Carlos Nougué
Estou longe de ser um desses tradicionalistas
que têm a D. Lefebvre por inerrante. Se até S. Tomás errou... Quem dera, todavia,
que todos os que se dizem tradicionalistas seguissem a D. Lefebvre no que me
parece o núcleo de seu pensamento: a crise atual na Igreja resulta do
destronamento de Cristo por sua hierarquia, em continuidade com o que se vinha
dando progressivamente no mundo desde o século XIV. Mas infelizmente o que
vemos é o exato oposto: muitos dos que se dizem tradicionalistas (e isto nos
mais variados meios tradicionalistas) são praticamente, ou ainda
teoricamente, liberais, o que os põe nos antípodas da doutrina da realeza
social de Cristo. Sim, porque, como o mostrarei em “Da História e Sua Ordem a Deus”
(apêndice do Comentário ao Apocalipse) e na esteira do Cardeal Pie de
Poitiers (que gigante!), não adianta alguém afirmar contra os modernistas que o
Reino de Deus se identifica com a Igreja, se não identifica aquele e esta com o Reino
Social de Cristo: são, com efeito, o mesmo, ainda que visto por ângulos
diversos. Mais que isso: de pouco serve um sacerdote fornecer os sacramentos de
sempre e criticar duramente o CVII, se politicamente sustenta de algum modo o
liberalismo. Pode ser instrumento de salvação para seu minguado rebanho, mas
não contribui para o combate mais amplo, até ao martírio se necessário for, a
um mundo apóstata e radicalmente liberal. De fato, não teria havido o comunismo
se não tivesse havido a ala jacobina do liberalismo, e não teria havido o
vitorioso marcusianismo se não tivesse havido a ala sado-libertina do mesmo
liberalismo. Haverá então, hão de perguntar-me, uma terceira ala liberal, que
não tenha contribuído para as revoluções posteriores? Distingo. Há, sim, uma terceira
ala: a racional-deísta, a fundadora, por exemplo, dos Estados Unidos, a de um Thomas Jefferson,
ala cuja doutrina política acabou por ser perfeitamente assimilada por John Adams
e seus puritanos. Mas esta ala, conquanto fale de um Deus criador e de uma lei
natural, não fala em sentido cristão e verdadeiro: seu Deus descansou tanto no
sétimo dia, que não intervém na história nem é sua causa final; e sua lei
natural não é a parte da lei eterna endereçada aos homens, mas o imperativo categórico
kantiano, perfeitamente imanente. E por tudo isso é que a ala racional-deísta,
que hoje é representada pelos Trumps da vida e pela direita gnóstica internacional
(Steve Bannon, OdC, Alex Jones, et alii), é incapaz de fazer efetiva frente
sobretudo à ala sado-libertina do liberalismo (que desde a década de 1960 assumiu a forma de marcusianismo). Ao
contrário, está permanentemente grávida desta, e permanentemente a dá à luz.
O pior de tudo isso, no entanto,
insisto, é que parte não desprezível do tradicionalismo católico atual, mais ou
menos conscientemente mas quase sempre continuadamente, é caudatária e vai a
reboque da ala racional-deísta do liberalismo. O principal porta-voz atual desta
ala católica tradicionalista é o Arcebispo Carlo Maria Viganò, que, em aparente
contradição com sua postura diante do magistério conciliar, não faz centralmente
senão repetir as estapafúrdias “narrativas” conspiracionistas dos
racional-deístas (às quais já respondi suficientemente na parte de “Política
teológica” de meu livro Estudos Tomistas
– Opúsculos II), além de, contra a prudência exigida por Santo Agostinho e
pelo mesmo magistério da Igreja, externar publicamente sua certeza da proximidade do Anticristo – e
tudo, o que é ainda pior, sob uma equívoca roupagem de defesa da realeza de
Cristo. Ainda que o faça não deliberadamente, esse modo de atuar é uma perfeita
manobra diversionista que mantém seus leitores sempre pendentes de uma ficção política,
sempre tendentes a certa forma de sedevacantismo, e sempre satisfeitos de si
mesmos: fazem parte de uma minoria iluminada que não se deixa enganar pelos donos
do mundo nem pelo falso profeta que se senta hoje no trono de Pedro. É
demasiada irresponsabilidade. Para constatá-lo, basta ler sua carta
interpretada pelo errante Frei Tiago – seu atual porta-voz para os lusófonos! –,
carta que de tão risível deveria fazer qualquer católico
tradicionalista sentir vergolha alheia... (cf. “Vacinas e o Pacto do Vaticano com o Poder Mundial”, aqui). Convenha-se, contudo, em que a postura de D. Viganò tem
algo de efêmero. Mas não tem nada de efêmero a postura do Padre Richard Gennaro Cipolla, sacerdote da Diocese de Bridgeport, CT,
EUA, e celebrante da missa tridentina. Que postura é essa? O velho e “bom” liberalismo
americanista travestido de tradicionalismo católico, o que se pode constatar
por seu artigo “Pode a Igreja Católica ser a campeã
contra as forças do liberalismo secular militante?”, publicado no famoso
e respeitado site tradicionalista Rorate Caeli e (traduzido ao espanhol)
no site Adelante la Fe, de Roberto de Mattei (cf. aqui).
Não nos deixemos enganar pelo título: porque, com efeito, o que o Padre chama “liberalismo
secular militante” é apenas a ala sado-libertina do liberalismo, já que no
mesmo artigo, além de elogiar a Thomas Jefferson (!), ele se mostra convicto defensor
da ala racional-deísta do mesmo liberalismo. Ao fim e ao cabo, diz ali o mesmo
que disse D. Viganò durante as últimas eleições presidenciais estadunidenses:
segundo o nosso arcebispo, estaria em jogo nestas eleições o destino mesmo da
humanidade, a ponto de o famoso dignitário participar de um ato de apoio a Trump
ao lado de gnósticos direitistas e de membros de outras religiões no mais puro
espírito de Assis...
Ou seja, quanto a seguir a postura
de D. Lefebvre com respeito ao drama central da Igreja desde o CVII – o destronamento
de Cristo, contra as Escrituras, a tradição e o magistério autêntico e
infalível da Igreja –, nada, absolutamente nada, afora algum “flatus vocis”. Mas
(hão de perguntar-se alguns) por que insisto tanto neste assunto?
Antes de tudo, porque, se tenho uma atividade católica pública, devo repetir e
repetir a verdade. E, depois, porque vejo muitíssimos tradicionalistas
católicos – sacerdotes e leigos – deixar-se levar pela caudalosa corrente do
liberal-americanismo travestido de tradicionalismo, assim como, mutatis
mutandis, a Liga Cristo Rei se deixa levar pelo liberal-americanismo de um Antonio
Donato. Desculpem-me, caros amigos e companheiros de tantas lutas, mas não vou parar de fazê-lo.