformações mais ou menos graves, presentes no Cardeal Billot, em Louis Lachance, em Santiago Ramírez, no Cardeal Ottaviani e, sobretudo, em Jacques Maritain, o verdadeiro fautor do destronamento de Cristo no CVII. A tal sucessiva e longa débâcle não escaparam senão, imperfeitamente, S. Roberto Belarmino (que porém não era tomista) e, mais perfeitamente, o Cardeal Pie de Poitiers e o leigo Jean Ousset – e, muito à frente de todos, o nosso Padre Calderón, com Prometeu: a Religião do Homem e El Reino de Dios (e outros que ainda virão, se Deus quiser).

6) Quanto à tentativa geral de retornar a um tomismo mais puro, destacaram-se, já após Leão XIII, os padres Hugon, Gardeil e Fabro; mas nem sequer puderam divisar a perfeição com que o faria o P. Calderón ao longo de todas as suas obras (e trata-se de retorno, insista-se, a Santo Tomás sênior). Registre-se no entanto que aqui também há que destacar o P. Santiago Ramírez, cujo tropeço maior, como assinalado acima, foi na Política.

7) Mas, depois da Política, é na Psicologia e na Metafísica (as quais em prol da facilidade aqui misturo) que se há de falar de maior superioridade do P. Álvaro Calderón com respeito a todos os outros grandes tomistas. Por partes.

a) Antes de tudo, só o P. Calderón e poucos mais, depois de S. Tomás, não cederam de modo algum à tentação de dividir a Metafísica em partes subjetivas. Com efeito, os neotomistas tomaram de Leibniz, ainda que só de certo modo, a chamada “Teodiceia”, mediante a qual Leibniz pretendia conciliar Deus e o mal no mundo. Mas o que encontrou não é nada tomista, e Tomás de Aquino respondera-lhe previamente a ele de modo cabal em sua vasta obra. Sucede todavia que ao menos quase todos os neotomistas dividem a Metafísica em Ontologia e em Teodiceia, com o que se infringe a unidade simpliciter da Metafísica: esta, como a Teologia Sagrada, não tem partes subjetivas. É verdade também, infelizmente, que desde séculos anteriores alguns doutores e teólogos católicos passaram a dar à Teologia Sagrada partes subjetivas: Teologia Dogmática, Teologia Moral, etc. Mas a coisa agravou-se no âmbito do neotomismo.

b) Em várias obras, diz Garrigou-Lagrange O.P. que o “princípio de identidade” é o primeiro dos primeiros princípios; e ele certamente não foi o primeiro a dizê-lo. Por outro lado, em sua A Essência do Tomismo, Manser O.P. põe o “princípio da razão suficiente” entre os primeiros princípios. Mas nada disso é de Aristóteles nem de Tomás de Aquino: ambas as coisas são de Leibniz. Não que por serem de Leibniz sejam erradas; mas o fato é que também nisso errou Leibniz. O “princípio de identidade” (“todo ser é o que é”) responde ao matematicismo cartesiano-leibniziano, e corresponde à famosa e vácua fórmula 1 = 1 ou, algebricamente, A = A. Aí está um modo de ser profundo sem dizer absolutamente nada. Quanto porém ao “princípio da razão suficiente” (“nada existe sem razão suficiente”), responde ao idealismo de Leibniz: Deus conhecia todos os mundos possíveis, mas, como por sua sabedoria não podia agir sem razão suficiente, de todos os mundos possíveis só fez o melhor. É o chamado “otimismo” leibniziano. Mas Tomás de Aquino demonstra na Suma Teológica que Deus poderia ter criado outro e melhor mundo, ainda que nenhum mundo que Deus criasse pudesse ser inconveniente.

