Carlos
Nougué
1)
Alguns dos expoentes do neotomismo, como Gardeil e Hugon, tentaram um retorno
ao espírito e à letra da doutrina de Tomás, após séculos de desvios com relação
a esta por parte dos tomistas. Não foram de todo bem-sucedidos, mas lançaram
importante semente que, no âmbito da Metafísica, germinaria um tanto com
Cornelio Fabro, sobretudo com seu resgate e aprofundamento da distinção entre “ser ou ato de ser” e “existência”.
Infelizmente, todavia, a doutrina de Fabro acabou por degenerar-se em algo oposto
ao tomismo: certo voluntarismo, digamos, scoto-kierkegaardiano. No âmbito da
Lógica, no entanto, destacar-se-ia em tal retorno e aprofundamento Santiago
Ramírez, sobretudo com seu imprescindível De analogia; mas
desgraçadamente o Padre dominicano aderiria ao pior desvio do tomismo: a
traição nominalista-liberal da Política de S. Tomás e do magistério da Igreja
começada por Vitoria e sua Escola de Salamanca e rematada, horripilantemente,
por Jacques Maritain. – Quem vai retomar com grandíssima felicidade, no século
XXI, o antigo projeto de Gardeil e de Hugon é o Padre argentino Álvaro
Calderón. Sua obra é já muito extensa (sobretudo se se somam a seus livros publicados
os esotéricos, escritos para os seminaristas alunos seus) e centra-se em pontos
precisos, ou seja, aqueles capitais em que mais sofreu inflexões ou desvios o
tomismo ao longo de sete séculos: a Lógica (sobretudo pela infausta distinção
de João de Santo Tomás entre lógica material e lógica formal e por outros erros seus, fundados em parte na crença
equivocada de que o opúsculo Summa totius
Logicae Aristotelis fosse do Doutor Angélico e não obra apócrifa); a Cosmologia; e a Política,
ou antes, a Teologia política. Quanto à Física Geral, apoia-se em Tomás e em
João de Santo Tomás, mas agregando-lhes dados tirados da base para indução que
são as descobertas das “ciências” modernas. Dizer porém que seu lema “seguir a
S. Tomás em espírito e em letra” é um “paleotomismo” implica ou malícia ou
desconhecimento de sua obra. Porque, com efeito, na apresentação de seu La naturaleza
y sus causas diz que não seguirá ali a letra de Tomás; em vários de seus
escritos assinala a caducidade da cosmologia e da doutrina da infusão diferida da
alma humana sustentadas por Tomás; em Umbrales de la Filosofía defende
que a controversa doutrina da “separatio” é algo da juventude de Tomás,
jamais retomado por ele, e que devemos deixar de lado; etc. Mas então por que
insiste em que devemos “seguir a S. Tomás em espírito e em letra”? Primeiro,
porque é um católico verdadeiro: segue nisto o magistério autêntico da Igreja
em sua sustentação de que Tomás é o Doutor Comum da Igreja e de que deve ser a
referência primeira e última nos estudos católicos; e em sua como “canonização”
da metafísica tomista, mediante as 24 Teses encomendadas por S. Pio X e
firmadas por Bento XV. Mas, segundo, porque, como somos todos inferiores
intelectualmente a S. Tomás (esse homem único, talhado por Deus para ser uma
máquina de pensar), devemos “sempre que possível” seguir sua letra, sob pena de
erro; e “sempre” seguir seu espírito, por razão ainda mais óbvia. Mas seguir a
Tomás em espírito não implica que sejamos uns como “curadores de museu”, e
seria o próprio Tomás quem, se revivesse hoje, denunciaria a caducidade de sua
cosmologia, de sua doutrina da infusão diferida da alma humana, etc.
2)
Eu filio-me resolutamente à escola de Calderón (sem que isso implique,
naturalmente, que ele aprove meus escritos...). Por uns bons anos, fui ou
tentei ser discípulo seu em sentido estrito: nesses anos não fiz senão repetir
o que aprendia dele. Que anos estupendos! Mas sempre chega a hora de que o
pupilo, assim como um filho com respeito a seus pais, ganhe o mundo e voe com
asas próprias, ainda que sempre com os pés firmemente postos sobre os ombros de
gigantes (e em particular os do Mestre Tomás). Publiquei já cinco livros (e
creio que até o fim do ano que vem terei lançado outros quatro), e não o faria
se não tivesse algo próprio que dizer. Mas tal algo próprio o é ainda mais
em Da Arte do Belo, em que, conquanto fundado sempre em princípios aristotélico-tomistas
(e, pode dizer-se, calderonianos), vou além desses mestres maiores ao
estabelecer uma nova ciência, a Ciência prática da Arte do Belo. Mas algo tão
próprio como este livro serão minhas Questões Metafísicas (por publicar-se
no ano que vem pela É Realizações), as quais talvez venham a surpreender a
todos. Nelas mostrarei que, embora nos fundamentos doutrinais S.
Tomás se tenha mantido inalterável da juventude à morte, em outros aspectos,
porém, ele mudou, sim. Exemplos: a já citada “separatio”; a inteligência
do transcendental “res” (coisa), com respeito ao qual abandonaria a estrita
influência aviceniana mostrada nas Questões Disputadas sobre a Verdade (De
veritate); algumas questões teológicas (compare-se seu Comentário às Sentenças
de Pedro Lombardo com a Suma Teológica); etc. Mais ainda, todavia (e
não se escandalizem antes da hora): o Mestre Tomás, como todo ser humano, era
capaz até de incorrer em alguma falácia (ou seja, em erro quanto à figura do
silogismo). Como diz Calderón, conquanto haja, sim, lugar na ciência para erros
por defeito nos princípios, não o há porém para as falácias. Mas dizer que não
o há não quer dizer que, por mais que dominemos os Analíticos Anteriores
de Aristóteles, não as possamos alguma vez cometer todos, incluindo S. Tomás. Nos
que dominam a referida obra aristotélica, tal ocorre sem dúvida por distração,
ou por pressa, de modo que, conhecendo o conjunto da doutrina de, por exemplo,
S. Tomás, podemos ver que por ela mesma se pode sanar o silogismo defeituoso.
Mas não devo antecipar o que tratarei nas Questões Metafísicas, que,
como já disse algumas vezes publicamente, é um projeto que acalento tanto como
o de Da Arte do Belo.
E
baste aqui quanto a este assunto o dito acima.