Como
me escreveu o tradutor do artigo (de 2018), Leonildo Trombela Junior, “parece que após a exortação do Pe. Calderón de 2015 ele [o P. Gleize] mudou
em algo sua posição. Aqui parece muito mais próxima sua posição da do Padre
argentino do que em Vatican 2 en débat e Magistere et foi”.
* * *
Publicado em 13/11/2021
Pe.
Jean-Michel Gleize, FSSPX
Fonte:
Courrier de Rome nº 606, Janeiro de 2018 – Tradução: Dominus
Est
UMA
QUESTÃO DE PRINCÍPIO
A exortação pós-sinodal Amoris
laetitia não deixou ninguém indiferente. Mas eis que, segundo o
parecer do próprio Papa, a única interpretação possível do capítulo 8 desse
documento é aquela dada pelos bispos da região de Buenos Aires na Argentina,
quando afirmaram abertamente que o acesso aos sacramentos pode ser autorizado a
certos casais de divorciados recasados. «O escrito é muito bom e explicita
perfeitamente o sentido do capítulo 8 de Amoris laetitia, e não há
outra interpretação», afirmou o Papa em uma carta de setembro de 2016. E eis
que em junho de 2017 a Secretaria de Estado do Vaticano reconhece o estatuto de
«Magistério autêntico» a essa afirmação.
Isso suscitará de novo uma questão já
há muito estudada[1]. Estando admitido que as autoridades da hierarquia
eclesiástica continuam em posse de seu poder de Magistério, pode-se perguntar:
qual valor atribuir aos atos de ensino concedidos pelas autoridades em vigor na
Igreja (o Papa e os bispos) desde o Concílio Vaticano II? Deve isso ser visto
como o exercício de um verdadeiro Magistério, ainda que, no todo ou em parte,
esses ensinamentos se desviem da Tradição da Igreja? A posição da Fraternidade
São Pio X[2] sustenta que desde o Vaticano II em diante assolou (e
ainda assola a Igreja), «um novo tipo de magistério, imbuído de princípios
modernistas, que vicia a natureza, o conteúdo, o papel e o exercício».
Essa posição reteve toda a atenção de
um representante designado pelo Sumo Pontífice, o Secretário da Comissão
Pontifical Ecclesia Dei, Mons. Guido Pozzo, e inspirou a
problemática fundamental de todo o seu discurso[3], indo na mesma linha
daquele do Papa Bento XVI. O objetivo dessa problemática é validar aos olhos da
Fraternidade o valor propriamente magisterial dos ensinamentos conciliares,
antes de lhes fazer aceitá-lo. Porquanto é preciso que esse ensinamento seja
aceito. Já antes das discussões doutrinais de 2009-2011, Bento XVI havia
claramente anunciado essa intenção: «Deste modo torna-se claro que os
problemas, que agora se devem tratar, são de natureza essencialmente doutrinal
e dizem respeito sobretudo à aceitação do Concílio Vaticano II e do magistério
pós-conciliar dos Papas. […] Não se pode congelar a autoridade magisterial da
Igreja no ano de 1962: isto deve ser bem claro para a Fraternidade»[4].
Isso mostra a urgência ainda atual dessa questão crucial, que é uma questão de
princípio. Nós a reexaminaremos aqui sob a forma sintética de uma questão
disputada, fazendo valer os diferentes argumentos pró e contra, a fim de
colocar em evidência a legitimidade da posição defendida até aqui pela
Fraternidade.
OS
ENSINAMENTOS CONCILIARES SÃO PROPRIAMENTE MAGISTERIAIS?
