sábado, 9 de janeiro de 2021

OS MODOS DE PREDICAÇÃO DO VERBO “SER”

                                                                                                                             Carlos Nougué

O verbo ser predica-se de dois modos:

secundum se (como em Pedro é), para expressar o ser em ato ou fato de ser;

ut adiacens, ou seja, quando se predica em conjunção com o nome predicado (ou, em linguagem gramatical: com o predicativo, como em Pedro é negro), para atribuir ao sujeito da proposição o expresso por esse mesmo nome.

No segundo modo, ademais, se se diz que o verbo ser não só é adjacente (por predicar-se conjuntamente com o nome predicado), senão que é terceiro, é tão somente porque constitui uma terceira dicção na proposição. Em outras palavras, o verbo ser de cópula e o nome que ele ajuda a predicar de um sujeito constituem um só e mesmo predicado, como aliás não poderia deixar de ser: com efeito, as proposições não podem dividir-se primeiramente senão em duas partes (sujeito e predicado).

Observação 1. Talvez na esteira do Comentário do Cardeal Caetano ao Peri Hermeneias, os tomistas costumam designar estes dois modos do verbo ser como, respectivamente, “de segundo adjacente” e “de terceiro adjacente”. Mas, antes de tudo, Santo Tomás de Aquino nunca usa a expressão “de segundo adjacente”. Com efeito, escreve o nosso Doutor em seu Comentário aos Analíticos Posteriores (l. II, lect. 1, n. 409): “Sicut autem in II Perihermeneias dicitur, enunciatio dupliciter formatur. Uno quidem modo, ex nomine et verbo absque aliquo apposito, ut cum dicitur homo est; alio modo, quando aliquid tertium adiacet, ut cum dicitur homo est albus” (destaques nossos). Depois, insista-se, adjacente diz-se do verbo ser enquanto adjacente ao nome predicado (ou predicativo, em linguagem gramatical), não enquanto adjacente ao sujeito.

Observação 2. Em Gramatica, tanto o verbo de cópula como o predicativo podem, por diferente ângulo, dizer-se núcleo de predicado (o primeiro, verbal, pelo ângulo do morfológico; o segundo, nominal, pelo ângulo do significativo). Como porém se atribuem conjuntamente ao sujeito, não pode evitar-se a conclusão direta de que se trata de um só predicado, digamos, “verbo-nominal”. Mais que isso, todavia: atendendo a que, antes de tudo, o verbo de cópula realmente liga um nome predicativo ao sujeito e, depois, a que o predicado de verbo de cópula + predicativo efetivamente difere dos demais, devemos chamá-lo, segundo a mesma tradição gramatical (e contra Evanildo Bechara), predicado nominal.

Observação 3. Voltando ao âmbito da Lógica, diga-se portanto que se deve fazer a seguinte distinção quanto às enunciações ou proposições:

• Proposições com o verbo ser:

absque apposito, ou seja, proposições de ser em ato ou de existência;

ut tertium adiacens, ou seja, proposições de terceiro adjacente. 

(Trecho de “A relação entre o verbo ser copulativo e o verbo ser com o sentido de ‘ser em ato’, segundo Santo Tomás de Aquino, in Estudos Tomistas – Opúsculos II.)

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (III e final): A BIBLIOGRAFIA, COM COMENTÁRIOS

                                                                                           Carlos Nougué

Nota prévia: como se verá, diferentemente do que se dá com o magistério da Igreja com respeito ao Reinado Social de Cristo, o qual nos fornece documentos em abundância, a boa bibliografia sobre o assunto é algo parca, enquanto a má bibliografia é algo vasta. Primeiro, darei a relação dos bons livros, com alguns comentários. Depois, a dos maus livros segundo graduação de falsidade, também com alguns comentários. – E, sim, só apresentarei livros do âmbito católico, para bem ou para mal.

I. A Boa e Indispensável Bibliografia

1) Carta de Santo Agostinho ao governador Bonifácio.

