domingo, 17 de janeiro de 2021
sábado, 9 de janeiro de 2021
OS MODOS DE PREDICAÇÃO DO VERBO “SER”
Carlos Nougué
O verbo ser predica-se de dois modos:
•
secundum se (como em Pedro é), para expressar o
ser em ato ou fato de ser;
•
ut adiacens, ou seja, quando se
predica em conjunção com o nome predicado (ou, em linguagem gramatical: com o
predicativo, como em Pedro é negro), para atribuir ao
sujeito da proposição o expresso por esse mesmo nome.
No
segundo modo, ademais, se se diz que o verbo ser não só é adjacente (por predicar-se
conjuntamente com o nome predicado), senão que é terceiro, é tão somente
porque constitui uma terceira dicção na proposição. Em outras palavras, o verbo
ser de cópula e o nome
que ele ajuda a predicar de um sujeito constituem um só e mesmo predicado, como
aliás não poderia deixar de ser: com efeito, as proposições não podem
dividir-se primeiramente senão em duas partes (sujeito e predicado).
Observação 1. Talvez
na esteira do Comentário do Cardeal Caetano ao Peri Hermeneias, os tomistas
costumam designar estes dois modos do verbo ser como, respectivamente, “de segundo
adjacente” e “de terceiro adjacente”. Mas, antes de tudo, Santo Tomás de Aquino
nunca usa a expressão “de segundo adjacente”. Com efeito, escreve o nosso
Doutor em seu Comentário
aos Analíticos Posteriores (l. II, lect. 1, n. 409): “Sicut autem in II Perihermeneias
dicitur, enunciatio dupliciter formatur. Uno quidem modo, ex nomine et verbo absque aliquo apposito, ut cum dicitur homo
est; alio modo, quando aliquid tertium adiacet, ut cum dicitur homo est albus” (destaques
nossos). Depois, insista-se, adjacente diz-se do verbo ser enquanto
adjacente ao nome predicado (ou predicativo, em linguagem gramatical), não enquanto
adjacente ao sujeito.
Observação 2. Em
Gramatica, tanto o verbo de cópula como o predicativo podem, por diferente ângulo, dizer-se núcleo de
predicado (o primeiro, verbal, pelo ângulo do
morfológico; o segundo, nominal, pelo ângulo do
significativo). Como porém se atribuem conjuntamente ao sujeito, não pode evitar-se a
conclusão direta de que se trata de um só predicado, digamos, “verbo-nominal”. Mais que isso,
todavia: atendendo a que, antes de tudo, o verbo de cópula realmente liga um nome
predicativo ao sujeito e, depois, a que o predicado de verbo de cópula +
predicativo efetivamente difere dos demais, devemos chamá-lo, segundo a mesma
tradição gramatical (e contra Evanildo Bechara), predicado nominal.
Observação 3. Voltando
ao âmbito da Lógica, diga-se portanto que se deve fazer a seguinte distinção
quanto às enunciações ou proposições:
•
Proposições com o verbo ser:
◊
absque apposito, ou seja,
proposições de ser em ato ou de existência;
◊ ut tertium adiacens, ou seja, proposições de terceiro adjacente.
(Trecho
de “A relação entre o verbo ser copulativo e o verbo ser com o
sentido de ‘ser em ato’, segundo Santo Tomás de Aquino”, in Estudos Tomistas – Opúsculos II.)
terça-feira, 5 de janeiro de 2021
PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (III e final): A BIBLIOGRAFIA, COM COMENTÁRIOS
Carlos Nougué
Nota prévia: como se verá, diferentemente do que se dá com
o magistério da Igreja com respeito ao Reinado Social de Cristo, o qual nos
fornece documentos em abundância, a boa bibliografia sobre o assunto é algo parca,
enquanto a má bibliografia é algo vasta. Primeiro, darei a relação dos bons
livros, com alguns comentários. Depois, a dos maus livros segundo graduação de
falsidade, também com alguns comentários. – E, sim, só apresentarei livros do
âmbito católico, para bem ou para mal.
