À primeira vista, não há nada aparentemente
mais diferente do que um liberal econômico e um socialista. A oposição
enfadonha entre mercado e Estado parece pô-los a léguas de distância um do
outro. O laissez-faire e o Welfare parecem contrapor-se como veneno
e antídoto, embora as fileiras de combatentes divirjam quanto a quem cabe cada
uma dessas designações.
No entanto, é ainda o “liberalismo
fundamental”[1]
que subjaz a essas duas ideologias. Ambos os grupos almejam organizar a sociedade
de modo puramente imanente, seja pelo mercado, seja pelo Estado, seja por um
conúbio escuso de ambos; tentam criar ordem sem apelar a um Summum Bonum transcendente. Daí que
Carlos Nougué observe: “O liberalismo e o comunismo brotam de um mesmo non
serviam, de uma mesma revolta contra Deus, e ambos carecem de uma
correta compreensão do que é o homem, seus produtos e seus fins”[2].
Isso explica, por exemplo, o
persistente insucesso dos liberais brasileiros no combate às doutrinas
socialistas em nossas plagas. Nossos liberais julgam que, demonstrada a
superioridade – quanto à eficiência econômica – do mercado livre sobre a
economia estatizada e o intervencionismo, deram cabo do adversário, o qual, no
entanto, e frequentemente para seu espanto, não para de crescer. Atesta
Lindenberg:
Os neoliberais estão convictos de que comunistas, socialistas e
progressistas são na sua maioria idealistas, honestos, e bem intencionados, mas
que ao mesmo tempo estão desinformados e mal orientados. Acreditam por isso,
que a difusão em massa de publicações, embora não pretendendo ser polêmica
constitui uma evidência cabal das vantagens dos sistemas de mercado e é, por si
só, suficiente para levar os ditos grupos a rever suas posições. Acreditam
ainda que esses esquerdistas, pertencentes a diferentes faixas de opinião, são
essencialmente pragmáticos e, assim sendo, o conceito socialista terá perdido a
sua capacidade de atração, em especial após o colapso da União Soviética[3].
Esse
equívoco, contudo, deriva menos do pragmatismo utilitarista típico dos liberais
– que amiúde os torna cegos, segundo se diz, a considerações mais elevadas e
decisivas, como as de ordem moral-religiosa – do que de uma concordância substantiva quanto a esses
pontos. Os liberais reprovam nos comunistas apenas o estatismo, porque, quanto
ao mais, estão de acordo. Corção é
implacável:
Eu ouso dizer que o comunismo é o coroamento do liberalismo, e que em
nenhum outro regime o homem é mais desoladamente individual, porque suas
relações sociais têm apenas o sentido de cooperação. A relação entre indivíduo
e sociedade, tanto no liberalismo como no comunismo, é de ordem puramente
material; a relação entre a pessoa e a sociedade compreende também o aspecto
material mas subordina-o a um primado do espírito pelo qual o bem comum é
homogêneo com a perfeição da pessoa[4].
O
próprio Marx, não custa lembrar, afirmava que “a burguesia desempenhou na
história um papel extremamente revolucionário”[5]. Marx sabia que a
revolução que ele tanto almejava já fora iniciada pela burguesia. Apenas, uma
vez conquistado o poder, o burguês, com o perdão do chiste, “aburguesara-se”;
perdera o ímpeto dinamizador de outrora. O que Marx denuncia no burguês é a deserção; reprime-o como a um
companheiro de luta que mudou de lado, ou no mínimo largou as armas quando
encontrou um bunker confortável.
Insista-se:
liberalismo e socialismo são expressões econômico-políticas antitéticas do
mesmo “liberalismo fundamental”. A concordância profunda entre esses dois
grupos quanto às pautas culturais que defendem deriva precisamente da revolta
liberal que os irmana. E, para um católico, a quem cumpre combater essa
“síntese de todas as heresias”, cumpre combater ambos os grupos. Recordemos a
lição de Pio IX: “É dever do Nosso
múnus pastoral chamar-lhes a atenção para a gravidade e eminência do perigo:
lembrem-se todos, que deste socialismo educador foi pai o liberalismo, será
herdeiro legítimo o bolchevismo”[6].