2) De regno, de Santo Tomás de Aquino. Em português, publicou-se Do Reino e outros escritos (Armada e Resistência Cultural), com tradução e estudo introdutório meus. Aí está já a doutrina definitiva do Reinado Social de Cristo. É a sólida rocha sobre a qual hão de dar-se posteriores aprofundamentos.

3) La Royauté Sociale de N.-S. Jesus-Christ d’après le cardinal Pie [de Poitiers] (A Realeza Social de N. S. Jesus Cristo segundo o Cardeal Pie de Poitiers). Infelizmente, só se encontra em francês (ainda que também em PDF, na Internet). Mas é fundamental, porque o nosso Cardeal é um dos grandes paladinos do Reinado Social de Cristo. O livro tem coisas datadas, que porém não lhe tiram importância.

4) Pour qu’Il règne (Para Que Ele [Cristo] Reine), de Jean Ousset, leigo cujo movimento La Citè Catholique (A Cidade Católica) foi apoiado vivamente por Pio XII e por D. Marcel Lefebvre. Não sei se há em outras línguas. Também tem algo de datado, além de padecer de otimismo exagerado quanto à recristianização do mundo, sem que todavia nada disso lhe tire importância.

5) El Reino de Dios – La Iglesia y el Orden Político (O Reino de Deus – a Igreja e a Ordem Política) e Prometeu – A Religião do Homem (este último pela Castela Editorial), ambos do Padre Álvaro Calderón. O primeiro é indispensável porque consolida definitivamente a doutrina. O segundo, para entender o destronamento de Cristo na sociedade pelo próprio magistério conciliar. Considero o P. Calderón o maior e mais profundo Mestre auxiliar de S. Tomás.

§ OUTRAS OBRAS

Também são de interesse os seguintes livros:

1) Disputationes de controversiis christianae fidei adversus hujus temporis haereticos, Terceira Controvérsia Geral: De Summo Pontifice (1576-1588); e Tractatus de potestate summi pontificis in rebus temporales, adversus Gulielmus Barclay (1610), de São Roberto Belarmino. Por vezes, especialmente por sua terminologia antes platônica, parece que o nosso Doutor não sustenta a posição do magistério quanto à relação entre poder temporal e poder espiritual; mas não é verdade: ele o faz, e numa época adversa para tal. Tem, pois, grande mérito.

2) Les Pourquoi de la Guerre mondiale (Os Porquês da [Primeira] Guerra Mundial), de Mons. Henri Delassus. Cuidado apenas com a tendência de Delassus a ser quasi um milenarista por seu otimismo excessivo quanto à recristianização do mundo.

3) Conférences de S. Paul de Liège. De la maternité de l'Eglise. Relations essentielles des sociétés catholiques avec l'Eglise (Da Maternidade da Igreja. Relações Essenciais das Sociedades Católicas com a Igreja), do P. Feux. (Creio que não haja tradução ao português.)

§§ COM O PERDÃO DA AUTORREFERÊNCIA

Toda a parte de Política Teológica de meu livro Estudos Tomistas – Opúsculos II:

• Da Realeza de Cristo

• Corte e costura humanista

Apêndice I: Se pode o homem ter mais de um fim último (Exposição)

Apêndice II: A doutrina tomista sobre tirania e rebelião

• Notícia histórica da Doutrina Social da Igreja

• A pólis em ordem a Deus

Apêndice: Santo Tomás de Aquino e a fina “arte”  de discernir o mal menor

• O que é a ideologia

• Fátima e a Rússia de Putin, ou quando se faz imperioso um “parece”

• Quanto a Charles Maurras quem tem razão?

• Diferenças entre a revolução marxista e a revolução marcusiana

• Governo mundial, pandemia, governo Bolsonaro – os campos opostos do catolicismo tradicional e do “catolicismo” liberal-conservador

Apêndice I: Direitismo conservador “católico” versus Teologia da Libertação – duas cabeças da mesma hidra

Apêndice II: Um jesuíta vestido de brâmane – ou de como tornar-se uma democracia-cristã de sinal invertido

Uma proposta lançada em solo estéril (Proposta de programa de governo cristão para o Brasil)

II. A MÁ BIBLIOGRAFIA

Todos os livros abaixo padecem algum problema doutrinal com respeito à Realeza Social de Cristo. Divido-os em menos maus (porque ainda não saem demasiado da doutrina cristã) e em piores. No entanto, sugiro-lhes que não leiam nenhum deles senão após estarem firmes na doutrina infalível do magistério da Igreja quanto a este assunto.