I. A Boa e
Indispensável Bibliografia
1) Carta de Santo Agostinho ao governador
Bonifácio.
2) De regno, de Santo Tomás de Aquino.
Em português, publicou-se Do Reino e outros escritos (Armada e
Resistência Cultural), com tradução e estudo introdutório meus. Aí está já a
doutrina definitiva do Reinado Social de Cristo. É a sólida rocha sobre a qual
hão de dar-se posteriores aprofundamentos.
3) La Royauté Sociale de N.-S. Jesus-Christ d’après
le cardinal Pie [de Poitiers] (A Realeza Social de N. S. Jesus Cristo
segundo o Cardeal Pie de Poitiers). Infelizmente, só se encontra em francês (ainda
que também em PDF, na Internet). Mas é fundamental, porque o nosso Cardeal é um
dos grandes paladinos do Reinado Social de Cristo. O livro tem coisas datadas,
que porém não lhe tiram importância.
4) Pour qu’Il règne (Para Que Ele
[Cristo] Reine), de Jean Ousset, leigo cujo movimento La Citè Catholique (A Cidade
Católica) foi apoiado vivamente por Pio XII e por D. Marcel Lefebvre. Não sei
se há em outras línguas. Também tem algo de datado, além de padecer de otimismo
exagerado quanto à recristianização do mundo, sem que todavia nada disso lhe
tire importância.
5) El Reino de Dios – La Iglesia y el Orden Político
(O Reino de Deus – a Igreja e a Ordem Política) e Prometeu – A Religião do
Homem (este último pela Castela Editorial), ambos do Padre Álvaro Calderón.
O primeiro é indispensável porque consolida definitivamente a doutrina. O
segundo, para entender o destronamento de Cristo na sociedade pelo próprio magistério
conciliar. Considero o P. Calderón o maior e mais profundo Mestre auxiliar de
S. Tomás.
§ OUTRAS OBRAS
Também são de interesse os seguintes livros:
1) Disputationes
de controversiis christianae fidei adversus hujus temporis haereticos,
Terceira Controvérsia Geral: De Summo
Pontifice (1576-1588); e Tractatus
de potestate summi pontificis in rebus temporales, adversus Gulielmus Barclay (1610),
de São Roberto Belarmino. Por vezes, especialmente por sua terminologia antes platônica,
parece que o nosso Doutor não sustenta a posição do magistério quanto à relação
entre poder temporal e poder espiritual; mas não é verdade: ele o faz, e numa época
adversa para tal. Tem, pois, grande mérito.
2) Les Pourquoi de la Guerre mondiale (Os Porquês da [Primeira] Guerra Mundial), de Mons. Henri Delassus. Cuidado apenas com a tendência de Delassus a ser quasi um milenarista por seu otimismo excessivo quanto à recristianização do mundo.
3) Conférences de S. Paul de Liège. De la maternité de l'Eglise. Relations essentielles des sociétés catholiques avec l'Eglise (Da Maternidade da Igreja. Relações Essenciais das Sociedades Católicas com a Igreja), do P. Feux. (Creio que não haja tradução ao português.)
§§ COM
O PERDÃO DA AUTORREFERÊNCIA
Toda
a parte de Política Teológica de meu livro Estudos Tomistas – Opúsculos II:
• Da Realeza de Cristo
• Corte e costura humanista
Apêndice I: Se pode o homem ter mais de um fim último (Exposição)
Apêndice II: A doutrina tomista sobre tirania e
rebelião
• Notícia
histórica da Doutrina Social da Igreja
• A pólis em ordem a Deus
Apêndice: Santo Tomás de Aquino e a
fina “arte” de discernir o mal menor
• O que é a
ideologia
• Fátima e a Rússia de Putin, ou quando se faz imperioso um
“parece”
• Quanto a Charles Maurras quem tem razão?