c) Quanto à distinção real entre essentia e esse (ou actus essendi, ato de ser), distinção que é o gonzo em torno do qual gira o tomismo, a maioria dos tomistas a defende expressamente, mas quase nunca convenientemente. Por quê? Porque confundem de algum modo ser ou ato de ser e existência ou ato de existir, com o que põem a perder de algum modo a distinção. Foi o P. Cornelio Fabro o campeão de um retorno mais perfeito ao gonzo do tomismo. Mas tampouco o fez perfeitamente, porque, com efeito, não deixa de incorrer em entitatismo, ou seja, o atribuir aos princípios de um composto a entitatividade deste, além de tentar engessar a doutrina com um rigor terminológico exacerbado. – De modo que também quanto a este ponto capital é o P. Calderón quem leva a palma: sobretudo em seu mais recente livro, El orden sobrenatural, o nosso sacerdote alcança a perfeita penetração da mente do Mestre Tomás.

d) Quanto ademais ao verbo mental  (a terminologia é dos tomistas, incluindo o P. Calderón, conquanto eu prefira chamá-lo verbo cordial, como insisto nas aulas da Escola Tomista), os tomistas dividem-se em dois extremos: o essencialismo de um Fabro ou de um Tonquédec (esta brecha para um indébito acordo com a epoché husserliana, tal como tentado por Edith Stein e pelos ecléticos tomistas de Navarra) e o existencialismo de um Maritain ou de um Gilson (e, ao cabo, também de Fabro, que aliás terminou sua carreira como um perfeito existencialista ao modo de Kierkegaard com uma boa pitada de voluntarismo scotista). Mas é outra vez o P. Calderón quem resgata a verdadeira doutrina do Mestre Tomás maduro, como se vê em seu mais recente livro.

e) Se se trata contudo da conversio ad phantasmata (a conversão ou retorno aos fantasmas) – ponto fulcral da Psicologia tomista –, efetivamente não conheço ninguém que sequer se aproxime do P. Calderón. É verdade que o P. Fabro e o Ferrariense (Francesco Silvestri) já haviam avançado bastante neste ponto; mas não haviam deixado de ficar a meio caminho. Leia-se El orden sobrenatural do P. Calderón, e saber-se-á por que o digo.

f) Quanto, por fim, ao “constitutivo formal” da essência divina, temos de um lado o tomismo autêntico (Capreolo, Báñez, Ledesma, Del Prado, Garrigou-Lagrange, Álvaro Calderón...) e de outro o tomismo espúrio (João de S. Tomás, os Salmanticenses, Billuart, Gonet...).

8) Se porém agora damos um salto para a Teologia Sagrada e para o espinhoso tema da predestinação, confesso que a doutrina de nenhum dos tomistas que li (e li muitos) foi capaz de agradar-me suficientemente, razão por que ainda fico com minha mesma exposição sobre o assunto em “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo” (in Do Papa Herético e outros opúsculos), que pretendo seja de todo fiel ao Santo Tomás da Suma Teológica. Veja-se, no entanto, que o P. Calderón nunca escreveu sobre isto.

Observação: aliás, por falar em mim, quanto à Arte do Belo, quanto à Gramática e quanto à questão do papa herético, minha referência sou eu mesmo; assim como creio que acabarei por ter como referências meu Comentário ao Apocalipse e minhas Questões Metafísicas... Se assim não fosse, por que afinal haveria de escrever livros?

9) Quer dizer então, Carlos Nougué, que o senhor não tem nenhuma divergência com o P. Álvaro Calderón? Tenho. Cito duas: a ordem em que se devem estudar as partes potenciais da Lógica (como o assinalo em “A Ordem das Disciplinas”, in Estudos Tomistas – Opúsculos II), e o caráter preciso da primeira operação do espírito (razão por que escrevi “Das Duas Primeiras Operações do Intelecto: uma Crítica a Maritain e a Outros Tomistas [incluindo o P. Calderón]”, in Do Papa Herético e outros opúsculos). Assinale-se todavia que, em seu mais recente livro, parece que o P. Calderón já não incorre, quanto à referida primeira operação, na deficiência que encontro nos Umbrales de la Filosofía.

10) Mas que são essas bagatelas diante do oceano de acertos do P. Álvaro Calderón? E não deixa de assombrar-me ver tantos narizes torcidos quando digo que o P. Calderón é meu grande mestre (depois de Tomás de Aquino, claro) e sobretudo que é o maior dos tomistas. Sua contemporaneidade o impediria? Mas tampouco deixa de assombrar-me, ou antes, horrorizar-me, que a obra do P. Calderón seja amplamente desconhecida no mesmo mundo hispânico e só tenha começado a traduzir-se ao português (do Brasil), mas não ao inglês, ao francês, ao alemão, ao italiano... Para mim, isso é uma sorte de “mistério de iniquidade.

