Carlos Nougué
1) Decidi indicar primeiro, nesta postagem, os
documentos do magistério da Igreja; e depois, numa próxima, os livros. Assim a
coisa fica mais leve.
2) Os documentos papais de algum modo
representativos da posição verdadeiramente católica acerca das relações entre
Igreja e cidade, ou seja, entre poder espiritual e poder temporal – posição de
todo contrária à dos humanistas integrais e vaticano-segundos –, falam por si.
Basta-me, pois, dar aqui uma relação dos que me parecem os mais importantes
(encontráveis em sua maioria na Internet, sobretudo no site do Vaticano, ou no
Denzinger; mas cuidado com a última edição brasileira deste; na Internet,
encontram-se boas e antigas edições em espanhol, em francês, etc.). Ei-la:
• Epístola Duo sunt (São Gelásio I);
• Documento de excomunhão e de deposição de
Henrique IV (São Gregório VII);
• Encíclica Sicut
universitatis (Inocêncio III);
• Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII),
documento de inequívoco caráter extraordinário infalível;
• Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros
de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João
XXII);
• Encíclica Etsi multa luctuosa (Pio IX);
• Encíclica Quanta cura (Pio IX);
• o Syllabus (Pio IX);
• Encíclica Quod Apostolici muneris (Leão
XIII);
• Encíclica Diuturnum illud (Leão XIII);
• Encíclica Immortale Dei (Leão XIII);
• Encíclica Libertas praestantissimum (Leão
XIII);
• Encíclica Sapientiae christianae (Leão
XIII);
• Encíclica Annum sacrum (Leão XIII);
• Encíclica Rerum novarum (Leão XIII);
• Encíclica Vehementer Nos (S. Pio X);
• Encíclica Communium rerum (S. Pio X);
• Encíclica Jucunda sane (S. Pio X);
• Encíclica Pascendi (S. Pio X);
• Motu proprio Sacrorum antistitum (S. Pio
X);
• Encíclica Editae saepe Dei (S. Pio X);
• Encíclica E supremi apostolatus (S. Pio
X);
• Encíclica Il fermo proposito (S. Pio X);
• Carta sobre a ação social, janeiro de 1907 (S.
Pio X);
• Encíclica Ad diem illum (S. Pio X);
• Alocução Gravissimum (S. Pio X);
• Encíclica Notre charge apostolique (S. Pio
X);
• Encíclica Ubi arcano (Pio XI);
• Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta
magna da Cristandade;
• Encíclica Divini illius magistri (Pio XI);
• Encíclica Quadragesimo anno (Pio XI);
• Encíclica Firmissimam constantiam (Pio
XI);
• Exortação Apostólica Menti Nostrae (Pio
XII).
3) Comentários.
a) Como a relação entre cidade e Igreja está no
centro da doutrina do Reinado Social de Cristo, os documentos mais importantes
entre os relacionados acima são, justamente, aqueles que a tratam
expressamente: a Epístola Duo sunt (São Gelásio I); a Encíclica Sicut
universitatis (Inocêncio III); a Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII);
a Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de
João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII); a Encíclica Immortale
Dei (Leão XIII); e a Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta magna
da Cristandade.
a1) Após a ofensa a Bonifácio VIII, voltaria a
falar expressamente desta relação, três pontificados depois, o Papa João XXII
(o que canonizou Santo Tomás). Mas o próximo a fazê-lo foi Leão XIII (na Immortale
Dei), nada menos que seis séculos depois. Era a Igreja acuada pela rebelião
e ofensiva truculenta dos estados.
a2) Para mostrar que o poder temporal deve
ordenar-se essencialmente à
Igreja, alguns papas se valeram de comparações simples. Por exemplo, Inocêncio
III recorreu, na Sicut universitatis, a uma analogia de proporção
imprópria (isto não é pejorativo) ou metafórica: o poder espiritual está para o
poder temporal assim como o sol está para a lua, cuja luz depende da luz
daquele. Bonifácio VIII, na Unam Sanctam, falará dos dois poderes como
de dois gládios (ou espadas), o gládio espiritual manejado pela Igreja, e o
temporal manejado pelos reis mas sob a direção (espiritual) da Igreja. Esta
Bula foi atacada duramente por Dante e pelos reis rebeldes (mais especialmente
por Felipe, o Belo); mas estes tiveram o estímulo de que o principal intérprete
da Bula, Egídio Romano, não fosse um Tomás de Aquino e inadvertidamente
parecesse exagerar o papel da Igreja. Santo Tomás já havia resolvido grande
parte das questões atinentes às relações entre os dois poderes, a partir de uma
analogia de proporcionalidade própria:
o poder espiritual está para o poder temporal assim como a alma está para o
corpo no composto humano. Leão XIII a retomará na magnífica Immortale Dei.