• Diferenças
entre a revolução marxista e a revolução marcusiana
• Governo
mundial, pandemia, governo Bolsonaro – os campos opostos do catolicismo
tradicional e do “catolicismo” liberal-conservador
Apêndice I: Direitismo conservador “católico” versus
Teologia da Libertação – duas cabeças da mesma hidra
Apêndice II: Um jesuíta vestido de brâmane – ou de como
tornar-se uma democracia-cristã de sinal invertido
• Uma proposta lançada em solo estéril (Proposta de programa de
governo cristão para o Brasil)
II. A MÁ BIBLIOGRAFIA
Todos os livros abaixo padecem algum
problema doutrinal com respeito à Realeza Social de Cristo. Divido-os em menos
maus (porque ainda não saem demasiado da doutrina cristã) e em piores. No
entanto, sugiro-lhes que não leiam nenhum deles senão após estarem firmes na
doutrina infalível do magistério da Igreja quanto a este assunto.
§
MENOS MAUS
1) La
Chiesa e lo Stato, do Padre Mateo
Liberatore. (Creio que tampouco tem tradução ao português.)
2) De
subordinatione indirecta Status ad Ecclesiam, in
De habitudine Ecclesiae ad civilem societatem,
segundo tomo do Tractatus de Ecclesia Christi,
do Cardeal Louis Billot. (Sem tradução ao português, creio.)
3) Doctrina
política de Santo Tomás (ou Pueblo
y Gobernantes al servicio del Bien Común), de Santiago
Ramírez O.P. (Não sei se tem tradução ao português.)
4) Segundo
volume (Ecclesia et Status) de
Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici,
do Cardeal Ottaviani.
5) Os
capítulos relativos à relação entre cidade e Igreja de De
Lamennais a Maritain, do P. Julio
Meinvielle. Como diz o P. Calderón, foi um tropeço do grande Meinvielle, devido
a que aqui segue servilmente neste assunto a autoridade do Cardeal Billot. Mas
quase todos os outros livros de Meinvielle são de todo recomendáveis.
§§ PIORES
1) De Monarchia, de Dante Alighieri.
2) De potestate civili, De potestate
ecclesiae I-II e De Jure belli Hispanorum in barbaros, de
Francisco de Vitoria, o introdutor, no século XVI, do nominalismo no tomismo
quanto às relações entre estado e Igreja.
3) De
legibus e Defensio fidei,
ambos de Francisco Suárez, que introduz na Igreja uma sorte de “vontade
geral” semelhante, mutatis mutandis, à de Jean-Jacques Rousseau.
4) L’humanisme
politique de Saint Thomas, de Louis Lachance O.P.
5) Tratado de Filosofía del Derecho, tomo II, de Francisco Elías de Tejada.
6) La Juridiction de l’Eglise sur la Cité, do Cardeal Charles Journet.
7) Religion
et Culture, Du régime
temporel et de la liberté, Humanismo Integral
e On The Philosophy of History,
de Jacques Maritain, o “tomista” corruptor do tomismo e da doutrina da Realeza
Social de Cristo – e pai intelectual do CVII e seu destronamento de Cristo.
* * *
Espero que a sugestão de programa de estudos que
termina aqui os ajude. Obviamente, esta sugestão padece uma falha: só posso
falar dos livros que li – e há multidão de outros que não li. Bons estudos.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2021
COM QUE TRUQUE O SOFISTA OLAVO DE CARVALHO MONTA SEU ARGUMENTO DE QUE NÃO SE PODE DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DE DEUS
Carlos Nougué
Notas prévias.
a) A obra de OdC é vasta, ainda que praticamente se identifique com seus sofismas. Por isso, no entanto, é que ler a vacuidade de sua doutrina e responder a ela é tarefa metafísica, mas sumamente entediante. Ainda assim, dar-me-ei ao tédio de responder a ela em três livros: quanto à sua doutrina histórica, em Da História e Sua Ordem a Deus; quanto à sua doutrina lógica, no Tratado dos Universais; quanto à sua doutrina metafísica, em Questões Metafísicas. – Diga-se todavia que nem de longe estes livros se resumirão a responder à vácua doutrina de OdC. Há MUITA coisa MUITO mais importante a que responder.
b) Portanto, esta e outras breves postagens de crítica a OdC que eu
faça tenham-nos vocês como uma sorte de aperitivos. O que todavia não farei é
responder a OdC em seu ofício de bufão, de bobo da corte. Pode xingar-me à
vontade, pode fazer quantas caretas queira contra mim – ofereço-o totalmente a
Cristo em magra retribuição do que sofreu por nós. Não entrarei em seu palco;
que bufoneie sozinho ou com sua trupe.
