sexta-feira, 31 de julho de 2020

O QUE É SEGUIR A SANTO TOMÁS EM ESPÍRITO E EM LETRA – OU SE SANTO TOMÁS É INERRANTE


Carlos Nougué

1) Alguns dos expoentes do neotomismo, como Gardeil e Hugon, tentaram um retorno ao espírito e à letra da doutrina de Tomás, após séculos de desvios com relação a esta por parte dos tomistas. Não foram de todo bem-sucedidos, mas lançaram importante semente que, no âmbito da Metafísica, germinaria um tanto com Cornelio Fabro, sobretudo com seu resgate e aprofundamento da distinção entre “ser ou ato de ser” e “existência”. Infelizmente, todavia, a doutrina de Fabro acabou por degenerar-se em algo oposto ao tomismo: certo voluntarismo, digamos, scoto-kierkegaardiano. No âmbito da Lógica, no entanto, destacar-se-ia em tal retorno e aprofundamento Santiago Ramírez, sobretudo com seu imprescindível De analogia; mas desgraçadamente o Padre dominicano aderiria ao pior desvio do tomismo: a traição nominalista-liberal da Política de S. Tomás e do magistério da Igreja começada por Vitoria e sua Escola de Salamanca e rematada, horripilantemente, por Jacques Maritain. – Quem vai retomar com grandíssima felicidade, no século XXI, o antigo projeto de Gardeil e de Hugon é o Padre argentino Álvaro Calderón. Sua obra é já muito extensa (sobretudo se se somam a seus livros publicados os esotéricos, escritos para os seminaristas alunos seus) e centra-se em pontos precisos, ou seja, aqueles capitais em que mais sofreu inflexões ou desvios o tomismo ao longo de sete séculos: a Lógica (sobretudo pela infausta distinção de João de Santo Tomás entre lógica material e lógica formal e por outros erros seus, fundados em parte na crença equivocada de que o opúsculo Summa totius Logicae Aristotelis fosse do Doutor Angélico e não obra apócrifa); a Cosmologia; e a Política, ou antes, a Teologia política. Quanto à Física Geral, apoia-se em Tomás e em João de Santo Tomás, mas agregando-lhes dados tirados da base para indução que são as descobertas das “ciências” modernas. Dizer porém que seu lema “seguir a S. Tomás em espírito e em letra” é um “paleotomismo” implica ou malícia ou desconhecimento de sua obra. Porque, com efeito, na apresentação de seu La naturaleza y sus causas diz que não seguirá ali a letra de Tomás; em vários de seus escritos assinala a caducidade da cosmologia e da doutrina da infusão diferida da alma humana sustentadas por Tomás; em Umbrales de la Filosofía defende que a controversa doutrina da “separatio” é algo da juventude de Tomás, jamais retomado por ele, e que devemos deixar de lado; etc. Mas então por que insiste em que devemos “seguir a S. Tomás em espírito e em letra”? Primeiro, porque é um católico verdadeiro: segue nisto o magistério autêntico da Igreja em sua sustentação de que Tomás é o Doutor Comum da Igreja e de que deve ser a referência primeira e última nos estudos católicos; e em sua como “canonização” da metafísica tomista, mediante as 24 Teses encomendadas por S. Pio X e firmadas por Bento XV. Mas, segundo, porque, como somos todos inferiores intelectualmente a S. Tomás (esse homem único, talhado por Deus para ser uma máquina de pensar), devemos “sempre que possível” seguir sua letra, sob pena de erro; e “sempre” seguir seu espírito, por razão ainda mais óbvia. Mas seguir a Tomás em espírito não implica que sejamos uns como “curadores de museu”, e seria o próprio Tomás quem, se revivesse hoje, denunciaria a caducidade de sua cosmologia, de sua doutrina da infusão diferida da alma humana, etc.
2) Eu filio-me resolutamente à escola de Calderón (sem que isso implique, naturalmente, que ele aprove meus escritos...). Por uns bons anos, fui ou tentei ser discípulo seu em sentido estrito: nesses anos não fiz senão repetir o que aprendia dele. Que anos estupendos! Mas sempre chega a hora de que o pupilo, assim como um filho com respeito a seus pais, ganhe o mundo e voe com asas próprias, ainda que sempre com os pés firmemente postos sobre os ombros de gigantes (e em particular os do Mestre Tomás). Publiquei já cinco livros (e creio que até o fim do ano que vem terei lançado outros quatro), e não o faria se não tivesse algo próprio que dizer. Mas tal algo próprio o é ainda mais em Da Arte do Belo, em que, conquanto fundado sempre em princípios aristotélico-tomistas (e, pode dizer-se, calderonianos), vou além desses mestres maiores ao estabelecer uma nova ciência, a Ciência prática da Arte do Belo. Mas algo tão próprio como este livro serão minhas Questões Metafísicas (por publicar-se no ano que vem pela É Realizações), as quais talvez venham a surpreender a todos. Nelas mostrarei que, embora nos fundamentos doutrinais S. Tomás se tenha mantido inalterável da juventude à morte, em outros aspectos, porém, ele mudou, sim. Exemplos: a já citada “separatio”; a inteligência do transcendental “res” (coisa), com respeito ao qual abandonaria a estrita influência aviceniana mostrada nas Questões Disputadas sobre a Verdade (De veritate); algumas questões teológicas (compare-se seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo com a Suma Teológica); etc. Mais ainda, todavia (e não se escandalizem antes da hora): o Mestre Tomás, como todo ser humano, era capaz até de incorrer em alguma falácia (ou seja, em erro quanto à figura do silogismo). Como diz Calderón, conquanto haja, sim, lugar na ciência para erros por defeito nos princípios, não o há porém para as falácias. Mas dizer que não o há não quer dizer que, por mais que dominemos os Analíticos Anteriores de Aristóteles, não as possamos alguma vez cometer todos, incluindo S. Tomás. Nos que dominam a referida obra aristotélica, tal ocorre sem dúvida por distração, ou por pressa, de modo que, conhecendo o conjunto da doutrina de, por exemplo, S. Tomás, podemos ver que por ela mesma se pode sanar o silogismo defeituoso. Mas não devo antecipar o que tratarei nas Questões Metafísicas, que, como já disse algumas vezes publicamente, é um projeto que acalento tanto como o de Da Arte do Belo.
E baste aqui quanto a este assunto o dito acima.          


quinta-feira, 30 de julho de 2020

LIVE COM PROF. CARLOS NOUGUÉ - O REINADO SOCIAL DE JESUS CRISTO E SUAS C...