Observação: quem sabe, no entanto, se o isolamento do Padre em seu amado Seminário de La Reja não é justamente uma das precondições para a grandeza e pureza de sua obra?

11) Muitos contudo hão de perguntar-se: Quem é esse Carlos Nougué para dizer tudo isso que acabamos de ler? Resposta simplicíssima: Sou este mesmo que vos escreve.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

QUE DEVE DIZER O TOMISMO DA DOUTRINA CENTRAL DE XAVIER ZUBIRI?

                                                                                                                         Carlos Nougué

Xavier Zubiri, condenado em vida por modernista e cuja obra conheço muito bem por tê-la traduzido quase toda, tem por doutrina central que a inteligência humana é “senciente” (ou, como preferem outros, “sentinte”), isto é, conhece concomitante e sinteticamente de modo sensitivo e racional, sendo o homem um “animal de realidades”. Como responder tomisticamente a isto? Ao modo essencialista de um Fabro ou de um Tonquédec (essa brecha para um indébito acordo com a epoché husserliana), ou ao modo existencialista de um Gilson ou de um Maritain (e, ao cabo, também de um Fabro)? Ou ao modo entitatista, modo esse quase geral entre os tomistas? De maneira alguma: fazê-lo é acabar por dar razão a Zubiri, porque, com efeito, Zubiri toca em cheio e dolorosamente um nervo sensível do tomismo, o que vem de Santo Tomás jovem e aviceniano para alcançar de algum modo, insista-se, a quase totalidade dos tomistas. A maneira como se deve responder a Zubiri quanto a isto é de todo outra, e supõe o resgate e o aprofundamento de Santo Tomás maduro (o das Questões Disputadas sobre a Alma, da Suma Teológica, etc.), coisa que, sejamos justos, já começou a fazer o mesmo Fabro em Percepção e Pensamento (ainda que algo contraditoriamente e em forma, digamos, de “insight”). Mas é o que pretendo mostrar e fazer o mais cabalmente possível em uma de minhas futuras Questões Metafísicas: “Santo Tomás e/ou Xavier Zubiri? – Do Sentido ao Verbo Cordial”.




sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

QUANDO, SEGUNDO ALGUNS, SE DEVE COMEÇAR A ESTUDAR SANTO TOMÁS

                                                                                                                           Carlos Nougué

1) Leiam-se antes de tudo todas as obras das tradições religiosas ou iniciáticas, queiram-se reveladas ou não.

2) Depois, todos e cada um dos filósofos gregos, de antes e de depois de Cristo.

3) Depois, todos e cada um dos Padres da Igreja.

4) Depois, todos e cada um dos neoplatônicos cristãos.

5) Depois, todos e cada um dos escolásticos anteriores a Tomás.

6) Por fim, S. Tomás.

7) Mas de preferência leia-se concomitantemente ou anteriormente a tudo isso toda a produção literária da antiga Índia, da antiga China, da antiga Grécia, etc., para formar bem o imaginário; além de, claro, aprender o canto gregoriano.

Observação: assim, com efeito, você estará preparadíssimo para entender S. Tomás aos cerca de 157 anos – ou após uma transmigraçãozinha de sua alma por alguns animalejos...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