Observação: pergunto ao CDB se seus grupos de estudo sobre a
doutrina de OdC, que visariam a mostrar aos membros do centro se OdC deve ser
combatido ou aceito, já terminaram seus trabalhos. Parece que começaram em
fevereiro ou março. Mera curiosidade. Podem responder-me em privado.
Agora, à falácia olavética referida no
título deste post.
1) Eis o argumento de OdC para provar que não se pode demonstrar
a existência de Deus. Diz ele (cf., muito por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=gBrGq0xeUMo):
“Agora pergunto eu para você: existe algum argumento abstrato, por perfeito que
seja, que possa provar que um determinado indivíduo concreto existe ou não? A
existência de uma individualidade concreta não é matéria de prova lógica, mas é
matéria de experiência. Mas Deus é uma individualidade concreta. Logo, não se
pode demonstrar logicamente a existência de Deus”.
2) Respondo.
a) Antes de tudo, as provas ou demonstrações da existência de
Deus não são lógicas, mas metafísicas. Mas passe isso, até porque, como
mostrarei nos referidos livros, OdC entende lógica e metafísica não no sentido
clássico, ou seja, aristotélico, mas em sentido mesclado de perenialismo, de
modernismo e – concedo-o – de olavismo mesmo.
b) Depois, eis seu truque: comparar Deus aos indivíduos feitos
de matéria para afirmar sua improbabilidade ou indemonstrabilidade. Mas os
indivíduos feitos de matéria são-nos visíveis, audíveis, etc., enquanto Deus,
que é puro espírito, não nos é visível nem audível. Em boa metafísica, dizemos
que Deus é em si sumamente evidente mas não o é para nós, assim como o sol é
sumamente visível e no entanto não o é para os morcegos; razão por que a
existência de Deus deve ser demonstrada, e de fato o é, a partir de seus
efeitos, ou seja, de sua criação visível. Mas justamente é este o truque de
OdC: comparar o indivíduo concreto Deus com os indivíduos materiais concretos
sem lembrar que entre eles há essa “sutil” diferença. Vê-se assim que o
argumento de OdC é um perfeito sofisma ou falácia; e, como diziam Sócrates,
Platão e Aristóteles, sofisma ou falácia é um argumento falso com aparência de
verdade, e os sofistas são mercadores de mentiras.
c) Claro, claro, há de dizer OdC que ele e todos os seus amiguinhos
perenialistas têm “experiência de ou com Deus”. Também a tiveram,
relembro-lhes, Guénon, Schuon et caterva. Sucede todavia que, como se pode ler
aqui: https://www.estudostomistas.com.br/.../tradicao-tradicao...,
tal experiência não se dá propriamente com Deus, mas com o macaco deste. Este porém é assunto para minhas Questões Metafísicas.
domingo, 3 de janeiro de 2021
PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (II): OS DOCUMENTOS DO MAGISTÉRIO DA IGREJA, COM ALGUNS COMENTÁRIOS
Carlos Nougué
1) Decidi indicar primeiro, nesta postagem, os
documentos do magistério da Igreja; e depois, numa próxima, os livros. Assim a
coisa fica mais leve.
2) Os documentos papais de algum modo
representativos da posição verdadeiramente católica acerca das relações entre
Igreja e cidade, ou seja, entre poder espiritual e poder temporal – posição de
todo contrária à dos humanistas integrais e vaticano-segundos –, falam por si.