Chegava-se assim, no magistério da Igreja, à formulação mais cabal do núcleo da
questão. Restava ao mesmo magistério, todavia, formular a carta magna da
cristandade, o que caberia a Pio XI na Quas primas, onde se põe que
Cristo tem poder executivo, legislativo e judiciário não só sobre as nações
cristãs, mas sobre todas as nações. Sucede porém que a carta magna da
cristandade chegou quando esta já deixara de existir; já não restavam no mundo
senão minguados bastiões cristãos, que o CVII e seus papas terminariam, eles
mesmos, por fazer desaparecer. – Mas não se há de esquecer o lema do
pontificado de S. Pio X – Instaurar ou restaurar tudo em Cristo –,
infalível ao modo ordinário e influído pelo paladino do Reinado Social de
Cristo: o Cardeal Pie de Poitiers, falecido em 1880.
b) A DSI (Doutrina Social da Igreja) é exatamente o
mesmo que a doutrina do Reinado Social de Cristo, ainda que com matizes: trata
das relações entre Igreja e nações quanto aos vários aspectos destas (política,
leis, economia, etc.). Naturalmente, os modernistas – radicais ou
“conservadores” –, como querem esquecer a parte política e legal da doutrina,
reduzem a DSI aos aspectos econômicos e sociais. É uma falácia, como o mostro
em “Notícia Histórica da Doutrina Social da Igreja” (in Estudos Tomistas –
Opúsculos II). Pois bem, todos os demais documentos presentes na relação
que apresentei acima tratam um ou vários destes aspectos, conquanto não tratem
expressamente o referido núcleo da questão doutrinal.
c) Para terminar este post, deixo-lhes esta
impressionante passagem da Exortação Apostólica de Pio XII Menti Nostrae,
na qual o Papa condena tanto o comunismo como o capitalismo:
«Nenhuma incerteza contra o comunismo
114. Alguns existem que, em face da iniquidade do
comunismo, que visa a destruir a fé naqueles mesmos a quem promete o bem-estar
material, se mostram atemorizados e incertos; mas esta Sé Apostólica, em
documentos recentes, indicou claramente qual o caminho que seguir e de que
ninguém se poderá afastar, se não quiser faltar ao próprio dever.
Denunciar as consequências ruinosas do capitalismo
115. Outros, porém, se mostram tímidos e incertos
quanto ao sistema econômico conhecido pelo nome de capitalismo, cujas graves
consequências a Igreja não tem cessado de denunciar. A Igreja, de fato, não
somente apontou os abusos do capital e do próprio direito de propriedade que o
mesmo sistema promove e defende, mas tem igualmente ensinado que o capital e a
propriedade devem ser instrumentos da produção em proveito de toda a sociedade
e meios de manutenção e de defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Os erros dos dois sistemas econômicos e as ruinosas consequências que deles
derivam devem convencer a todos, e especialmente aos sacerdotes, a manter-se
fiéis à doutrina social da Igreja e a difundir seu conhecimento e sua aplicação
prática. Esta doutrina é, realmente, a única que pode remediar os males
denunciados e tão dolorosamente difundidos: ela une e aperfeiçoa as exigências
da justiça e os deveres da caridade, promove uma ordem social que não oprima os
cidadãos e não os isole num egoísmo seco, mas a todos una na harmonia das
relações e nos vínculos da solidariedade fraternal.
Ir ao encontro dos pobres e dos ricos
116. A exemplo do divino Mestre, vá o sacerdote ao
encontro dos pobres, dos trabalhadores, daqueles todos que se encontram em
angústia e miséria, entre os quais estão também muitos da classe média e não
raros confrades de sacerdócio. Mas tampouco se descuide daqueles que, conquanto
ricos de bens de fortuna, são no entanto os mais pobres de alma e têm
necessidade de ser chamados à renovação espiritual, para dizerem como Zaqueu:
“Dou a metade de meus bens aos pobres, e, se tiver defraudado alguém,
restituirei o quádruplo” (Lc 19,8). No campo das discórdias sociais, portanto,
não perca jamais de vista o sacerdote o fim de sua missão. Com zelo, sem temor,
deve apresentar os princípios católicos acerca da propriedade, das riquezas, da
justiça social e da caridade cristã entre as diversas classes, e dar a todos
exemplo manifesto de sua aplicação.
Preparar os leigos para os deveres sociais
117. Normalmente a realização desses princípios
sociais cristãos na vida pública compete aos leigos; mas, onde não os haja
capazes, ponha o sacerdote todo o empenho em formá-los convenientemente.»
(Continua.)