§ MENOS MAUS

1) La Chiesa e lo Stato, do Padre Mateo Liberatore. (Creio que tampouco tem tradução ao português.)

2) De subordinatione indirecta Status ad Ecclesiam, in De habitudine Ecclesiae ad civilem societatem, segundo tomo do Tractatus de Ecclesia Christi, do Cardeal Louis Billot. (Sem tradução ao português, creio.)

3) Doctrina política de Santo Tomás (ou Pueblo y Gobernantes al servicio del Bien Común), de Santiago Ramírez O.P. (Não sei se tem tradução ao português.)

4) Segundo volume (Ecclesia et Status) de Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici, do Cardeal Ottaviani.

5) Os capítulos relativos à relação entre cidade e Igreja de De Lamennais a Maritain, do P. Julio Meinvielle. Como diz o P. Calderón, foi um tropeço do grande Meinvielle, devido a que aqui segue servilmente neste assunto a autoridade do Cardeal Billot. Mas quase todos os outros livros de Meinvielle são de todo recomendáveis.

§§ PIORES

1) De Monarchia, de Dante Alighieri.

2) De potestate civili, De potestate ecclesiae I-II e De Jure belli Hispanorum in barbaros, de Francisco de Vitoria, o introdutor, no século XVI, do nominalismo no tomismo quanto às relações entre estado e Igreja.

3) De legibus e Defensio fidei, ambos de Francisco Suárez, que introduz na Igreja uma sorte de “vontade geral” semelhante, mutatis mutandis, à de Jean-Jacques Rousseau.

4) L’humanisme politique de Saint Thomas, de Louis Lachance O.P.

5) Tratado de Filosofía del Derecho, tomo II, de Francisco Elías de Tejada.

6) La Juridiction de l’Eglise sur la Cité, do Cardeal Charles Journet.

7) Religion et Culture, Du régime temporel et de la liberté, Humanismo Integral e On The Philosophy of History, de Jacques Maritain, o “tomista” corruptor do tomismo e da doutrina da Realeza Social de Cristo – e pai intelectual do CVII e seu destronamento de Cristo.

* * *

Espero que a sugestão de programa de estudos que termina aqui os ajude. Obviamente, esta sugestão padece uma falha: só posso falar dos livros que li – e há multidão de outros que não li. Bons estudos.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

COM QUE TRUQUE O SOFISTA OLAVO DE CARVALHO MONTA SEU ARGUMENTO DE QUE NÃO SE PODE DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DE DEUS

                                                                                                                           Carlos Nougué

Notas prévias.

a) A obra de OdC é vasta, ainda que praticamente se identifique com seus sofismas. Por isso, no entanto, é que ler a vacuidade de sua doutrina e responder a ela é tarefa metafísica, mas sumamente entediante. Ainda assim, dar-me-ei ao tédio de responder a ela em três livros: quanto à sua doutrina histórica, em Da História e Sua Ordem a Deus; quanto à sua doutrina lógica, no Tratado dos Universais; quanto à sua doutrina metafísica, em Questões Metafísicas– Diga-se todavia que nem de longe estes livros se resumirão a responder à vácua doutrina de OdC. Há MUITA coisa MUITO mais importante a que responder.

b) Portanto, esta e outras breves postagens de crítica a OdC que eu faça tenham-nos vocês como uma sorte de aperitivos. O que todavia não farei é responder a OdC em seu ofício de bufão, de bobo da corte. Pode xingar-me à vontade, pode fazer quantas caretas queira contra mim – ofereço-o totalmente a Cristo em magra retribuição do que sofreu por nós. Não entrarei em seu palco; que bufoneie sozinho ou com sua trupe.