Basta-me, pois, dar aqui uma relação dos que me parecem os mais importantes
(encontráveis em sua maioria na Internet, sobretudo no site do Vaticano, ou no
Denzinger; mas cuidado com a última edição brasileira deste; na Internet,
encontram-se boas e antigas edições em espanhol, em francês, etc.). Ei-la:
• Epístola Duo sunt (São Gelásio I);
• Documento de excomunhão e de deposição de
Henrique IV (São Gregório VII);
• Encíclica Sicut
universitatis (Inocêncio III);
• Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII),
documento de inequívoco caráter extraordinário infalível;
• Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros
de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João
XXII);
• Encíclica Etsi multa luctuosa (Pio IX);
• Encíclica Quanta cura (Pio IX);
• o Syllabus (Pio IX);
• Encíclica Quod Apostolici muneris (Leão
XIII);
• Encíclica Diuturnum illud (Leão XIII);
• Encíclica Immortale Dei (Leão XIII);
• Encíclica Libertas praestantissimum (Leão
XIII);
• Encíclica Sapientiae christianae (Leão
XIII);
• Encíclica Annum sacrum (Leão XIII);
• Encíclica Rerum novarum (Leão XIII);
• Encíclica Vehementer Nos (S. Pio X);
• Encíclica Communium rerum (S. Pio X);
• Encíclica Jucunda sane (S. Pio X);
• Encíclica Pascendi (S. Pio X);
• Motu proprio Sacrorum antistitum (S. Pio
X);
• Encíclica Editae saepe Dei (S. Pio X);
• Encíclica E supremi apostolatus (S. Pio
X);
• Encíclica Il fermo proposito (S. Pio X);
• Carta sobre a ação social, janeiro de 1907 (S.
Pio X);
• Encíclica Ad diem illum (S. Pio X);
• Alocução Gravissimum (S. Pio X);
• Encíclica Notre charge apostolique (S. Pio
X);
• Encíclica Ubi arcano (Pio XI);
• Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta
magna da Cristandade;
• Encíclica Divini illius magistri (Pio XI);
• Encíclica Quadragesimo anno (Pio XI);
• Encíclica Firmissimam constantiam (Pio
XI);
• Exortação Apostólica Menti Nostrae (Pio
XII).
3) Comentários.
a) Como a relação entre cidade e Igreja está no
centro da doutrina do Reinado Social de Cristo, os documentos mais importantes
entre os relacionados acima são, justamente, aqueles que a tratam
expressamente: a Epístola Duo sunt (São Gelásio I); a Encíclica Sicut
universitatis (Inocêncio III); a Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII);
a Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de
João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII); a Encíclica Immortale
Dei (Leão XIII); e a Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta magna
da Cristandade.
a1) Após a ofensa a Bonifácio VIII, voltaria a
falar expressamente desta relação, três pontificados depois, o Papa João XXII
(o que canonizou Santo Tomás). Mas o próximo a fazê-lo foi Leão XIII (na Immortale
Dei), nada menos que seis séculos depois. Era a Igreja acuada pela rebelião
e ofensiva truculenta dos estados.
a2) Para mostrar que o poder temporal deve
ordenar-se essencialmente à
Igreja, alguns papas se valeram de comparações simples. Por exemplo, Inocêncio
III recorreu, na Sicut universitatis, a uma analogia de proporção
imprópria (isto não é pejorativo) ou metafórica: o poder espiritual está para o
poder temporal assim como o sol está para a lua, cuja luz depende da luz
daquele. Bonifácio VIII, na Unam Sanctam, falará dos dois poderes como
de dois gládios (ou espadas), o gládio espiritual manejado pela Igreja, e o
temporal manejado pelos reis mas sob a direção (espiritual) da Igreja. Esta
Bula foi atacada duramente por Dante e pelos reis rebeldes (mais especialmente
por Felipe, o Belo); mas estes tiveram o estímulo de que o principal intérprete
da Bula, Egídio Romano, não fosse um Tomás de Aquino e inadvertidamente
parecesse exagerar o papel da Igreja. Santo Tomás já havia resolvido grande
parte das questões atinentes às relações entre os dois poderes, a partir de uma
analogia de proporcionalidade própria:
o poder espiritual está para o poder temporal assim como a alma está para o
corpo no composto humano. Leão XIII a retomará na magnífica Immortale Dei.