A ANALOGIA DO ENTE – UM MERO ESBOÇO OU ESQUEMA

                                                                                                                     Carlos Nougué

 1) Certos hereges usurpadores do nome tomista tacham o Padre Álvaro Calderón de “paleotomista”, querendo dizer com isso que ele se atém servilmente à letra de S. Tomás e despreza tudo o mais, incluindo os tomistas posteriores. São detratores que não podem senão sê-lo, porque em verdade são incapazes de sequer vislumbrar que o P. Calderón é o próprio antipaleotomista: porque ele foi nada menos que o primeiro a perceber e assinalar que a doutrina de S. Tomás padeceu progressão, da fase da juventude (de forte sombra aviceniana) à fase madura (a propriamente tomista). Mas foi justamente uma reverência servil ao Mestre, reverência que antes deslustra que enaltece sua figura e doutrina, o que fez que os tomistas anteriores ao P. Calderón, incluindo gigantes como o Cardeal Caetano, fossem incapazes de apreender a absoluta novidade do tomismo (tomasiano) – donde suas aporias e sua debilidade ante a filosofia e a ciência modernas. De tudo isso tratarei no livro Questões Metafísicas. Mas não por nada não hesito em dizer: o P. Calderón é o maior dos tomistas; e, se hoje sou capaz eu mesmo de escrever Da Arte do Belo – em que, quanto ao sujeito do livro, supero a Aristóteles, a S. Tomás e até, de certo modo, ao mesmo P. Calderón sem negá-los de modo algum – ou os futuros Da História e Sua Ordem a Deus e Questões Metafísicas – que, estou certo, deixarão embasbacado mais de um detrator –, não é senão graças à clarividência fundacional deste grande mestre argentino (atrás de cuja doutrina se divisa, ademais, um grande e santo sacerdote).  

2) Mas uma de minhas muitas “Questões Metafísicas” será atinente ao sujeito (ou gênero sujeito, aquilo que com imprecisão a maioria dos tomistas chama “objeto formal”) da Metafísica. Com efeito, Aristóteles já a denominava Filosofia Primeira (porque trata das causas e princípios primeiros) ou Teologia (porque trata de Deus). Se todavia trata de Deus, que é a Causa primeira de tudo, a Causa das causas, por que então o sujeito da Metafísica é, segundo o próprio Aristóteles, S. Tomás e os principais tomistas, o ente enquanto ente, o ente comum, e não Deus mesmo? Porque nenhuma ciência pode ter por sujeito algo cuja essência não nos é dado conhecer (nesta vida), como, obviamente, é o caso de Deus. Claro, esta só afirmação já dá pano para mangas, porque, com efeito, falando estritamente, não conhecemos a essência senão dos gêneros (ou seja, uma essência – digamos – potencial e pois imperfeita) e de uma única espécie especialíssima: o homem. Esta dificuldade já a comecei a enfrentar em Da Arte do Belo, mas ainda há muito que solucionar quanto a ela. Por outro lado, a afirmação de que não nos é dado conhecer a essência de Deus (nesta vida) e que, portanto, dele conhecemos basicamente o que ele não é (trata-se do conhecimento chamado apofático) levou teólogos importantes a não ver que conhecemos, sim, já nesta vida, algo quiditativo ou essencial de Deus, sem o que se cai no agnosticismo, por exemplo, de um Maimônides. Apenas, não o conhecemos univocamente, mas por certo modo, superior, de equivocidade – a analogia. – A analogia, porém, subdivide-se: pode ser de proporcionalidade imprópria ou própria, ou de atribuição extrínseca ou intrínseca (alguns acrescentam a estas alguma espécie mais); e há que assinalar aqui que a partir e por influência do Cardeal Caetano a maioria dos tomistas põe que é por uma analogia de atribuição extrínseca que se conhece o ente. Terão todavia razão quanto a isto o grande Cardeal e sua multidão de importantes seguidores (entre os quais, assinale-se, não se contam por exemplo o P. Santiago Ramírez e o P. Álvaro Calderón)?

3) Estamos obrigados a pôr que o ente se conhece antes de tudo por uma analogia de atribuição intrínseca. Para que se entenda isto, insista-se: a analogia pode ser de dois modos gerais, ou seja, de razão simples ou atribuição, em que os analogados secundários guardam uma razão proporcional a um primeiro e principal; ou de razão composta ou proporcionalidade, em que a razão de dois termos é proporcional à razão de dois outros. No primeiro caso, a quididade significada pelo nome dá-se de modo primeiro e simpliciter no analogado principal, ao passo que os outros analogados recebem o nome enquanto mantêm determinada relação proporcional com o primeiro. No segundo caso, no entanto, o nome só indica em cada um dos analogados certa relação de quididades proporcionalmente semelhantes, razão por que aqui não se dá atribuição simpliciter. Sucede ademais que o conceito de ente se reporta primeiramente, propriamente e simpliciter à substância, devendo tudo o mais (partes e acidentes) referir-se à substância. Não é difícil pois notar que a analogia do ente é de atribuição, e não de proporcionalidade.