Observação: pergunto ao CDB se seus grupos de estudo sobre a doutrina de OdC, que visariam a mostrar aos membros do centro se OdC deve ser combatido ou aceito, já terminaram seus trabalhos. Parece que começaram em fevereiro ou março. Mera curiosidade. Podem responder-me em privado.

Agora, à falácia olavética referida no título deste post.

1) Eis o argumento de OdC para provar que não se pode demonstrar a existência de Deus. Diz ele (cf., muito por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=gBrGq0xeUMo): “Agora pergunto eu para você: existe algum argumento abstrato, por perfeito que seja, que possa provar que um determinado indivíduo concreto existe ou não? A existência de uma individualidade concreta não é matéria de prova lógica, mas é matéria de experiência. Mas Deus é uma individualidade concreta. Logo, não se pode demonstrar logicamente a existência de Deus”.

2) Respondo.

a) Antes de tudo, as provas ou demonstrações da existência de Deus não são lógicas, mas metafísicas. Mas passe isso, até porque, como mostrarei nos referidos livros, OdC entende lógica e metafísica não no sentido clássico, ou seja, aristotélico, mas em sentido mesclado de perenialismo, de modernismo e – concedo-o – de olavismo mesmo.

b) Depois, eis seu truque: comparar Deus aos indivíduos feitos de matéria para afirmar sua improbabilidade ou indemonstrabilidade. Mas os indivíduos feitos de matéria são-nos visíveis, audíveis, etc., enquanto Deus, que é puro espírito, não nos é visível nem audível. Em boa metafísica, dizemos que Deus é em si sumamente evidente mas não o é para nós, assim como o sol é sumamente visível e no entanto não o é para os morcegos; razão por que a existência de Deus deve ser demonstrada, e de fato o é, a partir de seus efeitos, ou seja, de sua criação visível. Mas justamente é este o truque de OdC: comparar o indivíduo concreto Deus com os indivíduos materiais concretos sem lembrar que entre eles há essa “sutil” diferença. Vê-se assim que o argumento de OdC é um perfeito sofisma ou falácia; e, como diziam Sócrates, Platão e Aristóteles, sofisma ou falácia é um argumento falso com aparência de verdade, e os sofistas são mercadores de mentiras.

c) Claro, claro, há de dizer OdC que ele e todos os seus amiguinhos perenialistas têm “experiência de ou com Deus”. Também a tiveram, relembro-lhes, Guénon, Schuon et caterva. Sucede todavia que, como se pode ler aqui: https://www.estudostomistas.com.br/.../tradicao-tradicao..., tal experiência não se dá propriamente com Deus, mas com o macaco deste. Este porém é assunto para minhas Questões Metafísicas.

domingo, 3 de janeiro de 2021

PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (II): OS DOCUMENTOS DO MAGISTÉRIO DA IGREJA, COM ALGUNS COMENTÁRIOS

                                                                                                                           Carlos Nougué

1) Decidi indicar primeiro, nesta postagem, os documentos do magistério da Igreja; e depois, numa próxima, os livros. Assim a coisa fica mais leve.

2) Os documentos papais de algum modo representativos da posição verdadeiramente católica acerca das relações entre Igreja e cidade, ou seja, entre poder espiritual e poder temporal – posição de todo contrária à dos humanistas integrais e vaticano-segundos –, falam por si. Basta-me, pois, dar aqui uma relação dos que me parecem os mais importantes (encontráveis em sua maioria na Internet, sobretudo no site do Vaticano, ou no Denzinger; mas cuidado com a última edição brasileira deste; na Internet, encontram-se boas e antigas edições em espanhol, em francês, etc.). Ei-la:

• Epístola Duo sunt (São Gelásio I);

• Documento de excomunhão e de deposição de Henrique IV (São Gregório VII);

• Encíclica Sicut universitatis (Inocêncio III);

• Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII), documento de inequívoco caráter extraordinário infalível;

• Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII);