Chegava-se assim, no magistério da Igreja, à formulação mais cabal do núcleo da
questão. Restava ao mesmo magistério, todavia, formular a carta magna da
cristandade, o que caberia a Pio XI na Quas primas, onde se põe que
Cristo tem poder executivo, legislativo e judiciário não só sobre as nações
cristãs, mas sobre todas as nações. Sucede porém que a carta magna da
cristandade chegou quando esta já deixara de existir; já não restavam no mundo
senão minguados bastiões cristãos, que o CVII e seus papas terminariam, eles
mesmos, por fazer desaparecer. – Mas não se há de esquecer o lema do
pontificado de S. Pio X – Instaurar ou restaurar tudo em Cristo –,
infalível ao modo ordinário e influído pelo paladino do Reinado Social de
Cristo: o Cardeal Pie de Poitiers, falecido em 1880.
b) A DSI (Doutrina Social da Igreja) é exatamente o
mesmo que a doutrina do Reinado Social de Cristo, ainda que com matizes: trata
das relações entre Igreja e nações quanto aos vários aspectos destas (política,
leis, economia, etc.). Naturalmente, os modernistas – radicais ou
“conservadores” –, como querem esquecer a parte política e legal da doutrina,
reduzem a DSI aos aspectos econômicos e sociais. É uma falácia, como o mostro
em “Notícia Histórica da Doutrina Social da Igreja” (in Estudos Tomistas –
Opúsculos II). Pois bem, todos os demais documentos presentes na relação
que apresentei acima tratam um ou vários destes aspectos, conquanto não tratem
expressamente o referido núcleo da questão doutrinal.
c) Para terminar este post, deixo-lhes esta
impressionante passagem da Exortação Apostólica de Pio XII Menti Nostrae,
na qual o Papa condena tanto o comunismo como o capitalismo:
«Nenhuma incerteza contra o comunismo
114. Alguns existem que, em face da iniquidade do
comunismo, que visa a destruir a fé naqueles mesmos a quem promete o bem-estar
material, se mostram atemorizados e incertos; mas esta Sé Apostólica, em
documentos recentes, indicou claramente qual o caminho que seguir e de que
ninguém se poderá afastar, se não quiser faltar ao próprio dever.
Denunciar as consequências ruinosas do capitalismo
115. Outros, porém, se mostram tímidos e incertos
quanto ao sistema econômico conhecido pelo nome de capitalismo, cujas graves
consequências a Igreja não tem cessado de denunciar. A Igreja, de fato, não
somente apontou os abusos do capital e do próprio direito de propriedade que o
mesmo sistema promove e defende, mas tem igualmente ensinado que o capital e a
propriedade devem ser instrumentos da produção em proveito de toda a sociedade
e meios de manutenção e de defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Os erros dos dois sistemas econômicos e as ruinosas consequências que deles
derivam devem convencer a todos, e especialmente aos sacerdotes, a manter-se
fiéis à doutrina social da Igreja e a difundir seu conhecimento e sua aplicação
prática. Esta doutrina é, realmente, a única que pode remediar os males
denunciados e tão dolorosamente difundidos: ela une e aperfeiçoa as exigências
da justiça e os deveres da caridade, promove uma ordem social que não oprima os
cidadãos e não os isole num egoísmo seco, mas a todos una na harmonia das
relações e nos vínculos da solidariedade fraternal.
Ir ao encontro dos pobres e dos ricos
116. A exemplo do divino Mestre, vá o sacerdote ao
encontro dos pobres, dos trabalhadores, daqueles todos que se encontram em
angústia e miséria, entre os quais estão também muitos da classe média e não
raros confrades de sacerdócio. Mas tampouco se descuide daqueles que, conquanto
ricos de bens de fortuna, são no entanto os mais pobres de alma e têm
necessidade de ser chamados à renovação espiritual, para dizerem como Zaqueu:
“Dou a metade de meus bens aos pobres, e, se tiver defraudado alguém,
restituirei o quádruplo” (Lc 19,8). No campo das discórdias sociais, portanto,
não perca jamais de vista o sacerdote o fim de sua missão. Com zelo, sem temor,
deve apresentar os princípios católicos acerca da propriedade, das riquezas, da
justiça social e da caridade cristã entre as diversas classes, e dar a todos
exemplo manifesto de sua aplicação.
