terça-feira, 9 de junho de 2020

FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO OU RETARDAMENTO DA CONTEMPLAÇÃO?


Carlos Nougué

Tornou-se moda desde já há uns bons anos dizer e crer que não se alcança a plenitude da contemplação – o que Aristóteles chamava “bíos theoretikós”, vida teorética ou contemplativa, a vida feliz – sem que antes se tenha lido exaustivamente a literatura nacional e a universal. Mas isto é um sofisma, e dos mais perigosos. Vejamos por quê.
1) Sou o primeiro a falar da importância da arte do belo para a formação do homem. Como o mostro no livro “Da Arte do Belo” (gênero que engloba a literatura, o teatro, o cinema, a música, a dança, a pintura, a escultura, e em parte a arquitetura), a arte do belo faz o homem propender ao bem e à verdade. Mas atenção: ainda que bem-sucedida formalmente, a arte do belo pode não sê-lo perfeitamente, ou seja, pode fazer propender ao mal e à falsidade, e este é o caso de mui numerosas obras icônicas em nosso meio conservador: as de Milton, de Goethe, de Balzac, de Stendhal, de Poe, de Flaubert, de Baudelaire, de Tolstoi, etc., etc., etc., todas devidamente postas no Index dos livros proibidos, quer por sua imoralidade, quer por sua impiedade, quer por seu satanismo, etc. São como o ouropel, que brilha como ouro, mas é falso ouro. Para aprofundamento deste ponto, vide meu “Da Arte do Belo”, e “Lecturas buenas y malas”, de A. Garmendia de Otaola, S. J. Ler exaustivamente essas obras, portanto, não só retarda o início da vida contemplativa, mas de certo modo impede que se dê com perfeição, porque estará seu leitor propenso ao mal e à falsidade.
2) Depois, não necessariamente é a literatura a arte do belo principal para propensão ao bem e à verdade. Aristóteles, apesar de ter escrito a “Poética”, quando fala (no livro VIII da “Política”) da formação do jovem para a vida política ou social, fala quase exclusivamente da música, porque a consonância ou harmonia musical é um análogo da virtude. Mas pode dizer-se, em geral, que é importante a presença do gênero da arte do belo não para a formação do imaginário, mas para seu oposto: para a superação do imaginário, superação essa que é um como prerrequisito da vida contemplativa. É que a arte do belo, em todas as suas espécies, faz o homem justamente superar o estado, digamos, emocional-imaginário e temperamental próprio da infância e da adolescência/juventude, para que adquira caráter virtuoso adulto, no qual reina o intelecto, não a imaginação. Para isto mesmo é que serve a catarse a que se refere Aristóteles na “Poética”, e que estudo detidamente em “Da Arte do Belo”.
3) Assim, a arte do belo é muito importante na infância e na adolescência/juventude, ainda que permaneça na vida adulta virtuosa quer como refrigério para a alma, quer como ofício, no caso dos artistas (que, porém, para serem grandes artistas, também devem ter o intelecto como rei em sua alma: como dizia aliás o mesmo Baudelaire, “uma coisa felizmente encontrada [na arte do belo] é simples consequência de um bom raciocínio, cujas deduções intermediárias por vezes foram saltadas. Uma [obra de arte do belo] é uma máquina cujos sistemas todos são inteligíveis para um olho exercitado”.
4) Infelizmente, todavia, nossa sociedade elegeu o feio, razão por que somos quase todos mal formados artisticamente na infância e na adolescência/juventude. Que implica isto? Que se na vida adulta não tivermos frequentado exaustivamente a arte do belo não poderemos iniciar-nos na vida contemplativa? Afirmá-lo seria desmedido e pernicioso. Assim como o ideal é que nos introduzamos na vida contemplativa (atenção!) aos 14 anos, como no século XII-XIII, nada impede que o façamos mais tarde, queimando assim etapas; assim também podemos iniciar-nos na contemplação enquanto paralelamente nos iniciamos na arte do belo (e até sem a rigidez nem a exaustividade exigidas para a iniciação na vida contemplativa). Cada caso será um caso, além de que devemos contar sempre com graças atuais divinas para uma vida de estudos.
5) Para concluir este breve texto (que será muito aprofundado num apêndice de minha “Suma Retórica”), digo-lhes: esqueçam essa tolice de formação do imaginário, e não se entreguem à leitura exaustiva de obras literárias (e a leitura nenhuma se se tratar de obras malsãs) antes de começar a vida teorética, a vida contemplativa. A vida terrena feliz é esta. E busquem a virtude, o caráter virtuoso, que, repito, supõe a entronização do intelecto em nossa alma, em lugar da imaginação e do temperamento. O caráter virtuoso é precondição para a vida feliz eterna, na qual se contempla a própria Verdade, que é Deus. Na vida terrena, aliás, mais vale amar a Deus que conhecê-lo, para que possamos na vida eterna amá-lo perfeitamente em razão de o conhecermos perfeitamente.

OBSERVAÇÃO FINAL. Ademais, deixar de iniciar-se quanto antes na vida contemplativa é ficar inerme, desarmado, diante de sofistas sabichões, porque, com efeito, “em terra de cego quem tem um olho é rei”.