ARGUMENTOS
A FAVOR E CONTRA
Parece
que sim
1. Primeiramente[5], a
verdadeira natureza dos ensinamentos do Concílio Vaticano II e do pós-Concílio
situa-se como que sobre um cume, acima de dois erros extremos e opostos, e é
por isso que conviria traçar duas linhas brancas intransponíveis à esquerda e à
direita que devem conduzir a inteligência à verdade. À esquerda, a linha branca
deve evitar a posição maximalista, que faz do Concílio Vaticano II um tipo de
super-dogma de natureza pastoral, em nome do qual relativiza-se a doutrina
católica da Tradição. À direita, ela deve evitar a posição minimalista, que
sustenta que o Vaticano II é apenas um concílio pastoral e, por isso mesmo, desprovido
de qualquer valor doutrinal e magisterial. Recusando as duas posições,
maximalistas e minimalistas, «deve-se ler e compreender os documentos do
Magistério do Vaticano II e dos pontífices posteriores diretamente a partir do
que eles pretendiam realmente ensinar (a mens do autor) sem se
deixar condicionar pela realidade virtual ou alterada posta em circulação por
outros intérpretes humanos não autorizados»[6]. Assim, devemos
considerar que o Concílio, mesmo se ele não tenha querido propor novas definições
dogmáticas, tenha mesmo assim dado um ensinamento magisterial que diz respeito
à fé e à moral, e que ele exige o assentimento interior do intelecto e da
vontade, assim como os demais ensinamentos de caráter prático-pastoral, que
pedem uma adesão respeitosa, ainda que diferente.
2. Em segundo lugar, de fato bem vemos
que existem atos de ensino do Concílio Vaticano II e dos papas posteriores que
são propriamente magisteriais — como por exemplo a sacramentalidade do
episcopado no capítulo III da constituição Lumen gentium ou a
condenação do sacerdócio feminino na Carta apostólica Ordinatio
sacerdotalis de João Paulo II — visto que o conteúdo, o tom e a
finalidade desses atos manifestam claramente que o Papa pretendeu aí realmente
fazer uso de sua autoridade magisterial no sentido o mais tradicional.
3. Em terceiro lugar, o Magistério é,
como ensina Pio XII, a regra próxima da verdade em matéria de fé e costumes.
Ora, assim como a Igreja não poderia manter-se indefectível por um longo
período sem um papa que verdadeiramente reine, Ela tampouco o poderia sem que o
Magistério se exerça em ato. É por isso que negar que os ensinamentos
pós-conciliares sejam propriamente magisteriais, e negar que verdadeiramente
haja um papa verdadeiramente reinante, conduz às mesmas consequências, ou seja,
a colocar em questão as promessas feitas por Nosso Senhor e a negar a
indefectibilidade da Igreja.
4. Em quarto lugar, Mons. Lefebvre
declarou quando falava do Concílio Vaticano II: «Existe um magistério ordinário
pastoral que certamente pode conter erros ou exprimir simples opiniões»[7].
Ele também declarou que seria preciso julgar os documentos do Concílio à luz da
Tradição para aceitar aqueles que estão em conformidade com Ela[8].
Portanto, o Concílio Vaticano II representava aos seus olhos um «Magistério»
propriamente dito.
Parece
que não
5. Em quinto lugar, em uma conferência
dada em Écône[9], Mons. Lefebvre declarou: «Temos o Papa João XXIII, o
Papa Paulo VI e o Papa João Paulo II. […] São liberais. Eles têm um espírito
liberal. […] Então como vocês querem que almas como essas realizem atos que
eles considerem definitivos e que obriguem todos os fiéis a aderir de uma
maneira definitiva? Eles não podem realizar atos como esse. É por isso que
sempre trazem restrições em seus comentários, em suas cartas e em seus
comunicados oficiais, seja em um consistório, seja numa reunião pública. […] Há
agora, portanto, todo um sistema em Roma que não existia outrora e que não pode
nos dar leis da maneira que os papas nos deram anteriormente, porque eles não
têm mais o espírito verdadeiramente católico nessa questão. Eles não tem a
concepção claramente católica da infalibilidade, da imutabilidade do dogma, da
permanência da Tradição, permanência da Revelação, e nem mesmo, eu diria, da
obediência doutrinal. […] Então toda essa concepção que eles têm os impede de
realizar atos nas exatas condições e com a mesma concepção que tinham os papas
de outrora. Isso me parece claro. E é por isso que nós nos encontramos em uma
confusão inconcebível». Portanto, Mons. Lefebvre tinha ao menos uma séria
dúvida sobre a natureza magisterial dos novos ensinamentos conciliares.