• Encíclica Etsi multa luctuosa (Pio IX);

• Encíclica Quanta cura (Pio IX);

• o Syllabus (Pio IX);

• Encíclica Quod Apostolici muneris (Leão XIII);

• Encíclica Diuturnum illud (Leão XIII);

• Encíclica Immortale Dei (Leão XIII);

• Encíclica Libertas praestantissimum (Leão XIII);

• Encíclica Sapientiae christianae (Leão XIII);

• Encíclica Annum sacrum (Leão XIII);

• Encíclica Rerum novarum (Leão XIII);

• Encíclica Vehementer Nos (S. Pio X);

• Encíclica Communium rerum (S. Pio X);

• Encíclica Jucunda sane (S. Pio X);

• Encíclica Pascendi (S. Pio X);

• Motu proprio Sacrorum antistitum (S. Pio X);

• Encíclica Editae saepe Dei (S. Pio X);

• Encíclica E supremi apostolatus (S. Pio X);

• Encíclica Il fermo proposito (S. Pio X);

• Carta sobre a ação social, janeiro de 1907 (S. Pio X);

• Encíclica Ad diem illum (S. Pio X);

• Alocução Gravissimum (S. Pio X);

• Encíclica Notre charge apostolique (S. Pio X);

• Encíclica Ubi arcano (Pio XI);

• Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta magna da Cristandade;

• Encíclica Divini illius magistri (Pio XI);

• Encíclica Quadragesimo anno (Pio XI);

• Encíclica Firmissimam constantiam (Pio XI);

• Exortação Apostólica Menti Nostrae (Pio XII).

3) Comentários.

a) Como a relação entre cidade e Igreja está no centro da doutrina do Reinado Social de Cristo, os documentos mais importantes entre os relacionados acima são, justamente, aqueles que a tratam expressamente: a Epístola Duo sunt (São Gelásio I); a Encíclica Sicut universitatis (Inocêncio III); a Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII); a Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII); a Encíclica Immortale Dei (Leão XIII); e a Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta magna da Cristandade.

a1) Após a ofensa a Bonifácio VIII, voltaria a falar expressamente desta relação, três pontificados depois, o Papa João XXII (o que canonizou Santo Tomás). Mas o próximo a fazê-lo foi Leão XIII (na Immortale Dei), nada menos que seis séculos depois. Era a Igreja acuada pela rebelião e ofensiva truculenta dos estados.

a2) Para mostrar que o poder temporal deve ordenar-se essencialmente à Igreja, alguns papas se valeram de comparações simples. Por exemplo, Inocêncio III recorreu, na Sicut universitatis, a uma analogia de proporção imprópria (isto não é pejorativo) ou metafórica: o poder espiritual está para o poder temporal assim como o sol está para a lua, cuja luz depende da luz daquele. Bonifácio VIII, na Unam Sanctam, falará dos dois poderes como de dois gládios (ou espadas), o gládio espiritual manejado pela Igreja, e o temporal manejado pelos reis mas sob a direção (espiritual) da Igreja. Esta Bula foi atacada duramente por Dante e pelos reis rebeldes (mais especialmente por Felipe, o Belo); mas estes tiveram o estímulo de que o principal intérprete da Bula, Egídio Romano, não fosse um Tomás de Aquino e inadvertidamente parecesse exagerar o papel da Igreja. Santo Tomás já havia resolvido grande parte das questões atinentes às relações entre os dois poderes, a partir de uma analogia de proporcionalidade própria: o poder espiritual está para o poder temporal assim como a alma está para o corpo no composto humano. Leão XIII a retomará na magnífica Immortale Dei. Chegava-se assim, no magistério da Igreja, à formulação mais cabal do núcleo da questão. Restava ao mesmo magistério, todavia, formular a carta magna da cristandade, o que caberia a Pio XI na Quas primas, onde se põe que Cristo tem poder executivo, legislativo e judiciário não só sobre as nações cristãs, mas sobre todas as nações. Sucede porém que a carta magna da cristandade chegou quando esta já deixara de existir; já não restavam no mundo senão minguados bastiões cristãos, que o CVII e seus papas terminariam, eles mesmos, por fazer desaparecer. – Mas não se há de esquecer o lema do pontificado de S. Pio X – Instaurar ou restaurar tudo em Cristo –, infalível ao modo ordinário e influído pelo paladino do Reinado Social de Cristo: o Cardeal Pie de Poitiers, falecido em 1880.