   
Foram quase 3 horas de live sobre O REINADO SOCIAL DE JESUS CRISTO E SUAS CONTRAFAÇÕES. Não deixem de assistir e de inscrever-se no canal do Youtube do Centro Cultural Ávila. Agradeço a André e a Márcio a oportunidade ímpar de expor tão longamente a doutrina fundamental da Cristandade, infelizmente tão combatida ou "esquecida" desde há 6 séculos por doutrinas mais ou menos descaradamente opostas à realeza de Cristo.


terça-feira, 28 de julho de 2020

MARIA PURÍSSIMA


Em setembro vai ao ar o terceiro módulo de meu curso de Apologética: “MARIA PURÍSSIMA”. Aguardem, por favor.


domingo, 26 de julho de 2020

UMA GERAÇÃO DE CATÓLICOS LIBERAIS E TÍBIOS, DESSES QUE SERÃO VOMITADOS POR CRISTO


Carlos Nougué

Diante da ofensiva do STF contra as “fake news” (que existem, sim, na direita, embora o STF não diga que também existem na esquerda), vemos multidão de católicos mornos e subservientes aos princípios liberais clamar, com a direita, pela “liberdade de expressão para todos”, até para os inimigos de Cristo e para o erro em geral. Mas, como disse o magistério tradicional e autêntico da Igreja, o mal, o pecado, o erro não têm direito algum, nem, portanto, o de expressar-se. A bandeira da “liberdade de expressão” é uma bandeira liberal-revolucionária e não se ergueu senão para esmagar aquela que era uma barreira contra o mal e o erro: a Igreja.
Objeção: Mas hoje, se os católicos não se unirem aos liberais e aos conservadores pela liberdade de expressão em geral, eles mesmos terão impedida sua liberdade de expressão.
Resposta: Só católicos tíbios, desses que Cristo mesmo vomitará (como se lê no Apocalipse de São João), podem pensar assim. Não importa o que nos aconteça: opressão, falta de liberdade, prisão, porque devemos imitar a Cristo e aos mártires que O imitaram nos primeiros séculos do cristianismo -- aceitavam docilmente o que lhes adviesse para não acender nem sequer um incenso aos falsos deuses. E o que lhes adviesse em imitação de Cristo assegurava-lhes a coroa da justiça na vida eterna.
Objeção: Mas a democracia liberal é menos má que uma tirania.
Resposta: A democracia liberal, em si mesma já uma tirania disfarçada, só por um tempo é menos má que a tirania aberta: logo ela se transforma também em tirania franca, sobretudo, hoje em dia, nos moldes marcusianos (como a que está instalando-se no Brasil sob o silêncio de Bolsonaro [tudo para salvar o próprio pescoço e o de seus filhos], e como a que já se instalou no Canadá, nos países nórdicos, na França, na Inglaterra, na Espanha, etc.). – Naturalmente, não devemos gritar: Muito bem, STF, reprima mesmo as “fake news” da direita!, porque isso seria aplaudir um inimigo ainda mais virulento. Mas de modo algum podemos apoiar uma bandeira iníqua como a da “liberdade de expressão”. Analogamente, os primeiros cristãos não haveriam de aplaudir o imperador romano que por qualquer razão decidisse martirizar os membros das falsas religiões orientais. Mas jamais incorreriam na heresia de erguer a bandeira da “liberdade religiosa” para todas as religiões, ou seja, incluindo as falsas.

Para entender melhor tudo isso, leia-se a estupenda encíclica Mirari vos (1832), do Papa Gregório XVI.


quarta-feira, 22 de julho de 2020

EM DEZEMBRO LANÇAREI UM NOVO LIVRO


Carlos Nougué

Em dezembro, se Deus quiser, sairá pelas Edições Santo Tomás e pela Resistência Cultural meu sexto livro: um volumoso Comentário ao Apocalipse de São João. Trata-se de comentário em moldes tomistas (ou seja, ao modo como S. Tomás comentou as Epístolas paulinas e outros livros sagrados: versículo a versículo), mas com particularidades minhas: a saber, capítulos introdutórios (por exemplo, “Os sentidos das Escrituras”, “O que distingue o Apocalipse de outras profecias bíblicas, como Ezequiel e Daniel”, “História dos Comentários ao Apocalipse – dos Padres aos dias atuais”, etc.) e maior extensão no comentário dos capítulos mais importantes da profecia, como, por exemplo, o do milênio e o da descrição da Jerusalém Celeste. – Mas o livro trará dois apêndices. O primeiro será “Da História e Sua Ordem a Deus”, que explicará a história segundo as quatro causas (material, formal, eficiente e final), tratará as principais visões não cristãs ou anticristãs da história, e traçará a história do mundo até hoje quanto ao essencial, com alguma especulação escatológica em perspectiva. Hão de perguntar-se, porém, por que deixei de lado o projeto de “Da História e Sua Ordem a Deus” como livro à parte, como história mais detida do mundo e da Igreja. É que coincidiria com o escopo que tem o Pe. Calderón em seu estupendo El Reino de Dios – La Iglesia y el orden político, em verdade apenas o primeiro tomo de quatro. Mas este apêndice resgatará do antigo projeto os pontos arrolados acima. – O segundo apêndice será sobre temas, digamos, “genésicos”: a idade do universo e da terra; a idade dos vegetais, dos animais, do homem; história da pré-história?; o que são espécie e raça; o Dilúvio e a Arca de Noé; os duvidosos métodos modernos de datação; a “diáspora” da estirpe de Noé; a torre de Babel; etc.
Como quer que seja, parece-me que o Comentário ao Apocalipse de São João se defende por si mesmo, ou seja, parece-me que se justifica por sua urgente necessidade. É preciso tirar das mãos de aventureiros e teólogos de algibeira, nestes dias de tintas apocalípticas, a hegemonia sobre os católicos quanto ao fim dos tempos, etc. Ademais, os dois principais Doutores da Igreja, Santo Agostinho e Santo Tomás, nunca comentaram a profecia de São João (Agostinho a tratou somente em homilias, ou seja, a modo retórico e não orgânico). Baste pois por ora o dito.  Voltarei a falar do novo livro em data oportuna.
Observação 1: obviamente, este livro será um grandíssimo e extenso aprofundamento do que digo no Curso sobre o Apocalipse.
Observação 2: dada a referida urgência do Comentário ao Apocalipse, a Suma Retórica fica postergada para o próximo ano – o que decidi em concordância com José Lorêdo Filho, o dono da Resistência Cultural (que, como disse, coeditará o Comentário ao Apocalipse de São João). E eis a palavra – gentil – de Lorêdo quanto a isto:


