sábado, 2 de janeiro de 2021

PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (I): ANOTAÇÕES PRÉVIAS E RESPOSTA A UMA OBJEÇÃO

                                                    Carlos Nougué

 1) Até o domingo próximo, farei aqui uma sugestão de programa de estudos sobre o Reinado Social de Cristo. Pensei em eu mesmo gravar um curso gratuito sobre o tema, nos moldes do curso A Atual Crise na Igreja. Mas resisti à tentação, em prol do término de meu livro Comentário ao Apocalipse, cujo apêndice, “Da História e Sua Ordem a Deus”, tratará isso mesmo, mas do ângulo da história. É que, como explicarei longamente neste mesmo apêndice, a história está para a cidade assim como um filme está para uma pintura mural: a história é a cidade em movimento. Será meu último trabalho sobre o tema, e considero-o de grande importância porque ali darei um tratamento ao assunto que creio ninguém deu ainda. Por isso mesmo, portanto, é que tive de resistir àquela tentação.

2) A sugestão de programa de estudos que farei destina-se a todos, individualmente considerados. Mas é sempre bom que haja um ou mais guias nos estudos. Por isso sugiro especialmente aos católicos e institutos que se afastaram da Liga Cristo Rei por justíssimos motivos doutrinais que assumam o papel de tais guias, mediante cursos, palestras, textos que atinjam o maior número possível de pessoas. Contem com minha intensa divulgação. Ademais, minha sugestão de programa não passa disto: sugestão, e podem fazer com ela o que bem entenderem. Esperem-na, pois, até este domingo.

3) Agora a objeção. Segundo esta, eu proponho, com tal programa, que os católicos busquem alcançar o poder e instaurar o Reinado Social de Cristo contrariamente aos desígnios da atual hierarquia da Igreja, a qual o julga atualmente impossível. Mas não há Reinado Social de Cristo sem que as nações se ordenem à Igreja. Logo, eu não proponho senão algo mundano travestido de santidade. – Respondo agora à objeção, crendo ter sido de todo fiel a seu espírito ao descrevê-la.

a) Antes de tudo, o que a objeção deixa de dizer é que a hierarquia saída do CVII não tem por desígnio o Reinado Social de Cristo justamente porque, como disse D. Lefebvre, destronou ela mesma a Cristo. No referido livro, relatarei – com provas! – os escandalosos exemplos do que ela fez na Espanha, na Colômbia, nas colônias portuguesas, na Itália... Antecipo, sucintamente, um exemplo: na Espanha, ela estimulou o cancelamento da concordata de 1953, que porém fora considerada por Pio XII um modelo de concordata. Ou seja, o que a objeção “se esquece” de dizer é que o destronamento de Cristo pela hierarquia conciliar teve por objetivo, anticristão, fazer que se rendessem ao mundo os últimos bastiões de uma moribundíssima cristandade. Criminoso. Portanto, não é que a hierarquia conciliar julgue impossível hoje em dia o Reinado Social de Cristo: é que ela é, digamos, heterodoxamente contrária a ele. Sem ela, de fato, não haverá recristianização do mundo; mas antes de tudo, insista-se, porque ela heterodoxamente não a quer. (Aliás, recomendo ao objetor que se inscreva em meu curso on-line gratuito “A Atual Crise na Igreja” e tente responder a todo ele, em conjunto.)

b) Depois, quanto a isto de impossibilidade, recomendo ao objetor a releitura meditada de Mateus 19, 21-26: “Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades. Disse então Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus. E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. Seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, e disseram: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens isso é impossível, mas a Deus TUDO é possível” – incluindo a conversão da hierarquia conciliar.

c) Depois, digo que eu mesmo não acredito em recristianização do mundo, ao menos até a morte do Anticristo; e mostro por quê no artigo 3 de “Se se deve rezar pela salvação do mundo” (in Do Papa Herético e outros opúsculos). Mas o fato é que não sou profeta – nem você, caro objetor (ou pelo menos assim o creio; se me equivoco, perdão). Não só não sabemos quanto tempo sofreremos até a morte do Anticristo, senão que mesmo nossas predições mais prováveis podem esfumar-se ante os desígnios secretos de Deus.   