4) Não obstante, e como antecipado, a analogia de atribuição pode ser extrínseca ou intrínseca. No primeiro caso, os analogados secundários recebem seu nome por denominação extrínseca a partir do primeiro analogado. No segundo caso, os analogados secundários recebem seu nome por aquilo mesmo que são. É evidente contudo que tudo o que é de qualquer modo e pode pois ser distinguido e apreendido pelo intelecto deve dizer-se ente por aquilo mesmo que ele é. Sendo assim, é inescapável a conclusão de que a analogia do ente é de atribuição intrínseca. Mas, como dito, o Cardeal Caetano e multidão de importantes seguidores seus põem que a analogia do ente é de atribuição extrínseca, razão por que, se na analogia do ente a substância é analogado principal mas há predicação intrínseca em todos os modos, tal se deve a que, em verdade, no mesmo ente sucedem as duas analogias de atribuição (extrínseca) e de proporcionalidade. Entenda-se: enquanto se dá analogia de atribuição (extrínseca), a substância é o analogado principal mas os outros modos não se dizem entes pelo que eles mesmos são de fato, e sim tão somente enquanto são algo da substância; ademais, os acidentes e outros modos secundários dizem-se propriamente e intrinsecamente entes na medida em que se dá também uma analogia de proporcionalidade – uma vez que todo ente só tem ser em proporção à sua essência.  

5) No entanto, como escreve o P. Calderón em El orden sobrenatural – una inmersión en el tomismo profundo (Primera parte – El misterio de Dios), esta doutrina do Cardeal Caetano e de seus seguidores “não se ajusta à doutrina fundamental do ente primum cognitum [primeiro conhecido], segundo a qual ambos os membros de toda distinção que o intelecto estabeleça caem própria e absolutamente sob o conceito de ente, e não por denominação extrínseca nem por proporção de aspectos; porque o intelecto nada pode conhecer senão sob este conceito [de ente]”. Consigne-se, aliás, que Santiago Ramírez O.P seguiu num primeiro momento a doutrina do Cardeal Caetano, mas, após estudar profundamente e como ninguém até então a analogia (em seu volumosíssimo De analogia, que está a esperar uma civilizatória tradução ao português), passou a pôr que a melhor exegese tomista há de sustentar que a analogia do ente é de atribuição intrínseca. Cf., aliás, o precioso livro de José Miguel Gambra La analogia en general, síntesis tomista de Santiago Ramírez, EUNSA, 2002 (p. 256-271).      

6) Mas – e eis o tratamento principal e mais propriamente metafísico que darei a esta questão em Questões Metafísicas – a analogia do ente tem de ser de atribuição intrínseca antes de tudo (conquanto só o possamos ver ao fim de tudo) porque Deus, o analogado principal, é causa primeira e absoluta do ente, o que de imediato suscita a seguinte objeção: Mas Deus também é ente... Ao que se deve responder: Até por uma necessidade de nosso intelecto, tendemos a “definir” o ente com alguma composição, ou seja, boecianamente, como id quod est, aquilo que é, ou seja, aquilo que tem ser. Mas Deus, como o vemos ao cabo de nossa ascensão analógica, não é propriamente um ente que tenha ser, senão que é o próprio Ser subsistente por si mesmo, assim como a brancura seria subsistente se pudesse destacar-se da superfície branca. Em outras palavras, Deus é Ente, sim, mas não do mesmo modo como são entes os entes criados, porque, diferentemente destes, não tem ser, senão que é o Ser – motivo pelo qual pode criar ex nihilo (de nada) os demais entes. E este é o fundamento último e, insista-se, mais propriamente metafísico da analogia de atribuição intrínseca do ente – quando caímos de cheio na “dialética” entre o Ente ou Ser por essência e o ente por participação (conquanto não se alcance essa “dialética” sem passar pelo miolo do tomismo: a distinção real entre essência e ser ou ato de ser).