AVISO – Suma Retórica, de Carlos Nougué

Caros amigos e leitores, Salve Maria Santíssima.
Muitos de vocês já aguardavam para setembro a publicação, pela Resistência, da Suma Retórica, do mestre Carlos Nougué, certamente um livro que ganhará o status de clássico no gênero. Mas teremos de esperar um pouco mais, e já explico por quê.
O prof. Carlos Nougué, mercê de sua prodigiosa capacidade de trabalho, propôs-se a redigir um Comentário ao Apocalipse de São João, obra que se proporá a oferecer uma visão genuinamente católica de questão tão espinhosa quanto distorcida como o é o Fim dos Tempos. Perguntou-me, pois, o mestre, com a sua amabilidade costumeira, se seria possível esperássemos até o ano que vem para que me enviasse os originais da Suma Retórica. Dado o caráter emergencial de uma obra que se pretenda inteiramente amparada no Magistério da Igreja acerca do Apocalipse, minha resposta não poderia ser outra senão a concordância e, em seguida, o incentivo.
O que poderia, então, parecer um prejuízo (esperar a publicação de um grande livro é sempre um tormento) acabou por se revelar uma alegria, pela perspectiva da publicação, em dezembro, do ambicioso Comentário ao Apocalipse de São João, do prof. Nougué, que a Resistência, se Deus quiser, publicará em parceria com a Edições Santo Tomás, do querido Marcel Barboza.
Aguardemos só um pouco, e teremos mais alguns itens no seleto catálogo das obras-mestras.
Um grande e afetuoso abraço – e viva Cristo Rei.



segunda-feira, 20 de julho de 2020

SAUDADE DO CHORO

    
Carlos Nougué
(2001)
   
Nota prévia: Este é um dos primeiros escritos que cometi após minha conversão ao catolicismo – e dos poucos que se salvam de antes de minha conversão, pelo contato com a obra do Pe. Álvaro Calderón, a um tomismo real, vivo e fiel. Como porém a velhice é também o momento de ajustar contas com nosso passado, mandando à fogueira o que não presta e resgatando o que possa ser de alguma utilidade à verdade e ao próximo, republico agora (com pequenas alterações) este já antigo opúsculo, vazado, é certo, numa escrita de caráter antes retórico, mas de cujas mesmas raízes acabaria por brotar o livro Da Arte do Belo, que creio seja até agora minha mais importante contribuição filosófica.