b) A DSI (Doutrina Social da Igreja) é exatamente o mesmo que a doutrina do Reinado Social de Cristo, ainda que com matizes: trata das relações entre Igreja e nações quanto aos vários aspectos destas (política, leis, economia, etc.). Naturalmente, os modernistas – radicais ou “conservadores” –, como querem esquecer a parte política e legal da doutrina, reduzem a DSI aos aspectos econômicos e sociais. É uma falácia, como o mostro em “Notícia Histórica da Doutrina Social da Igreja” (in Estudos Tomistas – Opúsculos II). Pois bem, todos os demais documentos presentes na relação que apresentei acima tratam um ou vários destes aspectos, conquanto não tratem expressamente o referido núcleo da questão doutrinal.

c) Para terminar este post, deixo-lhes esta impressionante passagem da Exortação Apostólica de Pio XII Menti Nostrae, na qual o Papa condena tanto o comunismo como o capitalismo:

«Nenhuma incerteza contra o comunismo

114. Alguns existem que, em face da iniquidade do comunismo, que visa a destruir a fé naqueles mesmos a quem promete o bem-estar material, se mostram atemorizados e incertos; mas esta Sé Apostólica, em documentos recentes, indicou claramente qual o caminho que seguir e de que ninguém se poderá afastar, se não quiser faltar ao próprio dever.

Denunciar as consequências ruinosas do capitalismo

115. Outros, porém, se mostram tímidos e incertos quanto ao sistema econômico conhecido pelo nome de capitalismo, cujas graves consequências a Igreja não tem cessado de denunciar. A Igreja, de fato, não somente apontou os abusos do capital e do próprio direito de propriedade que o mesmo sistema promove e defende, mas tem igualmente ensinado que o capital e a propriedade devem ser instrumentos da produção em proveito de toda a sociedade e meios de manutenção e de defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Os erros dos dois sistemas econômicos e as ruinosas consequências que deles derivam devem convencer a todos, e especialmente aos sacerdotes, a manter-se fiéis à doutrina social da Igreja e a difundir seu conhecimento e sua aplicação prática. Esta doutrina é, realmente, a única que pode remediar os males denunciados e tão dolorosamente difundidos: ela une e aperfeiçoa as exigências da justiça e os deveres da caridade, promove uma ordem social que não oprima os cidadãos e não os isole num egoísmo seco, mas a todos una na harmonia das relações e nos vínculos da solidariedade fraternal.

Ir ao encontro dos pobres e dos ricos

116. A exemplo do divino Mestre, vá o sacerdote ao encontro dos pobres, dos trabalhadores, daqueles todos que se encontram em angústia e miséria, entre os quais estão também muitos da classe média e não raros confrades de sacerdócio. Mas tampouco se descuide daqueles que, conquanto ricos de bens de fortuna, são no entanto os mais pobres de alma e têm necessidade de ser chamados à renovação espiritual, para dizerem como Zaqueu: “Dou a metade de meus bens aos pobres, e, se tiver defraudado alguém, restituirei o quádruplo” (Lc 19,8). No campo das discórdias sociais, portanto, não perca jamais de vista o sacerdote o fim de sua missão. Com zelo, sem temor, deve apresentar os princípios católicos acerca da propriedade, das riquezas, da justiça social e da caridade cristã entre as diversas classes, e dar a todos exemplo manifesto de sua aplicação.

Preparar os leigos para os deveres sociais

117. Normalmente a realização desses princípios sociais cristãos na vida pública compete aos leigos; mas, onde não os haja capazes, ponha o sacerdote todo o empenho em formá-los convenientemente.»