6. Em sexto lugar, na ocasião do 25º
aniversário das sagrações episcopais de 1988, Mons. Lefebvre declarou: «Nós
estamos certamente obrigados a constatar que esse Concílio atípico, que só quis
ser pastoral e não dogmático, inaugurou um novo tipo de magistério,
desconhecido até então na Igreja, sem raízes na Tradição; um magistério
decidido a conciliar a doutrina católica com as ideias liberais; um magistério
imbuído dos princípios modernistas do subjetivismo, do imanentismo e em
perpétua evolução segundo os falsos conceitos de tradição viva, que vicia a
natureza, o conteúdo e o papel do exercício do magistério eclesiástico»[10].
Tiramos a mesma conclusão que no sétimo argumento.
PRINCÍPIO
DE RESPOSTA
Para dar uma resposta, é preciso
definir os termos da questão.
Definamos o predicado da nossa questão
e vejamos o que é um ato «propriamente magisterial». O ato do Magistério
eclesiástico é aquele de um testemunho prestado com autoridade em nome de
Cristo: é essencialmente o ato de uma autoridade vicária. Esse ato é
então definido e limitado por seu objeto, que é a salvaguarda e a explicação
das verdades divinamente reveladas. Fora desse objeto, o ato da autoridade
eclesiástica não poderia corresponder ao de um Magistério propriamente dito[11].
A reta razão esclarecida pela fé é capaz de verificar em certos casos quando a
autoridade eclesiástica é exercida fora de seus limites, que é precisamente
quando ela vê que essa autoridade contradiz o objeto próprio do Magistério, já
proposto enquanto tal. Há um critério negativo destacado por São Paulo na
Epístola aos Gálatas[12]: as autoridades eclesiásticas agem fora de seus
limites quando elas dão um ensinamento contrário às verdades já definidas pelo
Magistério infalível ou constantemente propostos pelo Magistério ordinário,
inclusive o simplesmente autêntico. Em tal caso, então é possível verificar a
ilegitimidade e a natureza não-magisterial de um ato de ensino procedendo a
posteriori, e examinando o objeto desse ato, na sua relação com os outros
objetos de outros atos anteriores do Magistério. Mas isso então levanta a
questão da natureza propriamente magisterial desse ensino, porque, se o objeto
mesmo desse ensinamento (seu «quod», falando em linguagem escolástica) é a
negação do objeto do Magistério, ainda que somente sobre alguns pontos,
poderíamos certamente perguntar se o motivo formal desse ensinamento (o «quo»)
é habitualmente (ou seja, em todos os demais atos) aquele do Magistério; com
efeito, há uma relação necessária de adequação entre os dois. Certamente pode suceder
que o papa ensine em um ato isolado algo que não é o objeto de seu magistério
(por exemplo, uma opinião teológica) sem que isso seja o sinal que seu
ensinamento habitual não é de natureza magisterial. Todavia, quando o Papa
ensina, mesmo num ato isolado, algo que contradiz o objeto de seu Magistério
(um erro grave, inclusive uma heresia), não é desarrazoado se perguntar se não
há aí o sinal que seu ensinamento habitual não é mais de natureza magisterial.
Com efeito, a negação do «quod» (que é mais que sua ausência) é ordinariamente
o sinal da ausência do quo, em se tratando de atos do poder, e não
do poder mesmo.
Definamos em seguida o sujeito da nossa
questão e vejamos o que são «os ensinamentos conciliares». Os ensinamentos do
Vaticano II, assim como aqueles dos papas posteriores ao Concílio, são
primeiramente ensinamentos que contradizem, ao menos em vários pontos
importantes (a liberdade religiosa e o indiferentismo dos Estados, a nova
eclesiologia latitudinarista do «subsistit», o ecumenismo e o diálogo
inter-religioso, a colegialidade e o sacerdócio comum, a nova liturgia, o novo
Código de Direito Canônico), os dados objetivos do Magistério constante, já
claramente proposto com a autoridade requerida. São, em segundo lugar,
ensinamentos que trazem como consequência prática uma protestantização
generalizada dos fiéis católicos. São, em terceiro lugar, ensinamentos que se
dão como aqueles de um novo «magistério», que os Papas João XXIII[13] e
Paulo VI[14] apresentaram como sendo do tipo pastoral; e do qual o
Papa Bento XVI[15] disse que estava sendo proposta a redefinição da
relação da fé da Igreja, em relação a certos elementos essenciais do pensamento
moderno.