*  *  *

É comum ouvir, entre amantes de boa música (quer dizer, aquela que se convencionou — não sei se com toda a propriedade — chamar “erudita”), que o choro é, se tanto, arte menor, meramente porque “popular”. E não raro, para evitar dessas discussões de que não redundam senão trevas, deixei de dizer de meu gosto por, entre outros, “Canhoto”, este artista instalado cômoda e belamente na fronteira entre os dois adjetivos acima aspeados. Pois bem, é enquanto escutava (e escuto) o CD Valsas Imortais — Francisco Mignone na Arte de Maria Josephina ao Piano que tomei coragem para escrever este elogio do choro, ou melhor, este elogio da alma brasileira.
Antes de mais nada, há que fazer estrita justiça à arte do mesmo Francisco Mignone (1897-1986), ressaltando-lhe tanto o lado luminoso como o escuro. Mignone é das figuras mais ilustres da nossa música. Flautista precoce, já aos treze anos se apresenta em público, e ainda moço já lhe aparecem as primeiras composições. Estuda em Milão com Vincenzo Ferroni, e é-lhe incessante a atividade criadora, incessante e abrangente, sobretudo, das formas musicais brasileiras (como a seresta, o choro, etc.) e de soi-disant formas musicais indígenas e africanas. Em 1923 o regente Richard Strauss inclui-lhe a Congada em seus concertos, e na década de 1940, à frente da Filarmônica de Nova York, Arturo Toscanini grava-lhe a Festa das Igrejas. Entre suas 1.024 obras catalogadas, há dois oratórios, quatro óperas, sete missas, 17 bailados, 170 composições de câmera, 221 canções e 232 peças para piano solo. Monumental é o menos que se pode dizer destes números, e perene é o menos que se pode dizer de parte deles.
De parte, sim, porque de outra parte Mignone foi vítima do mesmo mal que fez perder quase inteiramente o talento de um Mário de Andrade e que torna exasperantes certas peças do próprio Villa-Lobos: o populismo nacional-modernista. Podem-se aplicar a este mal — o qual, semeado na indigência indigenista finissecular e brotado da manifesta tolice de 22, devasta a cultura brasileira até hoje — estas palavras de Gustavo Corção, escritas, em 1957, com respeito ao fenômeno universal de que nosso populismo nacional-modernista parcialmente deriva: “A mais humilhada das artes [a pintura] tirou uma desforra completa. Fugiu do internato. Rasgou o uniforme. E andou pelas ruas da cidade descabelada e impudica. Fauvismo, cubismo, dadaísmo, futurismo, orfismo, sincromismo, construtivismo, suprematismo, purismo, surrealismo, pós-cubismo e pós-surrealismo, abstracionismo... A história continuava a descrever a perigosa curva. E foi nos solavancos e na vertigem da mudança geral de valores e critérios que se realizaram as ofegantes experiências das ideologias estéticas. É difícil discriminar o falso e o genuíno, o estéril e o fecundo, nessa Babel de tentativas. É difícil saber qual é a parte de todo esse conjunto em pânico que terá ingresso não nos salões oficiais dos juízes carregados dos preconceitos das épocas, mas naquele salão universal e apoteótico que os anjos contemplam. [...] O espírito burguês está vivendo uma antítese do fixismo derrubado. Tornou-se revolucionário, rotineira-mente revolucionário. A audácia de recusar foi substituída pela audácia de aceitar e de fingir que compreende. Ao farisaísmo de 1870 responde o mundo moderno com um publicanismo de infinita tolerância, que muitos pensam ser uma infinita sabedoria. E, quando a forma de uma poesia parecer esdrúxula demais, o público tem uma moeda para comprá-la, uma fórmula para classificá-la: arte moderna. Nós nos rimos dos críticos que insultavam Manet, que hoje nos parece tão pacato e tão acadêmico. Quem se rirá da benevolência de nosso tempo? O fato é que as formas surpreendentes não surpreendem mais ninguém. A ideia de um transformismo contínuo espalhou-se. E, com esse critério, vale tudo. E assim o revolucionarismo da arte tornou-se a coisa mais rotineira do mundo”. 
Junte-se pois a isto a pitada insulsa do suposto nacionalismo de raízes supostamente indígeno-africanas, e ter-se-á o fato, triste, de que parte da obra de Mignone, por cacofônica, não há de acolher-se na harmonia das esferas.   
Felizmente só parte de sua obra, porque a outra, sumamente representada pelas Valsas que sigo escutando, há de incluir-se naquele Salão apoteótico ao lado do Requiem de Luis de Victoria, das Partitas de Bach, da Missa inacabada de Mozart, de alguns Lieder de Schubert, da Batalha no Gelo de Prokofiev. E antes de mais nada porque com estas Valsas — tanto as 12 valsas-choro como as 12 valsas chamadas “de esquina” — “canta todo o Brasil”, como disse Manuel Bandeira. Aqui, sim, está o Brasil inteiro, está sua alma, como nem de longe está nas incursões moderno-populistas de Mignone. Veja-se, para o começarmos a entender, a razão de ser da denominação “de esquina”. As três primeiras valsas hoje assim denominadas não o eram originalmente. Mas, ao ouvi-las, disse sabiamente Mário de Andrade: “Essas valsas me reconduzem ao tempo da minha mocidade, quando músicos seresteiros com suas flautas, clarinetas e violões improvisavam, nas esquinas, inequívocas mensagens melódico-românticas às moças que se escondiam atrás de cortinas ou grades da época. E a música subia até elas, que, ansiosas e suspirando, recebiam embevecidas a mensagem sonora que os notívagos seresteiros prolongadamente tocavam. Era o ‘choro’ que vinha lá das esquinas; ‘choro’ que muitas vezes era misturado à brancura do luar ou ao piscar das estrelas”. Aí está, claramente, a razão daquele nome, o qual Mignone mais tarde estenderá ao conjunto das doze valsas escritas em todos os tons menores da escala diatônica. Em todos os tons menores, disse, e acrescento: em todos os tons do “choro”. Do choro que vinha das esquinas e que, misturado ao branco da noite, vinha também de mais longe ainda, de muito mais longe: da melancolia, da lágrima doída que rebrota e se faz arte, desde o Medievo, no solo das antigas tribos lusitânicas. 
Sim, ali mesmo onde desabrochou a Última Flor do Lácio, naquele mesmo lado oeste de uma Península no qual se haviam instalado alguns dos aguerridos ramos célticos da diáspora babélica, forjara-se uma palavra úmida como um pranto: a tão nossa “saudade”. Mas entenda-se corretamente este “tão nossa”. Contrariamente ao que em geral se pensa em Portugal como no Brasil, “saudade”, como qualquer outra palavra, tem correlatos em todas as línguas do mundo, quer por termos únicos, quer por locuções ou paráfrases. No lado leste daquela mesma Península, no qual se haviam instalado outros dos aguerridos ramos célticos da diáspora babélica — os celtiberos, entre eles —, “saudade” diz-se añoranza,  que deriva do verbo añorar, que descende do catalão enyorar, que por sua vez vem do latim ignorare (‘ignorar, não saber onde está alguém’). Mas uma coisa é añorar e suas reverberações duras como dura foi a resistência ao longuíssimo cerco romano de Numância, e outra, muito diversa apesar da mútua traduzibilidade, é “saudade”, que descende do latim solitate (soledade, solidão), por intermédio do português arcaico soydade ou suydade, e com influência tanto de saúde como de um termo árabe que designa “melancolia” (o estado mórbido de tristeza e depressão que se julgava causado pela bílis negra). O espanhol consola-se de alguma añoranza sapateando marcialmente um flamenco; o português chora a sua saudade rasgando na guitarra e na voz um fado, quase como Édipo a cegar-se ante a inexorabilidade do Fado, mas somente “quase”, porque o português que forjou a tão nossa “saudade” não só já é cristão, como é cristão de tipo muito especial — o tipo que forjou corridas onde morre antes o homem, e nunca o touro.
