Carlos
Nougué
Tornou-se moda desde já há uns
bons anos dizer e crer que não se alcança a plenitude da contemplação – o que
Aristóteles chamava “bíos theoretikós”, vida teorética ou contemplativa, a vida
feliz – sem que antes se tenha lido exaustivamente a literatura nacional e a
universal. Mas isto é um sofisma, e dos mais perigosos. Vejamos por quê.
1) Sou o primeiro a falar da importância da arte do
belo para a formação do homem. Como o mostro no livro “Da Arte do Belo” (gênero
que engloba a literatura, o teatro, o cinema, a música, a dança, a pintura, a
escultura, e em parte a arquitetura), a arte do belo faz o homem propender ao
bem e à verdade. Mas atenção: ainda que bem-sucedida formalmente, a arte do
belo pode não sê-lo perfeitamente, ou seja, pode fazer propender ao mal e à
falsidade, e este é o caso de mui numerosas obras icônicas em nosso meio
conservador: as de Milton, de Goethe, de Balzac, de Stendhal, de Poe, de
Flaubert, de Baudelaire, de Tolstoi, etc., etc., etc., todas devidamente postas
no Index dos livros proibidos, quer por sua imoralidade, quer por sua
impiedade, quer por seu satanismo, etc. São como o ouropel, que brilha como
ouro, mas é falso ouro. Para aprofundamento deste ponto, vide meu “Da Arte do
Belo”, e “Lecturas buenas y malas”, de A. Garmendia de Otaola, S. J. Ler
exaustivamente essas obras, portanto, não só retarda o início da vida
contemplativa, mas de certo modo impede que se dê com perfeição, porque estará
seu leitor propenso ao mal e à falsidade.
2) Depois, não necessariamente é a literatura a arte
do belo principal para propensão ao bem e à verdade. Aristóteles, apesar de ter
escrito a “Poética”, quando fala (no livro VIII da “Política”) da formação do
jovem para a vida política ou social, fala quase exclusivamente da música,
porque a consonância ou harmonia musical é um análogo da virtude. Mas pode
dizer-se, em geral, que é importante a presença do gênero da arte do belo não
para a formação do imaginário, mas para seu oposto: para a superação do
imaginário, superação essa que é um como prerrequisito da vida contemplativa. É
que a arte do belo, em todas as suas espécies, faz o homem justamente superar o
estado, digamos, emocional-imaginário e temperamental próprio da infância e da
adolescência/juventude, para que adquira caráter virtuoso adulto, no qual reina o intelecto,
não a imaginação. Para isto mesmo é que serve a catarse a que se refere
Aristóteles na “Poética”, e que estudo detidamente em “Da Arte do Belo”.
3) Assim, a arte do belo é muito importante na
infância e na adolescência/juventude, ainda que permaneça na vida adulta virtuosa quer
como refrigério para a alma, quer como ofício, no caso dos artistas (que,
porém, para serem grandes artistas, também devem ter o intelecto como rei em
sua alma: como dizia aliás o mesmo Baudelaire, “uma coisa felizmente encontrada
[na arte do belo] é simples consequência de um bom raciocínio, cujas deduções
intermediárias por vezes foram saltadas. Uma [obra de arte do belo] é uma
máquina cujos sistemas todos são inteligíveis para um olho exercitado”.
4) Infelizmente, todavia, nossa sociedade elegeu o
feio, razão por que somos quase todos mal formados artisticamente na infância e
na adolescência/juventude. Que implica isto? Que se na vida adulta não tivermos
frequentado exaustivamente a arte do belo não poderemos iniciar-nos na vida
contemplativa? Afirmá-lo seria desmedido e pernicioso. Assim como o ideal é que
nos introduzamos na vida contemplativa (atenção!) aos 14 anos, como no século
XII-XIII, nada impede que o façamos mais tarde, queimando assim etapas; assim
também podemos iniciar-nos na contemplação enquanto paralelamente nos iniciamos
na arte do belo (e até sem a rigidez nem a exaustividade exigidas para a
iniciação na vida contemplativa). Cada caso será um caso, além de que devemos
contar sempre com graças atuais divinas para uma vida de estudos.
5) Para concluir este breve texto (que será muito
aprofundado num apêndice de minha “Suma Retórica”), digo-lhes: esqueçam essa
tolice de formação do imaginário, e não se entreguem à leitura exaustiva de
obras literárias (e a leitura nenhuma se se tratar de obras malsãs) antes de
começar a vida teorética, a vida contemplativa. A vida terrena feliz é esta. E
busquem a virtude, o caráter virtuoso, que, repito, supõe a entronização do
intelecto em nossa alma, em lugar da imaginação e do temperamento. O caráter
virtuoso é precondição para a vida feliz eterna, na qual se contempla a própria
Verdade, que é Deus. Na vida terrena, aliás, mais vale amar a Deus que
conhecê-lo, para que possamos na vida eterna amá-lo perfeitamente em razão de o
conhecermos perfeitamente.
OBSERVAÇÃO FINAL. Ademais, deixar de iniciar-se quanto
antes na vida contemplativa é ficar inerme, desarmado, diante de sofistas
sabichões, porque, com efeito, “em terra de cego quem tem um olho é rei”.