(Continua.)

sábado, 2 de janeiro de 2021

PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (I): ANOTAÇÕES PRÉVIAS E RESPOSTA A UMA OBJEÇÃO

                                                    Carlos Nougué

 1) Até o domingo próximo, farei aqui uma sugestão de programa de estudos sobre o Reinado Social de Cristo. Pensei em eu mesmo gravar um curso gratuito sobre o tema, nos moldes do curso A Atual Crise na Igreja. Mas resisti à tentação, em prol do término de meu livro Comentário ao Apocalipse, cujo apêndice, “Da História e Sua Ordem a Deus”, tratará isso mesmo, mas do ângulo da história. É que, como explicarei longamente neste mesmo apêndice, a história está para a cidade assim como um filme está para uma pintura mural: a história é a cidade em movimento. Será meu último trabalho sobre o tema, e considero-o de grande importância porque ali darei um tratamento ao assunto que creio ninguém deu ainda. Por isso mesmo, portanto, é que tive de resistir àquela tentação.

2) A sugestão de programa de estudos que farei destina-se a todos, individualmente considerados. Mas é sempre bom que haja um ou mais guias nos estudos. Por isso sugiro especialmente aos católicos e institutos que se afastaram da Liga Cristo Rei por justíssimos motivos doutrinais que assumam o papel de tais guias, mediante cursos, palestras, textos que atinjam o maior número possível de pessoas. Contem com minha intensa divulgação. Ademais, minha sugestão de programa não passa disto: sugestão, e podem fazer com ela o que bem entenderem. Esperem-na, pois, até este domingo.

3) Agora a objeção. Segundo esta, eu proponho, com tal programa, que os católicos busquem alcançar o poder e instaurar o Reinado Social de Cristo contrariamente aos desígnios da atual hierarquia da Igreja, a qual o julga atualmente impossível. Mas não há Reinado Social de Cristo sem que as nações se ordenem à Igreja. Logo, eu não proponho senão algo mundano travestido de santidade. – Respondo agora à objeção, crendo ter sido de todo fiel a seu espírito ao descrevê-la.

a) Antes de tudo, o que a objeção deixa de dizer é que a hierarquia saída do CVII não tem por desígnio o Reinado Social de Cristo justamente porque, como disse D. Lefebvre, destronou ela mesma a Cristo. No referido livro, relatarei – com provas! – os escandalosos exemplos do que ela fez na Espanha, na Colômbia, nas colônias portuguesas, na Itália... Antecipo, sucintamente, um exemplo: na Espanha, ela estimulou o cancelamento da concordata de 1953, que porém fora considerada por Pio XII um modelo de concordata. Ou seja, o que a objeção “se esquece” de dizer é que o destronamento de Cristo pela hierarquia conciliar teve por objetivo, anticristão, fazer que se rendessem ao mundo os últimos bastiões de uma moribundíssima cristandade. Criminoso. Portanto, não é que a hierarquia conciliar julgue impossível hoje em dia o Reinado Social de Cristo: é que ela é, digamos, heterodoxamente contrária a ele. Sem ela, de fato, não haverá recristianização do mundo; mas antes de tudo, insista-se, porque ela heterodoxamente não a quer. (Aliás, recomendo ao objetor que se inscreva em meu curso on-line gratuito “A Atual Crise na Igreja” e tente responder a todo ele, em conjunto.)

b) Depois, quanto a isto de impossibilidade, recomendo ao objetor a releitura meditada de Mateus 19, 21-26: “Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades. Disse então Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus. E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. Seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, e disseram: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens isso é impossível, mas a Deus TUDO é possível” – incluindo a conversão da hierarquia conciliar.

c) Depois, digo que eu mesmo não acredito em recristianização do mundo, ao menos até a morte do Anticristo; e mostro por quê no artigo 3 de “Se se deve rezar pela salvação do mundo” (in Do Papa Herético e outros opúsculos). Mas o fato é que não sou profeta – nem você, caro objetor (ou pelo menos assim o creio; se me equivoco, perdão). Não só não sabemos quanto tempo sofreremos até a morte do Anticristo, senão que mesmo nossas predições mais prováveis podem esfumar-se ante os desígnios secretos de Deus.   