Preparar os leigos para os deveres sociais
117. Normalmente a realização desses princípios
sociais cristãos na vida pública compete aos leigos; mas, onde não os haja
capazes, ponha o sacerdote todo o empenho em formá-los convenientemente.»
(Continua.)
sábado, 2 de janeiro de 2021
PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (I): ANOTAÇÕES PRÉVIAS E RESPOSTA A UMA OBJEÇÃO
Carlos Nougué
2) A sugestão de
programa de estudos que farei destina-se a todos, individualmente considerados.
Mas é sempre bom que haja um ou mais guias nos estudos. Por isso sugiro
especialmente aos católicos e institutos que se afastaram da Liga Cristo
Rei por justíssimos motivos doutrinais que assumam o papel de tais guias,
mediante cursos, palestras, textos que atinjam o maior número possível de
pessoas. Contem com minha intensa divulgação. Ademais, minha sugestão de
programa não passa disto: sugestão, e podem fazer com ela o que bem entenderem.
Esperem-na, pois, até este domingo.
3) Agora a
objeção. Segundo esta, eu proponho, com tal programa, que os católicos busquem
alcançar o poder e instaurar o Reinado Social de Cristo contrariamente aos desígnios
da atual hierarquia da Igreja, a qual o julga atualmente impossível. Mas não há
Reinado Social de Cristo sem que as nações se ordenem à Igreja. Logo, eu não
proponho senão algo mundano travestido de santidade. – Respondo agora à objeção,
crendo ter sido de todo fiel a seu espírito ao descrevê-la.
a) Antes de
tudo, o que a objeção deixa de dizer é que a hierarquia saída do CVII não tem
por desígnio o Reinado Social de Cristo justamente porque, como disse D. Lefebvre,
destronou ela mesma a Cristo. No referido livro, relatarei – com provas! – os
escandalosos exemplos do que ela fez na Espanha, na Colômbia, nas colônias
portuguesas, na Itália... Antecipo, sucintamente, um exemplo: na Espanha, ela
estimulou o cancelamento da concordata de 1953, que porém fora considerada por
Pio XII um modelo de concordata. Ou seja, o que a objeção “se esquece” de dizer
é que o destronamento de Cristo pela hierarquia conciliar teve por objetivo,
anticristão, fazer que se rendessem ao mundo os últimos bastiões de uma
moribundíssima cristandade. Criminoso. Portanto, não é que a hierarquia
conciliar julgue impossível hoje em dia o Reinado Social de Cristo: é que ela é, digamos, heterodoxamente contrária a ele. Sem ela, de fato, não haverá recristianização do
mundo; mas antes de tudo, insista-se, porque ela heterodoxamente não a quer. (Aliás,
recomendo ao objetor que se inscreva em meu curso on-line gratuito “A Atual
Crise na Igreja” e tente responder a todo ele, em conjunto.)
b) Depois,
quanto a isto de impossibilidade, recomendo ao objetor a releitura meditada de
Mateus 19, 21-26: “Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o
que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.
E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas
propriedades. Disse então Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo
que é difícil entrar um rico no reino dos céus. E outra vez vos digo que
é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico
no reino de Deus. Seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, e
disseram: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles,
disse-lhes: Aos homens isso é impossível, mas a Deus TUDO é possível” – incluindo
a conversão da hierarquia conciliar.
c) Depois, digo
que eu mesmo não acredito em recristianização do mundo, ao menos até a morte do
Anticristo; e mostro por quê no artigo 3 de “Se se deve rezar pela salvação do
mundo” (in Do Papa Herético e outros opúsculos). Mas o fato é que não sou
profeta – nem você, caro objetor (ou pelo menos assim o creio; se me equivoco,
perdão). Não só não sabemos quanto tempo sofreremos até a morte do Anticristo,
senão que mesmo nossas predições mais prováveis podem esfumar-se ante os
desígnios secretos de Deus.