E, se é fato que o fado é forma musical recente, igualmente o é que ele, em sua essencial natureza de lamento e lágrima, deriva remotamente não só das (não raro melancólicas) canções cortesãs de amigo e de amor, mas também, por outro tronco, das lástimas cantadas aos Sete Pesares que Santa Maria sofreu por Seu Filho (“Tantas eu não teria / lágrimas que chorasse / quantas eu quereria, / se antes não me lembrasse / como Santa Maria / viu quanto lhe doíam / as dores de Seu Filho, / antes que Ele a levasse”, diz a pungente Aver Non Poderia do Trovador da Virgem, D. Afonso X, o Sábio, o rei espanhol [século XII] que compunha unicamente em galaico-português). Pois é desta nobre e cristã linhagem de pranto que descende, em parte, também a valsa brasileira. Certas referências situam em fins do século XVIII o surgimento aqui deste gênero musical, mas é apenas do século XIX que data o primeiro documento de natureza musical que tanto atesta a existência da valsa como revela seu autor: o nosso primeiro imperador, S. A. R. D. Pedro. Mas há que distinguir a valsa de salão do tempo do Império ou uma valsa de bravura para concerto (como as compostas por Carlos Gomes), as quais como a modinha têm, obviamente, sangue azul cosmopolita, da brasileiríssima valsa caipira, ou de uma valsa dos chorinhos cariocas, ou ainda da valsa lenta para piano, nas quais, como outra vez na modinha, ademais de correr em alguma medida sangue azul, também correm lágrimas como as que corriam já nas igrejas, na corte e nos lares da Cristandade portuguesa e seguem a correr sobre as atuais guitarras do fado. Uma prova de tão intricados elos? Ei-la: este mesmo fado se origina do lundu do Brasil colônia, gênero de canção influenciado pelo lirismo da modinha, e introduzido em Lisboa após o regresso de D. João VI, em 1821. É o vaivém transoceânico do choro e da saudade, estas aves do lamento que gorjeiam aqui exatamente como lá.
A arte sempre foi, desde a Antiguidade pagã, um tabernáculo da lágrima, uma morada da dor humana. E pode-se dizer sem receio de erro que nesta Antiguidade, cega pelo pecado e vítima da corrupção religiosa, não havia outro refúgio para o coração e suas penas. Foi ela tal refúgio, todavia, também entre o povo eleito, que se lamentava em versos e versículos tão poéticos quão lacerados como os do Eclesiastes — sob a crua claridade do sol, só há mal e iniquidade. Mas o sábio que aí pranteava amargamente sabia, ao cabo, deixar como suspensa a sua plangência: ele tinha já a ciência do Senhor seu Deus, e Sua promessa de um Redentor. E Este veio, e nos redimiu pela Cruz, e nos deu, pelo mérito da Sua morte na Cruz, a notícia de nossa ressurreição. O homem já podia enxugar o pranto... mas não definitivamente. Chorou o próprio Cristo a morte do amigo Lázaro, chorou Sua Mãe o choro do Filho de Deus e do Homem, e choramos os cristãos o choro d’Ele e o choro d’Ela; choramos os cristãos o choro da condição herdada da Queda, choramos o choro de todos os homens e o choro de todas as coisas. Choram, choramos todos. Choramos todos, como chorava D. Manuel em tantas canções, a saudade de um amor não correspondido; choramos, perpétuos exilados, a saudade de todas as pátrias; choramos, permanentes crianças, a saudade da mãe que já não nos pode embalar com braços de carne; choramos, viúvos perenes, a saudade da cabeça conjugal no leito de nosso ombro; choramos, pais truncados e impotentes, a saudade e as dores distantes do filho mui querido; choramos o amigo que foi morrer em justa guerra, e o amigo que nos morre por iníqua, traiçoeira guerra. E choramos os cristãos, ademais, o pecado, o pecado de todos nós, as ofensas sem fim ao Senhor dos exércitos e Deus de Bondade. E não podemos deixar de chorar nós, os cristãos, apesar de nos sabermos redimidos e apesar da notícia da ressurreição, porque fazê-lo seria pecar por soberba — seria considerarmo-nos isentos de dores, acima das criaturas e suas lágrimas, acima das sequelas do pecado original. Seria comer, outra vez, da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, como outra vez o fizeram aqueles que, pela vã cobiça e ante o lamento do Velho de Restelo, se abalançaram sem lágrimas atrás da Fama e do longínquo ouro deste mundo; como outra vez o fazem os tantos cínicos modernos, os construtores de paraísos terrestres, os inventores da linhagem símia para o homem, os descobridores da origem do universo sem um Criador, os que riem desgarradamente da Fé, da Esperança, da verdadeira Caridade com os dentes cariados de sua própria condenação.
Digamos sempre com Gustavo Corção: “Não basta, ó poeta [Carlos Drummond de Andrade], mostrar às almas aflitas a doçura das relvas, a frescura das ondas, e a ternura dos regaços de amor. Porque isto não é toda a verdade da vida. E é preciso ser verdadeiro. É preciso, sempre, ser verdadeiro. Em toda a extensão. Em toda a profundidade. Nos dois hemisférios de luz e sombras da verdade. O que é preciso dizer, a esses moços que por tão pouco desesperam [e se matam], é que existe uma dignidade no centro mesmo da dor; que a dor não excomunga; que a dor já foi santificada para que possa santificar. O que é preciso, ó poeta de alma grande, é abrir vela ao mar, e descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida. Ah! essa história maravilhosa que a mim me contaram, como eu gostaria de lha contar longamente! longamente!”
Mas o choro do cristão, se não pode desprezar nunca o choro alheio, e se não pode interromper-se nunca de todo, também não pode ser ininterrupto... nem copioso. Porque nos sabemos redimidos, e porque temos a notícia da ressurreição, nosso choro há de ser como a lágrima que estancamos com a parte superior do índice ou com a ponta de um doce lenço. Há de ser como o choro de Cristo antes da ressurreição de Lázaro, como o choro da Santa Maria de Afonso X, como o choro contido de nossas melhores Piedades em pedra ou mármore. Chorar ininterrupta e/ou copiosamente nossa miséria é fazer ouvidos moucos às Palavras ditas na Cruz e à Notícia da Vida, e é pois também pecar por soberba. É comprazer-se com os sartrianos de todos os matizes num inferno de náusea e de lágrimas flamantes; é a forma em negativo do amor-próprio, é a outra face da vã cobiça. Escutemos Pascal (tão nefasto, porém, em tantos outros aspectos): se é perigoso salientar a grandeza do homem sem lembrar sua ignomínia, é-o por igual mostrar demasiadamente, como regozijando-se com isto, quanto ele se assemelha com os animais sem mostrar a sua grandeza. “Tão grande é o homem”, escreve este jansenista de Port-Royal, “que até naquilo em que se reconhece miserável transparece sua grandeza. Uma árvore não sabe que é miserável. É bem verdade que já há miséria no reconhecimento da miséria; mas há também grandeza na consciência de ser miserável. Assim, todas as misérias do homem provam sua grandeza! São misérias de grão senhor, misérias de rei despojado”. E tal vale, como regra  de equilíbrio dinâmico, tanto para a vida individual como para a vida das civilizações. E pois para a arte do belo, este ponto único de encontro entre o singular e o geral.