d) Por fim, assim como um sacerdote, conquanto saiba perfeitamente que nem sequer entre seus fiéis o pecado se extinguirá, não deixa de vituperar o pecado nem de instá-los a uma vida santa, assim tampouco nenhum católico deve deixar de proclamar o Reinado Social de Cristo, ainda que o julgue doravante impossível. Como o mostro em “Da Realeza de Cristo” (in Estudos Tomistas – Opúsculos II), professar – segundo o estado de cada um – esta realeza é parte da nossa profissão de fé; e deixar de fazê-lo quando não se pode deixar de fazer constitui pecado, mais ou menos grave segundo o estado de cada um (e, antes que alguém me acuse de querer pontificar nisto, digo que no referido opúsculo não faço senão seguir a S. Tomás). – Mas nosso principal modelo quanto a tudo isto há de ser o Cardeal Pie de Poitiers (1815-1880), grande paladino do Reinado Social de Cristo e principal influenciador, nisto, do pontificado de São Pio X. Diferentemente de um Mons. Henri Delassus (1836-1921), que tinha certeza de que o mundo voltaria a pôr-se longamente sob o Reinado Social de Cristo, e muito mais realisticamente que ele, o Cardeal Pie oscilou entre a esperança de que o mundo (e especialmente a França) voltaria a pôr-se sob este reinado mas só brevemente e (depois de 1870) a desesperança até de tal breve restauração. Hoje, decorrido já quase um século e meio de aprofundamento revolucionário desde a morte do Cardeal, havemos de partir desta sua desesperança, se queremos permanecer tão realistas como ele. Mas o que importa mostrar aqui, a modo de conclusão, é o que disse o grande paladino do Reinado Social de Cristo aos pósteros, aos que já viveriam na antessala do breve império do Anticristo, o que parece ser nosso caso. Deu-nos ele, em verdade, a postura que deve ter todo católico em toda e qualquer época da história, sabendo que Deus não exige de nós a vitória – que sempre é d’Ele –, mas o combate. Disse o nosso Cardeal: “Nesse extremo das coisas, nesse estado desesperado, neste globo entregue ao triunfo do mal e que logo será invadido pelas chamas, o que deverão fazer todos os verdadeiros cristãos, todos os bons, todos os santos, todos os homens de fé e de coragem? Aferrando-se a uma impossibilidade mais palpável que nunca, eles dirão com energia redobrada e tanto pelo ardor de suas preces como pela atividade de suas obras e pela intrepidez de suas lutas: Ó Deus! Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome assim na terra como no céu; venha a nós o vosso reino assim na terra como no céu; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu! Eles murmurarão ainda estas palavras, e a terra tremerá sob seus pés. E, assim como outrora, em seguida a um espantoso desastre, se viu todo o senado de Roma e todas as ordens do Estado ir ao encontro do cônsul vencido, e felicitá-lo por não se ter desesperado da república, assim também o senado dos céus, todos os coros dos anjos, todas as ordens dos bem-aventurados virão ter com os generosos atletas que tiverem sustentado o combate até ao fim, esperando contra a esperança mesma: contra spem in spem’ E então este ideal impossível, que todos os eleitos de todos os séculos tinham obstinadamente perseguido, se tornará enfim realidade. Neste segundo e derradeiro advento, o Filho entregará o Reino deste mundo a Deus seu Pai, e o poder do mal terá sido evacuado, para sempre, para o fundo dos abismos; todo aquele que não tiver querido assimilar-se, incorporar-se a Deus por Jesus Cristo, pela fé, pelo amor, pela observância da lei será relegado à cloaca das imundícies eternas. E Deus viverá e reinará plenamente e eternamente, não apenas na unidade de sua natureza e na sociedade das três pessoas divinas, mas na plenitude do corpo místico de seu Filho encarnado e na consumação dos santos!”

Adveniat Regnum Tuum.