quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

CARICATURAS DE TRADICIONALISMO

                                                                                                                               Carlos Nougué

 Estou longe de ser um desses tradicionalistas que têm a D. Lefebvre por inerrante. Se até S. Tomás errou... Quem dera, todavia, que todos os que se dizem tradicionalistas seguissem a D. Lefebvre no que me parece o núcleo de seu pensamento: a crise atual na Igreja resulta do destronamento de Cristo por sua hierarquia, em continuidade com o que se vinha dando progressivamente no mundo desde o século XIV. Mas infelizmente o que vemos é o exato oposto: muitos dos que se dizem tradicionalistas (e isto nos mais variados meios tradicionalistas) são praticamente, ou ainda teoricamente, liberais, o que os põe nos antípodas da doutrina da realeza social de Cristo. Sim, porque, como o mostrarei em “Da História e Sua Ordem a Deus” (apêndice do Comentário ao Apocalipse) e na esteira do Cardeal Pie de Poitiers (que gigante!), não adianta alguém afirmar contra os modernistas que o Reino de Deus se identifica com a Igreja, se não identifica aquele e esta com o Reino Social de Cristo: são, com efeito, o mesmo, ainda que visto por ângulos diversos. Mais que isso: de pouco serve um sacerdote fornecer os sacramentos de sempre e criticar duramente o CVII, se politicamente sustenta de algum modo o liberalismo. Pode ser instrumento de salvação para seu minguado rebanho, mas não contribui para o combate mais amplo, até ao martírio se necessário for, a um mundo apóstata e radicalmente liberal. De fato, não teria havido o comunismo se não tivesse havido a ala jacobina do liberalismo, e não teria havido o vitorioso marcusianismo se não tivesse havido a ala sado-libertina do mesmo liberalismo. Haverá então, hão de perguntar-me, uma terceira ala liberal, que não tenha contribuído para as revoluções posteriores? Distingo. Há, sim, uma terceira ala: a racional-deísta, a fundadora, por exemplo, dos Estados Unidos, a de um Thomas Jefferson, ala cuja doutrina política acabou por ser perfeitamente assimilada por John Adams e seus puritanos. Mas esta ala, conquanto fale de um Deus criador e de uma lei natural, não fala em sentido cristão e verdadeiro: seu Deus descansou tanto no sétimo dia, que não intervém na história nem é sua causa final; e sua lei natural não é a parte da lei eterna endereçada aos homens, mas o imperativo categórico kantiano, perfeitamente imanente. E por tudo isso é que a ala racional-deísta, que hoje é representada pelos Trumps da vida e pela direita gnóstica internacional (Steve Bannon, OdC, Alex Jones, et alii), é incapaz de fazer efetiva frente sobretudo à ala sado-libertina do liberalismo (que desde a década de 1960 assumiu a forma de marcusianismo). Ao contrário, está permanentemente grávida desta, e permanentemente a dá à luz.

O pior de tudo isso, no entanto, insisto, é que parte não desprezível do tradicionalismo católico atual, mais ou menos conscientemente mas quase sempre continuadamente, é caudatária e vai a reboque da ala racional-deísta do liberalismo. O principal porta-voz atual desta ala católica tradicionalista é o Arcebispo Carlo Maria Viganò, que, em aparente contradição com sua postura diante do magistério conciliar, não faz centralmente senão repetir as estapafúrdias “narrativas” conspiracionistas dos racional-deístas (às quais já respondi suficientemente na parte de “Política teológica” de meu livro Estudos Tomistas – Opúsculos II), além de, contra a prudência exigida por Santo Agostinho e pelo mesmo magistério da Igreja, externar publicamente sua certeza da proximidade do Anticristo – e tudo, o que é ainda pior, sob uma equívoca roupagem de defesa da realeza de Cristo. Ainda que o faça não deliberadamente, esse modo de atuar é uma perfeita manobra diversionista que mantém seus leitores sempre pendentes de uma ficção política, sempre tendentes a certa forma de sedevacantismo, e sempre satisfeitos de si mesmos: fazem parte de uma minoria iluminada que não se deixa enganar pelos donos do mundo nem pelo falso profeta que se senta hoje no trono de Pedro. É demasiada irresponsabilidade. Para constatá-lo, basta ler sua carta interpretada pelo errante Frei Tiago – seu atual porta-voz para os lusófonos! –, carta que de tão risível deveria fazer qualquer católico tradicionalista sentir vergolha alheia... (cf. “Vacinas e o Pacto do Vaticano com o Poder Mundial”, aqui). Convenha-se, contudo, em que a postura de D. Viganò tem algo de efêmero. Mas não tem nada de efêmero a postura do Padre Richard Gennaro Cipolla, sacerdote da Diocese de Bridgeport, CT, EUA, e celebrante da missa tridentina. Que postura é essa? O velho e “bom” liberalismo americanista travestido de tradicionalismo católico, o que se pode constatar por seu artigo “Pode a Igreja Católica ser a campeã contra as forças do liberalismo secular militante?”, publicado no famoso e respeitado site tradicionalista Rorate Caeli e (traduzido ao espanhol) no site Adelante la Fe, de Roberto de Mattei (cf. aqui). Não nos deixemos enganar pelo título: porque, com efeito, o que o Padre chama “liberalismo secular militante” é apenas a ala sado-libertina do liberalismo, já que no mesmo artigo, além de elogiar a Thomas Jefferson (!), ele se mostra convicto defensor da ala racional-deísta do mesmo liberalismo. Ao fim e ao cabo, diz ali o mesmo que disse D. Viganò durante as últimas eleições presidenciais estadunidenses: segundo o nosso arcebispo, estaria em jogo nestas eleições o destino mesmo da humanidade, a ponto de o famoso dignitário participar de um ato de apoio a Trump ao lado de gnósticos direitistas e de membros de outras religiões no mais puro espírito de Assis...