d) Por fim, assim como um sacerdote, conquanto saiba perfeitamente que nem sequer entre seus fiéis o pecado se extinguirá, não deixa de vituperar o pecado nem de instá-los a uma vida santa, assim tampouco nenhum católico deve deixar de proclamar o Reinado Social de Cristo, ainda que o julgue doravante impossível. Como o mostro em “Da Realeza de Cristo” (in Estudos Tomistas – Opúsculos II), professar – segundo o estado de cada um – esta realeza é parte da nossa profissão de fé; e deixar de fazê-lo quando não se pode deixar de fazer constitui pecado, mais ou menos grave segundo o estado de cada um (e, antes que alguém me acuse de querer pontificar nisto, digo que no referido opúsculo não faço senão seguir a S. Tomás). – Mas nosso principal modelo quanto a tudo isto há de ser o Cardeal Pie de Poitiers (1815-1880), grande paladino do Reinado Social de Cristo e principal influenciador, nisto, do pontificado de São Pio X. Diferentemente de um Mons. Henri Delassus (1836-1921), que tinha certeza de que o mundo voltaria a pôr-se longamente sob o Reinado Social de Cristo, e muito mais realisticamente que ele, o Cardeal Pie oscilou entre a esperança de que o mundo (e especialmente a França) voltaria a pôr-se sob este reinado mas só brevemente e (depois de 1870) a desesperança até de tal breve restauração. Hoje, decorrido já quase um século e meio de aprofundamento revolucionário desde a morte do Cardeal, havemos de partir desta sua desesperança, se queremos permanecer tão realistas como ele. Mas o que importa mostrar aqui, a modo de conclusão, é o que disse o grande paladino do Reinado Social de Cristo aos pósteros, aos que já viveriam na antessala do breve império do Anticristo, o que parece ser nosso caso. Deu-nos ele, em verdade, a postura que deve ter todo católico em toda e qualquer época da história, sabendo que Deus não exige de nós a vitória – que sempre é d’Ele –, mas o combate. Disse o nosso Cardeal: “Nesse extremo das coisas, nesse estado desesperado, neste globo entregue ao triunfo do mal e que logo será invadido pelas chamas, o que deverão fazer todos os verdadeiros cristãos, todos os bons, todos os santos, todos os homens de fé e de coragem? Aferrando-se a uma impossibilidade mais palpável que nunca, eles dirão com energia redobrada e tanto pelo ardor de suas preces como pela atividade de suas obras e pela intrepidez de suas lutas: Ó Deus! Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome assim na terra como no céu; venha a nós o vosso reino assim na terra como no céu; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu! Eles murmurarão ainda estas palavras, e a terra tremerá sob seus pés. E, assim como outrora, em seguida a um espantoso desastre, se viu todo o senado de Roma e todas as ordens do Estado ir ao encontro do cônsul vencido, e felicitá-lo por não se ter desesperado da república, assim também o senado dos céus, todos os coros dos anjos, todas as ordens dos bem-aventurados virão ter com os generosos atletas que tiverem sustentado o combate até ao fim, esperando contra a esperança mesma: contra spem in spem’ E então este ideal impossível, que todos os eleitos de todos os séculos tinham obstinadamente perseguido, se tornará enfim realidade. Neste segundo e derradeiro advento, o Filho entregará o Reino deste mundo a Deus seu Pai, e o poder do mal terá sido evacuado, para sempre, para o fundo dos abismos; todo aquele que não tiver querido assimilar-se, incorporar-se a Deus por Jesus Cristo, pela fé, pelo amor, pela observância da lei será relegado à cloaca das imundícies eternas. E Deus viverá e reinará plenamente e eternamente, não apenas na unidade de sua natureza e na sociedade das três pessoas divinas, mas na plenitude do corpo místico de seu Filho encarnado e na consumação dos santos!”

Adveniat Regnum Tuum.