Ora, a civilização em que nos cabe hodiernamente viver começou por um desequilíbrio, e está a terminar por outro. O Renascimento foi uma febre alta, em que arderam os sentimentos de exaltação e de grandeza do homem, “com esquecimento”, como diz Corção, “do espírito de temor e penitência”; movidos pelo ideal de fama e glória, os artistas de então, os bons como os maus, ostentavam sem rebuço a avidez de encômios e a ânsia de lauréis. Esquecera-se a lágrima, cultivava-se a baba melíflua das cobiças. Mas houve que passar os séculos, e transmudar-se em humilhação e indigência a quimera da cupidez e da evolução. Que vemos hoje, e particularmente nas artes, senão o espetáculo do pessimismo entronizado, a ditar não lágrimas de sangue nem, muito menos, lágrimas sabeias ao Senhor, mas lágrimas intermináveis de menino que chora apenas a frustração da sua traquinice e a dor da dura palmada paterna? “Quanto mais baixa for a baixeza”, diz ainda Corção, “maior deverá ser a elevação do artista que deseja mostrá-la. É preciso subir aos céus para ver com transparência a profundidade dos mares. É preciso ter experiência, experiência de piedade e não de ressentimento, experiência de amor e não de decepção de adolescente, experiência de humildade e de dor, mas de dor mansa e paciente, para descobrir o segredo inteiro, completo, com todo o seu terrível baixo-relevo, da humanidade.”
E, se tal é maximamente verdadeiro para cada obra de arte do belo, também o é para o conjunto da expressão artística das civiliza-ções. Naturalmente, o equilíbrio dinâmico de que fala Pascal não se dá igualmente em todas as nações, nem nas cristãs. Por certo, dava-se diferentemente na Espanha e no Portugal católicos. Neste mais que naquela, no Brasil mais que na América Hispânica, o pêndulo sempre tendeu à lágrima e ao lamento, às Dores de Santa Maria, à plangência de Camões, ao pranto da viola caipira sob o luar do sertão (e, quando deixou de fazê-lo, naufragou-se na voragem do triunfalismo sebastianista); isto, porém, no quadro mais ou menos estrito do Catolicismo, nunca se sobrepôs à Fé. ”Alma minha gentil, que te partiste / Tão cedo desta vida descontente, / Repousa lá no céu eternamente, / E viva eu cá na terra sempre triste”, chora Camões o desconcerto da viuvez, para depois, alhures, cantar com Santa Úrsula o anseio do eterno Colo do Pai e, assim, enxugar com a pontinha do largo lenço da Esperança a lágrima do amor cindido. E não diz a Cristo até o mesmo Machado de Assis que, por outro lado, se mostrava tão “genialmente” nefasto em seus romances sempre niilistas: “Senhor, [...] a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes, que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava”, para obter em resposta: “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”? 
Mas aquele germe de corrupção que se lançou, já na mui distante virada do século XIII para o XIV, com a guerra ao tomismo, e que viu nascer seus frutos mais podres já imediatamente após a morte de Santa Joana d’Arc, e que tomou proporções dantescas, no universo lusitano, já com o triunfo de Pombal e da maçonaria, produz hoje, especialmente no Brasil, o inominável. Está perdida a alma brasileira. Perdemos as raízes da Lusitânia medieval, da arte refinada de Camões, da saudade sertaneja e do choro carioca, e cada vez mais se silencia quanto ao único que desta alma e raízes nos resta: a autêntica arte do Nordeste, a de um Elomar, essa arte gretada como o chão da seca, e fendida como as costas dos Penitentes. Em troca de que, Deus do Céu, se quer matar esta morte redimida e transfigurada em belo? Em troca do pessimismo de almanaque dos novos “talentos” literários, vomitados abundantemente no mercado livresco como automóveis último-tipo, ou da alegria esfuziante do carnaval cingido de cimento niemeyeresco, dos requebros corporais e mentais dos Caetanos de todas as Bahias, da arte real-revolucionária dos raps e funks e pelos direitos dos delinquentes.
Sim, ainda se pode comprar um CD como Valsas Imortais — Francisco Mignone na Arte de Maria Josephina ao Piano, assim como se podem comprar as Obras Completas de Camões ou Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira, nas megalivrarias das grandes capitais. No mercado, afinal, tudo se encontra. Mas já não brotam Camões nem Bandeiras, além como aquém-Atlântico. Nem Mignones. Como haveriam de brotar, se já não se nos fertiliza o solo com autênticas lágrimas, com a saudade vinda das entranhas do espírito lusitânico, com a arte menor (ou seja, segunda na ordem pura do artístico, mas nunca secundária, antes primária, na ordem da civilização) das valsas e dos choros sentimentais, seresteiros, saudosos, violoneiros que rebrotaram nestas tocantes 24 valsas de Francisco Mignone (uma delas é pura recriação da melancólica “O cravo brigou com a rosa...”)? Disse “rebrotaram”, e disse-o bem: rebrotaram como arte maior. Nada ficam a dever estas duas dúzias de pérolas musicais aos melhores Noturnos de Chopin, e superam as peças do Polano-francês mais romanticamente derramadas e longas, precisamente por sua concisão de lágrima que se enxuga com a parte superior do índice... (Algumas peças de Chopin, como alguns concertos e sonatas de Brahms, por gigantes que sejam seus compositores, tangenciam o pranto falso daquele comprazer-se com a própria miséria; é o pecado do romantismo extremo.) São, como os melhores Noturnos de Chopin, autêntica transfiguração da lágrima em belo artístico, ou seja, neste gênero de símbolo como tetraédrico, que se constrói 1) como belo em si mesmo, 2) como forma significante de um aspecto qualquer da Criação, 3) como melancolia pelo perecível de seu próprio material, e 4) como saudade e ânsia do Belo que não perece.
Mas também estas 24 Valsas de Mignone, como alguns dos Noturnos de Chopin, como os prantos poéticos de Camões, como os “Eclesiastes” de Machado de Assis, são, por seu turno, arte menor — do ângulo da vida eterna, ou melhor, perdurável. Nela estas obras, por um lado, deverão de julgar-se segundas, porque já não haverá nem sombra de seu motivo mais imediato, ou seja, a dor do homem, a lágrima da contorção de todas as carnes e da crispação de todas as almas; mas, por outro lado, deverão de julgar-se primárias, e perenizar-se talvez como brilhos do mais luzidio mármore, ou talvez como os mármores de nosso mais refulgente brilho.