Então é possível concluir dizendo que:
primeiramente, os ensinamentos conciliares não são certamente de natureza
magisterial em todos aqueles pontos particulares e isolados em que são
contrários às verdades já definidas pelo Magistério infalível ou constantemente
propostas pelo Magistério ordinário; em segundo lugar, quanto aos outros
pontos, nós estamos em dúvida, porque os ensinamentos conciliares procedem
globalmente de um novo «magistério» de tipo pastoral, cuja intenção «vicia a
natureza, o conteúdo, o papel e o exercício do Magistério eclesiástico»[16],
e duvidosamente faz parte do Magistério propriamente dito. Por isso que se os
consideramos formalmente como a expressão desse novo «magistério» (e não
somente na medida em que eles podem ser materialmente conformes à Tradição, e
eventualmente se beneficiarem da autoridade do Magistério anterior), esses
ensinamentos conciliares são duvidosamente de natureza magisterial. Em razão
dessa dúvida, parece-nos prudente, por regra geral, evitar apresentar na nossa
pregação as declarações do novo «magistério» como argumentos revestidos de uma
autoridade magisterial propriamente dita, a fim de não inspirar a respeito dos
ensinamentos conciliares e pós-conciliares uma confiança que se mostraria
prejudicial no longo prazo para o espírito dos nossos fiéis. Com isso, sobre
todos os pontos isolados em que esses ensinamentos são materialmente e
aparentemente conformes à Tradição (como por exemplo a condenação do sacerdócio
feminino em Ordinatio sacerdotalis), a mesma prudência não nos
impede de levá-los em conta e de tirar, na medida do possível, um razoável proveito
deles, utilizando-os de uma maneira ou de outra, abaixo do grau de autoridade
magisterial, em particular como argumentos ad hominem ou a
título de assunto informativo ou reflexão teológica.
Essa dupla conclusão se impõe do fato
de que nós julgamos a árvore pelos seus frutos, em conformidade com o método
preconizado e seguido por Mons. Lefebvre: «Sem rejeitar em bloco o Concílio,
penso que ele é o maior desastre deste século e de todos os séculos passados,
desde a fundação da Igreja. Nisso eu não faço senão julgar seus frutos,
utilizando o critério dado por Nosso Senhor (Mt VII, 16)»[17]. Com
efeito, esse juízo é a conclusão de um raciocínio a posteriori, que
remonta do objeto do ensinamento à natureza duvidosamente magisterial desse
ensinamento, como do efeito à sua causa formal. Esse caráter duvidoso do
ensinamento se acentua quando os detentores da autoridade afirmam ademais uma
mudança no nível de sua intenção. E esse juízo parece ainda mais justificado se
levarmos em conta a mentalidade liberal que infecta seus espíritos.
Esta dupla conclusão se dá como
verdadeira não especulativamente, mas praticamente falando. Não é uma conclusão
dogmática estabelecida pela lei e nem mesmo pela teologia. É uma conclusão
estabelecida pela prudência sobrenatural e o Dom de Conselho[18]. Ela é
verdadeira, portanto, até segunda ordem e mantendo salvo o juízo futuro do
Magistério da Igreja, que Deus certamente suscitará para esclarecer todas as
dúvidas levantadas pela crise presente.
Resposta
aos argumentos
1. Ao primeiro nós respondemos que esse
argumento, no que ele contesta a posição «minimalista», decorre logicamente de
um duplo postulado. O primeiro postulado é o da continuidade sistemática de
todos os ensinamentos conciliares com a Tradição, em nome da inerrância do Concílio;
trata-se aí precisamente de um postulado, ou seja, de uma posição não
verificada, e inverificável, visto que os fatos a contradizem. O segundo
postulado é o da mens segundo a qual os autores dos
ensinamentos conciliares teriam a intenção de exercer um ato de Magistério,
embora não infalível; trata-se novamente de um postulado, visto que esta
intenção não está provada. Temos razões mais sérias para presumir em todos os
sucessores de João XXIII e Paulo VI a intenção radical e ordinária de se vincular
aos pressupostos liberais e personalistas do pensamento moderno. Em seu livro
publicado em 1982, Les Principes de la théologie catholique, o
Cardeal Joseph Ratzinger afirma que a intenção fundamental do Concílio Vaticano
II está contida na constituição pastoral Gaudium et spes[19].