d) Por fim,
assim como um sacerdote, conquanto saiba perfeitamente que nem sequer entre
seus fiéis o pecado se extinguirá, não deixa de vituperar o pecado nem de instá-los
a uma vida santa, assim tampouco nenhum católico deve deixar de proclamar o Reinado
Social de Cristo, ainda que o julgue doravante impossível. Como o mostro em “Da
Realeza de Cristo” (in Estudos Tomistas – Opúsculos II), professar – segundo o
estado de cada um – esta realeza é parte da nossa profissão de fé; e deixar de fazê-lo
quando não se pode deixar de fazer constitui pecado, mais ou menos grave
segundo o estado de cada um (e, antes que alguém me acuse de querer pontificar
nisto, digo que no referido opúsculo não faço senão seguir a S. Tomás). – Mas nosso
principal modelo quanto a tudo isto há de ser o Cardeal Pie de Poitiers (1815-1880),
grande paladino do Reinado Social de Cristo e principal influenciador, nisto,
do pontificado de São Pio X. Diferentemente de um Mons. Henri Delassus
(1836-1921), que tinha certeza de
que o mundo voltaria a pôr-se longamente sob o Reinado Social de Cristo, e
muito mais realisticamente que ele, o Cardeal Pie oscilou entre a esperança de
que o mundo (e especialmente a França) voltaria a pôr-se sob este reinado mas
só brevemente e (depois de 1870) a
desesperança até de tal breve restauração. Hoje, decorrido já quase um século e meio de aprofundamento
revolucionário desde a morte do Cardeal, havemos de partir desta sua
desesperança, se queremos permanecer tão realistas como ele. Mas o que importa mostrar
aqui, a modo de conclusão, é o que disse o grande paladino do Reinado Social de
Cristo aos pósteros, aos que já viveriam na antessala do breve império do Anticristo,
o que parece ser nosso caso.
Deu-nos ele, em verdade, a postura que deve ter todo católico em toda e
qualquer época da história, sabendo que Deus não exige de nós a vitória – que sempre
é d’Ele –, mas o combate. Disse o nosso Cardeal: “Nesse extremo das coisas, nesse estado desesperado, neste globo entregue
ao triunfo do mal e que logo será invadido pelas chamas, o que deverão fazer
todos os verdadeiros cristãos, todos os bons, todos os santos, todos os homens
de fé e de coragem? Aferrando-se a uma impossibilidade mais palpável
que nunca, eles dirão com energia redobrada e tanto pelo ardor de suas preces
como pela atividade de suas obras e pela intrepidez de suas lutas: Ó Deus! Pai
nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome assim na terra como no
céu; venha a nós o vosso reino assim na terra como no céu; seja feita a vossa
vontade assim na terra como no céu! Eles murmurarão ainda estas palavras, e a
terra tremerá sob seus pés. E, assim como outrora, em seguida a um espantoso
desastre, se viu todo o senado de Roma e todas as ordens do Estado ir ao
encontro do cônsul vencido, e felicitá-lo por não se ter desesperado da
república, assim também o senado dos céus, todos os coros dos anjos, todas as
ordens dos bem-aventurados virão ter com os generosos atletas que
tiverem sustentado o combate até ao fim, esperando contra a esperança mesma: contra
spem in spem’ E então este ideal impossível, que todos os eleitos de
todos os séculos tinham obstinadamente perseguido, se tornará enfim realidade.
Neste segundo e derradeiro advento, o Filho entregará o Reino deste mundo a
Deus seu Pai, e o poder do mal terá sido evacuado, para sempre, para o fundo
dos abismos; todo aquele que não tiver querido assimilar-se, incorporar-se a
Deus por Jesus Cristo, pela fé, pelo amor, pela observância da lei será relegado à cloaca das imundícies eternas. E Deus viverá e reinará
plenamente e eternamente, não apenas na unidade de sua natureza e na sociedade
das três pessoas divinas, mas na plenitude do corpo místico de seu Filho
encarnado e na consumação dos santos!”
Adveniat
Regnum Tuum.