7) Mas haverá mais em minha “Questão Metafísica”: assim como tudo quanto é per accidens se reduz ao que é per se, assim também toda analogia proporcional se reduz à analogia de atribuição – e de atribuição intrínseca. Veja-se o caso do transcendental verdadeiro. “Verdadeiro”, com efeito, diz-se com relação ao intelecto de várias maneiras. Em primeiro lugar, como adequação dos conceitos com relação às coisas, razão por que dizemos que o intelecto “é verdadeiro” quando pela simples apreensão ele se assimilou à quididade ou essência da coisa: por exemplo, quando concebe de homem: animal racional. Mas também se diz que o intelecto conhece o verdadeiro quando, julgando-se a si mesmo, considera-se como adequado em seu conhecimento ao real: O homem é animal racional. Mas também como adequação das palavras com relação às coisas. Com efeito, quando expressamos qualquer proposição, dizemos que é verdadeira se de fato corresponde à realidade significada. Não basta que corresponda ao que pensamos; tem de adequar-se ao que são verdadeiramente as coisas. Uma proposição pode até ser “sincera”, mas não deixa de ser falsa se lhe falta a devida correspondência com a realidade. E, se alguém diz algo diferente do que efetivamente pensa, dirá uma “mentira”, que todavia até pode per accidens verdadeiro (ou seja, se o que pensava era falso). – Pois bem, nestes modos vários se dá muito diversamente a razão de adequação a que se reporta a noção de verdadeiro, motivo pelo qual temos aqui uma analogia de proporcionalidade. Como no entanto há de ser manifesto, a referida adequação se dá no intelecto, enquanto a coisa em si é o que é segundo seu modo de ser e essência. Mas a adequação se dá justo quando a essência (ou melhor, sua espécie) se encontra no intelecto e o reduz a cognoscente em ato, pelo que se pode dizer que a verdade é o objeto próprio que define e especifica a potência intelectiva (o que também dá pano para mangas). Sendo porém assim, acabamos por ver com luz meridiana que a analogia do verdadeiro é, com efeito, uma analogia de atribuição cujo primeiro analogado é a verdade conhecida, isto é, a que se dá no segundo verbo mental ou cordial: a obra da segunda e propriamente reflexiva operação do intelecto. Mas será que esta doutrina sobre a verdade, que é amplamente majoritária entre os tomistas e que segue de algum modo o dito por S. Tomás em sua obra de juventude De veritate, pode ter-se por segura? Ademais, como toda analogia de proporcionalidade e toda analogia de atribuição extrínseca podem reduzir-se, como dito mais acima, a uma analogia de atribuição intrínseca? e como todas as analogias de atribuição intrínseca podem reduzir-se a uma primeira? É sobretudo em torno disso que girará minha referida “Questão Metafísica”.

Observação final: como muitos me perguntam se lançarei de fato o anunciado livro Tratado dos Universais, digo aqui que ele será incorporado ao livro Questões Metafísicas – o que transfere todo o seu assunto lógico para sua solução metafísica última.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

PELA ENÉSIMA VEZ (OH!), MINHA POSIÇÃO A RESPEITO DO CVII

                                                                                                                         Carlos Nougué

1) Com a hierarquia da Igreja depondo sua própria autoridade doutrinal, o Concílio Vaticano II “simplesmente” fundou uma nova religião: a religião do homem. Por isso, juntamente com seus seguidores, deve ser combatido.

2) Mas dizer que o CVII fundou uma nova religião definitivamente não implica dizer que tenha fundado uma nova Igreja. Baseado na Mystici Corporis de Pio XII e no Concílio Vaticano I, assinalo no livro Do Papa Herético que a doutrina das duas Igrejas sob um só papa padece sérios problemas.

a) O Vaticano I definiu que não só a sucessão petrina se dará ininterruptamente até o fim dos tempos, mas também a sucessão apostólica em geral. Ora, se a nova Igreja conciliar, como a chamam, não é a Igreja Católica, onde estará esta? Nos grupos tradicionalistas? Impossível, justo porque, ainda que como resultado de uma condenação iníqua e pois inválida, os bispos tradicionalistas estão despojados de jurisdição ordinária.

b) Em outras palavras, a doutrina das duas Igrejas é um como ecclesiavacantismo inconsciente. E de nada adianta pôr a esdrúxula figura de um papa para as duas Igrejas, até porque este papa não legisla salomonicamente, senão que é a própria pedra angular da nova religião.