O prefeito da fé afirma: «O texto faz o papel de um contra-Syllabus na medida
em que ele representa uma tentativa de reconciliação oficial entre a Igreja e o
mundo, tal como ele passou a ser desde 1789». Em 1984, o mesmo Cardeal
Ratzinger declara ainda que o Concílio foi reunido para fazer entrar na Igreja
doutrinas que nasceram fora dela, doutrinas que vêm do mundo[20]. O
discurso de 22 de dezembro de 2005 afirma também que o Concílio Vaticano II se
propôs definir de uma maneira nova «a relação entre a fé da Igreja e
determinados elementos essenciais do pensamento moderno». Portanto, o Vaticano
II foi estabelecido com o propósito de harmonizar a pregação da Igreja com os
princípios do pensamento moderno e liberal saído de 1789. Tal é também a
constatação feita por Mons. Lefebvre desde o fim do Concílio: «Nós assistimos
ao casamento da Igreja com as ideias liberais. Seria negar a evidência, fechar
os olhos se não afirmarmos corajosamente que o Concílio permitiu àqueles que
professam os erros e as tendências condenadas pelos Papas supracitados que
cressem legitimamente que suas doutrinas estavam a partir de então aprovadas»[21].
Mais tarde, em Écône, ele dirá: «Então toda essa concepção que eles têm os
impede de realizar atos nas exatas condições e com a mesma concepção que tinham
os papas de outrora»[22]. Essa intenção fundamental não foi recusada,
ela inclusive é sempre implicitamente mantida na referência habitual (e mais
frequentemente exclusiva) que os homens da Igreja fazem ao Concílio Vaticano
II. Ela torna duvidosa a natureza magisterial da pregação habitual desses
homens da Igreja.
2. Ao segundo nós respondemos que,
mesmo que se admita por pura hipótese (dato non concesso) que os
ensinamentos conciliares sejam sobre alguns pontos conformes à Tradição, esses
pontos se encontram inseridos em uma síntese global que é contrária à Tradição
católica de sempre. Nós podemos nos ater ao princípio de análise que nos deixou
Mons. Lefebvre: «O Concílio foi desviado de seu fim por um grupo de
conspiradores e nos é impossível entrar nessa conspiração, mesmo que tivessem
muitos textos satisfatórios no Concílio. Porque os bons textos serviram para
que fossem aceitos os textos equívocos, minados e ardilosos»[23]. O que
Mons. Lefebvre diz aqui do Concílio globalmente considerado pode-se dizer
também de maneira análoga de todos os ensinamentos pós-conciliares globalmente
considerados: nós não podemos aprovar esse novo «Magistério», mesmo que ele
tivesse muitos textos materialmente satisfatórios, porque esses textos
materialmente bons se inscrevem formalmente em uma lógica ruim e servem para
tornar aceitável outros textos equívocos, minados e ardilosos. Por outro lado,
mesmo sobre os pontos assinalados à maneira de exemplo, não é difícil mostrar
que a conformidade com os ensinos da Tradição é mais aparente que real. A
sacramentalidade do episcopado tal como Lumen gentium ensina[24] e
os pressupostos epistemológicos de Ordinatio sacerdotalis[25] situam-se
numa óptica que duvidosamente é aquela da Tradição.