sábado, 18 de julho de 2020

INSISTO EM MINHA ANTIGA RENEGAÇÃO E DOU UM EXEMPLO



Carlos Nougué

Já há cerca de 10 anos reneguei TUDO quanto havia escrito anteriormente, quer para o blog Contra Impugnantes, quer em apresentações ou prefácios de livros, etc. (mas não em livros meus, porque só de dez anos para cá é que os publiquei). Isto se deve a que ainda não havia conhecido a obra do Pe. Álvaro Calderón e, portanto, ainda não o havia tomado por mestre, o que só se deu a partir de minha tradução de seu A Candeia Debaixo do Alqueire. Conhecendo tal obra, de um tomismo verdadeiramente vivo, veraz e fiel, tive de renegar meu passado tomismo por eclético e não raro heterodoxo, fruto de autodidatismo, coisa que hoje não hesito em condenar. (É claro que tal passado me permitia tomar o Pe. Calderón por mestre a partir tão somente do estudo de sua extensa obra, sem contato pessoal nem online com ele. Mas em si mesmo esse passado era condenável, repito-o, por eclético e não raro heterodoxo.) Pois bem, dou um exemplo disto: o prefácio ou apresentação que fiz do livro de Jorge Martínez Barrera A Política em Aristóteles e Santo Tomás, publicado pela editora Sétimo Selo e que eu também traduzira. Em tal apresentação, bem como em palestras que então dei no Rio de Janeiro, defendi entusiasticamente o livro. Mas hoje sei perfeitamente que a obra padece de certo e grave liberalismo (católico...) quanto às relações entre poder temporal e poder espiritual e quanto à compreensão da Política aristotélica, que o autor também vê com tais lentes liberais. Renego pois tudo quando escrevi e falei, há mais de dez anos, sobre este livro. Mas por que insisto agora naquela renegação geral e nesta renegação particular? Porque o Centro Dom Bosco relançou o livro com minha antiga apresentação. Atenção: não estou criticando o CDB, que adquiriu legitimamente da Sétimo Selo os direitos de publicar também este livro (incluída minha apresentação). Um dirigente seu até me ofereceu que eu revisasse a apresentação. Declinei a oferta por uma razão óbvia: não se trataria de revisão, mas de crítica aberta ao livro. Sem imputar pois nada ao CDB, sinto-me porém agora no dever de esclarecer publicamente minha atual postura com respeito à obra e à minha mesma apresentação. E baste aqui o dito.
Nota 1: Jorge Martínez Barrera é homem boníssimo, com quem desfrutei ótimos momentos durante sua estada no Rio de Janeiro para o lançamento da referida obra. Mas amigos, amigos, verdades à parte.
Nota 2: quando digo que tive (e tenho) o Pe. Calderón por mestre, não quero dizer que ele adira ao escrito em meus livros. Ele os possui, mas creio que não lê em português. Não sei, pois, que opinião teria sobre eles se os lesse. E eles são de minha inteira responsabilidade. É que sempre chega o momento de o pupilo entrar a voar com as próprias asas.




sexta-feira, 17 de julho de 2020

PROMOÇÃO


A partir de hoje até o dia 24 de julho, todos os livros da editora @edicoessantotomas estarão com 30% de desconto!
Acesse a loja virtual e aproveite: https://www.loja.santotomas.com.br


VIDA CONTEMPLATIVA, NÃO INTELECTUAL


Carlos Nougué

Em verdade, falando propriamente, a vida que devemos buscar é a bíos theoretikós de Aristóteles, a vida teorética, a vida contemplativa (claro que aperfeiçoada e sobre-elevada pela graça). Devemos pois buscar ser contemplativos. Chamar-se a si ou a outrem “intelectual” é quase sempre incorrer na ácida crítica de Adimanto (no diálogo República de Platão): a maioria dos que se dedicam à filosofia é perversa! Só uma minoria é contemplativa. Pois bem, aquela maioria é justamente a que já desde há alguns séculos se vem chamando “intelectual”, e que, ainda falando propriamente, não é filósofa, porque não tem verdadeiro amor à Sabedoria. Tem amor à glória do mundo ou ao mesmo mundo.




quinta-feira, 16 de julho de 2020

BIG BANG E RELATIVIDADE


No tratado da Cosmologia da Escola Tomista, daqui a duas aulas (será a aula 154), tratarei a hipótese do big bang, aceita como "verdadeiramente provável" por Pio XII. Mas será possível desvincular tal hipótese -- de que é correlata a prolífica noção de curvatura do espaço -- do absurdo relativismo do movimento e do tempo, tão caro ao einsteinianismo e caudatário do sensismo de um Hume? Ou se trata inexoravelmente, como o queria Einstein, da curvatura de um espaço-tempo? No vídeo abaixo, de quatro anos atrás, eu já tratava o equívoco central da teoria da relatividade. Na referida aula da Escola Tomista, estudarei, então, a possibilidade de desvincular a noção de curvatura do espaço da sofística relatividade do marco de referência mototemporal.

Curso sobre o Apocalipse e pré-anúncio editorial


Carlos Nougué

Além do curso-comentário sobre o Apocalipse de São João (cujo número de inscritos já supera toda a nossa expectativa), em breve anunciarei uma (creio que) grande novidade editorial de minha parte, também no campo da exegese bíblica. Está mais que na hora de tirar das mãos dos aventureiros e teólogos de algibeira a hegemonia que alcançaram na (des)informação dos católicos quanto à Sagrada Escritura. Aguardem-me, por favor, e enquanto isso convido a todos a inscrever-se no curso sobre o Apocalipse.