3) Não se pode tentar resolver um problema tão intricado como o CVII e o que ele fundou com uma explicação que “esqueça” o já definido, infalivelmente, pelo magistério. E, com efeito, não só os papas conciliares são papas, mas os bispos conciliares são bispos, e aqueles e estes constituem em conjunto a atual hierarquia da Igreja Católica. Que a nova religião que sustentam seja uma imensa heresia não anula o anterior (conquanto deixe a atual hierarquia da Igreja com “jurisdição precária”, como o mostro em Do Papa Herético). É um câncer, e, como todo câncer, é daquele mesmo que o porta e padece. Ademais, tal câncer não se explica mais perfeitamente se não o identificamos com a apostasia na Igreja, ou seja, com a abominação da desolação instalada no lugar santo predita por Cristo mesmo. Estamos vivendo a sexta-feira da paixão da Igreja (como o explicarei, creio que suficientemente, no Comentário ao Apocalipse).

Observação: tudo quanto acabo de dizer não valida nem invalida esta ou aquela solução prática para o enfrentamento da religião humanista. Este é outro assunto, de ordem justamente prática.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

OUTRA QUESTÃO METAFÍSICA: QUEM LEVA A ATO SEGUNDO AS POTÊNCIAS ATIVAS DAS CRIATURAS?

                                                                                                                        Carlos Nougué

 Quando mo permitiam as injeções, etc., também minha última internação me foi muito proveitosa intelectualmente. Com efeito, consegui estruturar então, no leito hospitalar, outra das já muitas questões de meu futuro livro “Questões Metafísicas”. Ei-la, em suma:  

Os antigos diziam que Deus move a primeira esfera celeste, e que esta move a seguinte esfera, e assim sucessivamente, esferas que, em seu movimento conjunto, são de algum modo causas das formas e motores das próprias potências ativas no mundo sublunar. Mas isso já não se pode sustentar. Assim, por exemplo, Deus é não só o criador direto das almas humanas, mas é quem move suas mesmas potências ativas a atuar. Com efeito, a vontade pode fazer voluntária a inteligência, mas não pode levar esta potência a inteligir, porque para tal falta comproporcionalidade entre causa e efeito. E isto vale também para a potência ativa do intelecto agente. A potência ativa do intelecto agente é real e individual, e de fato é ela quem leva ou reduz a ato o intelecto possível (potência passiva). Mas é Deus quem move o intelecto agente a agir; feito isto, o próprio intelecto agente abstrai dos fantasmas as espécies inteligíveis e com elas reduz a ato o intelecto possível. Em outras palavras, Deus é não só o criador direto da alma, mas move suas potências ativas a atuar por conta própria – o que lança a última pá de cal sobre o deísmo racionalista, segundo o qual Deus criou o universo e a partir do sétimo descansou para sempre, entregando o mundo à própria sorte de sua natureza. Não: Deus não só traz o universo e seus entes a ser, senão que os sustenta nele ao mesmo tempo que sustenta sua ação atuando suas potências ativas. Em resumo, Deus é não só o primeiro motor imóvel das séries de motores, mas o motor imóvel e permanente de todos e cada um dos motores, sempre que se trate de fazê-los mover-se a seu ato segundo (a inteligência a inteligir, a vontade a querer, a vis irascível a irar-se, o gravitacional-inercial a fazer girar os corpos celestes, etc.). Deus é motor de motores, eficiente de eficientes, ente de entes, perfeição de perfeições, finalidade de finalidades. Como diz o P. Santiago Ramírez O.P. em De actibus humanis, trata-se da moção que propriamente se pode chamar “divino instinto”.