3. Com o terceiro concordamos que a
indefectibilidade da Igreja faz com que seja necessária a existência e o
exercício perpétuo de um Magistério vivo, mas negamos que a natureza
duvidosamente magisterial dos ensinamentos da hierarquia desde o Vaticano II
resultaria na ausência absoluta de todo exercício de todo o Magistério em toda
a Igreja, e isso por duas razões. Primeira e fundamentalmente porque o
Magistério vivo que é necessário à indefectibilidade da Igreja não se reduz ao
Magistério presente[26], porquanto ele integra todos os atos do
Magistério passado. Depois, porque o Magistério presente se exerce enquanto tal
no âmbito de uma ação comum ordenada, e não se reduz somente à atividade do
Papa e nem só à atividade comum de todos os bispos. A unidade e a perpetuidade
do exercício do Magistério são mantidas sempre que tiver ao menos uma parte dos
pastores (ou até mesmo um só) que se mantenha fiel para transmitir a fé[27].
E a dúvida que nós colocamos diz respeito ao ensinamento posterior ao Vaticano
II desde um ponto de vista precisamente lógico e não cronológico: todo
ensinamento formalmente conciliar é duvidoso no sentido de que ele procede
conforme a intenção formal indicada no princípio de resposta e comumente
adotado pela hierarquia, queira ou não, em sua pregação oficial. O objetante
coloca aqui um dilema que pode se reduzir a esses dois termos: ou o
«magistério» conciliar presente é o Magistério da Igreja, ou o Magistério da
Igreja não existe; ora, o Magistério da Igreja não pode não existir; portanto,
o, o «magistério» conciliar presente é o Magistério da Igreja. Isso é esquecer
que a regra da verdade em matéria de fé e costumes está suficientemente
estabelecida na Igreja de uma maneira própria à condição humana, ou seja, a
partir do momento em que o Magistério é exercido através de alguns atos de
ensino de alguns pastores, sejam eles do passado, ou mesmo do presente, mas não
necessariamente através de todos os atos de ensino de todos os pastores. Todo
fiel pode recorrer a esses certos atos e se apoiar, encontrando neles a certeza
necessária de ter encontrado a garantia que é preciso para professar sua fé na
unidade católica da Igreja, e isso mesmo que a Providência autorizasse por
algum tempo uma certa carência em todos os demais atos. Conforme sublinha
Franzelin, já citado, a época do arianismo manifesta seriamente a possibilidade
de uma situação parecida.
4. Ao quarto nós respondemos que a
citação atribuída a Mons. Lefebvre está tirada de seu contexto. Trata-se de uma
nota que especifica o verdadeiro significado de certos pontos evocados na troca
de cartas entre Mons. Lefebvre e o Cardeal Ratzinger: «Supondo que os textos
do Vaticano II sejam atos magisteriais, três fatos permanecem inegáveis.
Primeiramente, diferente de todos os concílios ecumênicos anteriores, o
Vaticano II se pretendeu “Concílio pastoral” e não definiu nenhum ponto
doutrinal no sentido de definição irreformável. Por conseguinte, os documentos
desse concílio no máximo caem sob a jurisdição do Magistério ordinário da
Igreja, no qual não está excluída a possibilidade de encontrar erros». Esse
«supondo que» (dato non concesso) dá todo o sentido verdadeiro à
citação. Disso fica claro que não se poderia extrair daí o argumento que o
objetante gostaria de encontrar. Ademais, o fim da nota especifica: «Atualizar
a Igreja, ou seja, colocá-la em concordância com os erros modernos para
fazê-la, por assim dizer, sair de seu gueto, virando as costas para a Tradição,
que é veículo da fé, é uma heresia monstruosa. É o que fez o Vaticano II:
casamento da Igreja com a ideologia de 1789». O verdadeiro pensamento de Mons.