Ou seja, quanto a seguir a postura de D. Lefebvre com respeito ao drama central da Igreja desde o CVII – o destronamento de Cristo, contra as Escrituras, a tradição e o magistério autêntico e infalível da Igreja –, nada, absolutamente nada, afora algum “flatus vocis”. Mas (hão de perguntar-se alguns) por que insisto tanto neste assunto? Antes de tudo, porque, se tenho uma atividade católica pública, devo repetir e repetir a verdade. E, depois, porque vejo muitíssimos tradicionalistas católicos – sacerdotes e leigos – deixar-se levar pela caudalosa corrente do liberal-americanismo travestido de tradicionalismo, assim como, mutatis mutandis, a Liga Cristo Rei se deixa levar pelo liberal-americanismo de um Antonio Donato. Desculpem-me, caros amigos e companheiros de tantas lutas, mas não vou parar de fazê-lo.   

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A PRINCIPAL PROPRIEDADE DA CLOROQUINA

                                                                                                                             Carlos Nougué

 Como já disse alhures, se tivessem tomado cloroquina, possivelmente os dinossauros não teriam desaparecido. E pode até supor-se com probabilidade que a cloroquina seja capaz de adiar o advento do Anticristo... Mas sem dúvida alguma a principal propriedade desta verdadeira e prodigiosa panaceia é estupidificar muitas pessoas, que malgastam seu precioso tempo defendendo sua validade universal contra a covid-19 – como foi o caso de seu paladino Osmar Terra, que a tomou confiantemente e acabou em estado grave na UTI – e qualificando-a de instrumento importantíssimo contra a instauração da nova ordem mundial. Com efeito, se os globalistas conseguirem impedir que se tome a cloroquina e fazer que mais de 90% das pessoas em escala global usem máscara, o governo mundial se tornará algo inexorável...

 


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

FOI LUTERO O CAUSADOR DO FIM DA CRISTANDADE?

                                                                                                                             Carlos Nougué

 Não o foi. O fim da cristandade começou no século XIV com a aliança da burguesia e dos reis rebeldes contra a direção espiritual da Igreja sobre as nações. Aprofundou-se no século XV-XVI com o humanismo e o mal chamado renascimento, quando o vírus alcançou o mesmo papado; é um dos momentos mais tristes da história da Igreja. Quando Lutero fez o que fez, só restava de cristandade o império de Carlos V; era a chamada Cristandade menor, que, efêmera, só duraria até a morte de Felipe II, filho e sucessor imediato de Carlos V. Na França galicana, é verdade, Cristo ainda estava presente de algum modo nas leis; mas ali já não era a Igreja a que dirigia espiritualmente o estado, senão que era este o que, cesaripapisticamente, dirigia aquela. A revolução francesa daria fim ao mesmo cesaripapismo galicano. – O que portanto o heresiarca Lutero causou, ou seja, a grave divisão da própria Igreja, não constituiu todavia senão um aprofundamento do que já se vinha dando desde o início do século XIV. E nada mais natural, sobretudo se se levam em conta as ambições cesaripapistas que já se haviam enraizado em solo alemão com o Sacro Império Romano Germânico. – Em suma, Lutero não é senão um dos elos, ainda que muito importante, da cadeia histórica da apostasia das nações.