Link para inscrição:




segunda-feira, 13 de julho de 2020

DOM ATHANASIUS SCHNEIDER E O CVII


Diane Montagna: Quais foram os principais argumentos contra o Arcebispo Lefebvre e os críticos do Vaticano II?
Dom Schneider: Foi dito: “Sua posição é tomada apenas de alguns Papas, de Gregório XVI, Pio IX, Pio X, Pio XI, Pio II, enquanto nossa posição é de 2.000 anos. O senhor está fixado em um período muito breve de pensamento do século XIX”. Esse foi substancialmente o argumento da Santa Sé contra o Arcebispo Lefebvre e contra aqueles que levantaram sérias questões legítimas sobre pontos duvidosos nos textos do Concílio.
No entanto, isso não está correto. Os pronunciamentos dos Papas perante o Concílio, mesmo os [Papas] dos séculos XIX e XX, refletem fielmente seus predecessores e a constante tradição da Igreja de maneira ininterrupta. Não se poderia reivindicar nenhuma ruptura nos ensinamentos daqueles Papas (Gregório XVI etc.) em relação ao Magistério anterior. Por exemplo, com relação ao tema da realeza social de Cristo e da falsidade objetiva das religiões não cristãs, não é possível encontrar uma ruptura perceptível entre os ensinamentos dos Papas Gregório XVI a Pio XII, por um lado, e os ensinamentos do Papa Gregório Magno (século VI) e seus antecessores e sucessores, por outro. Pode-se realmente ver uma linha contínua, sem qualquer ruptura, desde os tempos dos Padres da Igreja até Pio XII, especialmente em tópicos como o reinado social de Cristo, liberdade religiosa e ecumenismo.
Diane Montagna: Alguns fortes defensores do Vaticano II dizem que o Concílio é um meio para a Igreja voltar às raízes, ao modelo pré-Constantiniano.
Dom Schneider: É precisamente nesse argumento que eles se revelam ou “desmascaram-se” e, graças a Deus, eles dizem isso. Voltarei ao seu argumento, mas eu apenas gostaria de acrescentar que geralmente os argumentos da Santa Sé contra o Arcebispo Lefebvre eram de que os pontos disputados do Concílio estavam em total continuidade com os ensinamentos anteriores da Igreja. Dessa maneira, os homens que trabalham para a Santa Sé acusaram implicitamente Gregório XVI, Pio IX e todos os Papas, até Pio XII, de serem, de alguma forma, um fenômeno exótico nos dois mil anos de história da Igreja, uma ruptura com o tempo antes deles.
Diane Montagna: Uma ruptura de 150 anos, um parêntese na história da Igreja...
Dom Schneider: Eles não disseram isso explicitamente, mas de fato é assim. E o que eles dizem agora, como a senhora mencionou, é que o parêntese encerra não apenas 150 anos, mas o período do século IV (com Constantino) ao Vaticano II - um parêntese de 1700 anos! No entanto, esse pensamento claramente não é Católico. Esta é, em substância, a posição teológica de Martinho Lutero. Seu argumento principal era que, com Constantino, a Igreja se desviou do caminho da verdadeira doutrina do Evangelho, um parêntese que durou até sua própria emersão no século XVI. Esse argumento é a posição dos liberais hoje, e, especialmente, também do Caminho Neocatecumenal. Tal posição teológica é, em última análise, protestante e herética, porque a Fé Católica implica uma tradição ininterrupta, uma continuidade ininterrupta, sem nenhuma ruptura doutrina e litúrgica perceptíveis.” 

Dom Athanasius Schneider e Diane Montagna. Christus Vincit: o triunfo de Cristo sobre as trevas destes tempos, 1ª edição. São José dos Campos: Instituto Gratia, 2020, p. 143-145.

terça-feira, 7 de julho de 2020

NÃO É TOMISTA...


Carlos Nougué

Quem não observa o espírito e sempre que possível a letra da obra de S. Tomás;
Quem, por outro lado, engessa o tomismo em formulinhas demasiado sutis e demasiado escolares;
Quem mutila Tomás teologicamente ou metafisicamente;
Quem se entrega à ebriedade e miragem do autodidatismo e, liliputiano embora, vaidosamente se julga titã;
Quem tem uma vida moral ou religiosa em contradição com o radical catolicismo do Mestre.


domingo, 5 de julho de 2020

O CRISTIANISMO NÃO É ESOTÉRICO EM NENHUM SENTIDO


Carlos Nougué

Os gnósticos, e em especial os perenialistas, para justificar sua absurda doutrina de uma tradição ou revelação primordial que faria as religiões essencialmente idênticas, costumam dizer que o cristianismo tem um lado exotérico, para as multidões, e outro esotérico, somente para os iniciados. Tudo, claro, envolto em torneios linguísticos “dialéticos” de “sim e não” (em vez de “sim, sim; não, não”) para confundir os incautos. E parece (disse: “parece”) que até o Pe. Arintero (na obra “Evolução Mística”, publicada pelo CDB) pode arrolar-se, de algum modo, entre os que defendem a dupla face esotérica/exotérica do cristianismo (e, embora ele pareça falar em iniciação com respeito apenas ao místico, isso também constitui erro, como mostrarei também no curso sobre o Apocalipse). – Mas o fato é que Cristo mesmo e seu Novo Testamento desmentem categoricamente tal dupla face. Como falarei extensamente disto no referido curso, dou-lhes aqui apenas algumas citações com respeito ao que digo, ou seja, que a Revelação é igual para os doutos e para os simples.
1) “E disse-me [o Anjo]: Não seles [ou seja, não ocultes] as palavras da profecia deste livro, pois o tempo [da Parusia] está próximo” (Apocalipse, 22, 10).
2) “O que vos digo ao ouvido, pregai-o dos telhados” (Cristo nas instruções aos apóstolos, Mateus 10, 27).
3) “Eu falei ao mundo abertamente. Interroga tu os que me ouviram, eles sabem o que eu disse” (Cristo ao pontífice que o interroga sobre sua doutrina, João 18, 20).
Por isso diz São João Crisóstomo: “Aquele que não entende é porque não ama”.

Observação: no curso sobre o Apocalipse, tratarei em detalhe também as passagens de Isaías, no Antigo Testamento, relativas a este assunto.