Lefebvre não obstante é mais complexo e nuançado que poderia parecer olhando só
para uma nota isolada, citada a modo de contradição. Para se dar conta disso,
basta percorrer as diferentes conferências em que o fundador da Fraternidade se
exprime sobre a questão ao longo dos anos. Podemos perceber que Mons. Lefebvre
raramente fala do Vaticano II como sendo um Magistério. Quando ele o faz, as
precisões que ele emprega mostram que essa palavra não pode ser aplicada ao
último Concílio em seu sentido próprio habitual. Com efeito, ele evoca: «um
magistério que destrói o Magistério [de sempre], que destrói essa Tradição»[28];
«um magistério novo ou uma concepção nova do Magistério da Igreja, concepção
que é, ademais, uma concepção modernista»[29]; «um magistério cada vez
mais mal definido»[30]; «um magistério infiel, um magistério que não é
fiel à Tradição»[31]; «um magistério que não é fiel ao Magistério de
sempre»[32]; «um Magistério novo»[33]. Em uma correspondência
oficial endereçada ao prefeito da Sagrada congregação para a doutrina da fé,
Mons. Lefebvre sustentou o seguinte argumento: «Um magistério novo, sem raiz no
passado, e com maior razão contrário ao Magistério de sempre, só pode ser
cismático, quiçá herético»[34]. Eis o que é representativo da reflexão
levada a cabo por Mons. Lefebvre diante da amplitude desse fenômeno inédito
introduzido na Igreja pelo Vaticano II.
5. Estamos de acordo com o quinto e o
sexto argumentos, na medida em que se trata de uma verdade prática e de uma
conclusão prudente, não de uma verdade especulativa e de uma conclusão
dogmática ou teológica — salvo futuro judicio Ecclesiæ[35].
Notas
1. A
reflexão que vem sendo levada a cabo no interior da Fraternidade há pouco mais
de dez anos conseguiu delimitar de maneira cada vez melhor o problema. Cf. por
exemplo: Mons. Lefebvre, «Vatican II. L’autorité d’un concile en question»,
Institut Universitaire Saint-Pie X, Vu de haut n° 13, 2 006
; Autorité et réception du concile Vatican II. Études théologiques.
Quatrième symposium de Paris (6-7 au 8 octobre 2005), Vu de haut hors série,
2 006 ; Fraternité Sacerdotale Saint-Pie X, Magistère de soufre. Études
théologiques sur le concile Vatican II, Iris, 2009; Padre Jean-Michel Gleize:
«Magistère et foi», Courrier de Rome n° 346 (536) de julho-agosto 2011; «Une
question cruciale», Courrier de Rome n° 350 (540) de dezembro de 2011;
«Magistère ou Tradition vivante», Courrier de Rome n° 352 (542) de fevereiro de
2012; «À propos d’un article récent», Courrier de Rome n° 358 (548) de setembro
2012; «Pour un Magistère synodal?», Courrier de Rome n° 390 (581) de outubro de
2015. [Nota do blog: Sobre esse debate interno, recomendamos a obra “A
Candeia debaixo do alqueire” do Pe. Álvaro Calderón, especialmente o
texto “R. P. Jean-Michel Gleize: Para aproximar posições”, presente ao final da
2ª edição brasileira de 2020.]
2. Mons.
Lefebvre, «Carta de 20 de dezembro de 1966 endereçada ao Cardeal Ottaviani»
em J’accuse le Concile, Éd. Saint-Gabriel, Martigny, 1976, p.
107-111; Mons. Fellay, «Declaração por ocasião do 25º aniversário das sagrações
episcopais», 27 de junho de 2013, nº 4 em Cor unum, n° 106, p. 36;
Pe. Jean-Michel Gleize, Vatican II em débat, 2ª parte, capítulo XI,
nº 19, Courrier de Rome, 2012, p. 196.
3. As
ideias principais desse discurso estão sintetizadas na conferência dada na
sexta-feira, 4 de abril de 2014, endereçada aos membros do Instituto Bom Pastor
e publicada no site Catholicae Disputationes: «Le concile Vatican
II: renouveau dans la continuité avec la Tradition». Essa declaração foi
analisada e refutada em detalhes em dois artigos: «40 ans plus tard» e «40 ans
passés autour du Concile», Courrier de Rome n° 382 (572) de
dezembro de 2014.
4. Bento
XVI, «Carta de Sua Santidade Bento Xvi aos bispos da Igreja católica a
propósito da remissão da excomunhão aos quatro bispo consagrados pelo Arcebispo
Lefebvre» de 10 de março de 2019.
5. Pozzo, Ibidem,
p. 8.
6. Id, ibidem,
p. 11.
7. Fideliter,
número 46 de julho-agosto de 1985, p. 4; Cor unum, números 21, p.
30-32 e 101, p. 29 e seguintes.
8. Mons.
Lefebvre, Conferência de 2 de dezembro de 1982 em Écône em Vu de haut nº
13, p. 57.
9. «Conferência
em Écône de 12 de junho de 1984», Cospec nº 111.
10. Mons.
Fellay, «Declaração por ocasião do 25º aniversário das sagrações episcopais»,
27 de junho de 2013, nº 4, em Cor unum, nº 106, p. 36.
11. Santo
Tomas de Aquino, Suma Teológica, IIaIIae, questão 104, artigo 5,
corpus e ad 3.
12. Gal
1, 8.
13. DC nº
1387, col. 1382-1383 et DC nº 1391, col. 101.
14. DC nº
1410, col. 1 348 ; DC nº 1462, col. 64.
15. DC nº
2350, col. 59-63.
16. Mons.
Fellay, «Declaração por ocasião do 25º aniversário das sagrações episcopais»,
27 de junho de 2013, nº 4, em Cor unum, nº 106, p. 36.
17. Mons.
Lefebvre, Ils L’ont découronné, Éditions Fideliter, 1986, p 23.
18. Mons.
Lefebvre, «Conferência em Écone no dia 5 de outubro de 1978», Cospec,
nº 060A e 060B.
19. Les Principes de la théologie
catholique. Esquisse et matériaux,
Téqui, 1982, p. 423-440.
20. Cardeal
Joseph Ratzinger, Entretiens sur la foi, Paris, Fayard, 1985, p.
38.
21. Mons.
Lefebvre, «Carta de 20 de dezembro de 1966 endereçada ao Cardeal Ottaviani»
em J’accuse le Concile, Éd. Saint-Gabriel, Martigny, 1976, p.
107-111.
22. Mons.
Lefebvre, «Conferência em Écone no dia 12 de junho de 1984», Cospec,
nº 111.
23. Id., J’accuse le
Concile, p. 10.
24. Pe. Jean-Michel Gleize, «Une
conception collégiale de l’Église vue comme communion» em Instituto
Universitário São Pio X, Vatican II, les points de rupture. Actes du
Colloque des 10 et 11 novembre 2012, Vu de haut nº 20, 2014, p. 31-44;
«Évêque de Rome?», Courrier de Rome n° 376 (566) de mai 2014.
25. Pe. Jean-Michel Gleize, Vatican
II en débat, 2ª parte, capítulo X, nº 21, Courrier de Rome, 2012, p.
176-178.
26. Cf.
«40 ans passés autour du Concile», Courrier de Rome nº 382
(572) de dezembro de 2014; «Seulement le Magistère?», Courrier de Rome de
fevereiro de 2016 ; Pe. Jean-Michel
Gleize, Vatican II en débat, 2ª parte, capítulo X, nº 28, Courrier
de Rome, 2012, p. 204-205.
27. Cf. Jean-Baptiste
Franzelin, La Tradition divine, tese 12, Corolário nº 209, Courrier
de Rome, 2008, p. 149-150.
28. Mons.
Lefebvre, «Conferência em Écône no dia 29 de setembro de 1975» em Vu de
haut nº 13, p. 23.
29. Id.,
«Conferência em Écône no dia 13 de janeiro de 1977» em Vu de haut nº
13, p. 51.
30. Id.,
«Conferência em Écône no dia 13 de janeiro de 1977» em Vu de haut nº
13, p. 52.
31. Id.,
«Conferência em Angers no dia 20 de novembro de 1980» em Vu de haut nº
13, p. 53.
32. Id.,
«Conferência em Écône no dia 10 de abril de 1981» em Vu de haut nº
13, p. 55.
33. Id.,
«Conferência em Écône no dia 10 de abril de 1981» em Vu de haut nº
13, p. 56.
34. Id.,
«Carta de 8 de julho de 1987 ao Cardeal Ratzinger» em Vu de haut nº
13, p. 62.
35. NdT:
Salvo o juízo futuro da Igreja.
Fonte: http://catolicosribeiraopreto.com/os-ensinamentos-do-concilio-vaticano-ii-fazem-propriamente-parte-do-magisterio/