A similaridade essencial entre o
liberalismo e o socialismo, bem como a enorme plasticidade de ambos, pode ser
ilustrada pelo marcusianismo – quiçá a mais influente corrente ideológica hoje
em dia. Se o marcusianismo é, por um lado, uma reformulação do marxismo –
conquanto rejeite o que era central no marxismo-leninismo: o mecanismo da luta
de classes, a proposta da coletivização dos meios de produção, a ditadura do
proletariado, etc. –, é inegável que ele seja, por outro lado, o paroxismo
mesmo do liberalismo.
O
que Marcuse propõe, essencialmente, é uma mudança na estratégia revolucionária.
Em seu magnum opus, O homem unidimensional, saído em 1964[7], o alemão observa que as
recentes reformulações no modo de produção capitalista tornaram obsoleta a estratégia
marxista clássica. A nova sociedade industrial “se distingue por conquistar as
forças sociais centrífugas mais pela Tecnologia que pelo Terror, com dúplice
base numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente”[8]. Por conta disso, “a sociedade
contemporânea parece capaz de conter a transformação social – transformação
qualitativa que estabeleceria instituições essencialmente diferentes, uma nova
direção dos processos produtivos, novas formas de existência humana”[9]. A atual sociedade tecnológica
logrou unir as duas classes sociais arquetípicas, e ainda básicas: a burguesia
e o proletariado. Mas, por isso mesmo, tais classes deixaram de ser os agentes
da transformação revolucionária. Escreve Marcuse:
Uma ligeira comparação entre a fase de formação da teoria da sociedade
industrial e sua situação atual poderá ajudar a mostrar como as bases da
crítica foram alteradas. Em suas origens, na primeira metade do século XIX,
quando elaborou os primeiros conceitos das alternativas, a crítica da sociedade
industrial alcançou concreção numa mediação histórica entre teoria e prática,
valores e fatos, necessidades e objetivos. Essa mediação histórica ocorreu na
consciência e na ação política das duas grandes classes que se defrontavam na
sociedade: a burguesia e o proletariado. No mundo capitalista, ainda são as
classes básicas. Contudo, o desenvolvimento capitalista alterou a estrutura e a
função dessas duas classes de tal como que elas não mais parecem ser agentes de
transformação histórica. Um interesse predominante na preservação e no
melhoramento do status quo
institucional une os antigos
antagonistas nos setores mais avançados
da sociedade contemporânea. E a própria ideia da transformação
qualitativa recua diante das noções realistas de uma evolução não-explosiva
proporcionalmente ao grau em que o progresso técnico garante o crescimento e a
coesão da sociedade comunista[10].
A
despeito de todos os esforços da intelectualidade marxista para ensinar aos
trabalhadores quais são seus “interesses objetivos”, o proletariado renunciou a
seus mestres e desertou a revolução – como outrora o burguês o fizera. Ao que
parece, os antigos inimigos viraram irmãos; o leão deitou-se com o cordeiro. A
conclusão óbvia a extrair-se desse dado é que o marxismo foi cabalmente desmentido
pela história, e que, no final das contas, a revolução interessa tanto ao
proletariado quanto o proletariado interessa à intelectualidade marxista. Mas
Marcuse tem uma hipótese alternativa: o proletariado é que se vendeu – por um
prato de lentilhas e um iphone. Ele
já não sabe quais são seus “verdadeiros interesses”.
A
revolução não deve ser abandonada; pelo contrário, deve ser continuada mais
resolutamente do que outrora, porque tem agora uma tarefa ainda mais hercúlea:
salvar o proletariado não apenas dos capitalistas, mas dele próprio. O fato
básico da opressão segue existindo, e agora talvez mais implacavelmente do que
antes, porque a repressão é mais difusa e confortável do que outrora, e, na
mesma medida, mais sólida e inabalável: “a união da produtividade crescente e
da destruição crescente; a iminência de aniquilamento; a rendição do
pensamento, das esperanças e do temor às decisões dos poderes existentes; a
preservação da miséria em face da riqueza sem precedentes”[11] são ainda dedos em riste,
acusando a sociedade industrial contemporânea. Uma “transformação qualitativa”
ainda é urgente.
Marcuse
diz mesmo, celebremente, que a racionalidade tecnológica, tal como se organiza
hoje, é categoricamente “totalitária”[12]; pois “com o crescimento
da conquista tecnológica cresce a conquista do homem pelo homem”[13]. Ora, “as tendências
totalitárias da sociedade unidimensional tornam ineficaz o processo tradicional
de protesto – torna-o talvez até perigoso porque preservam a ilusão da soberania
popular”[14].
Para combater esta racionalidade tecnológica, que é no fundo irracionalidade, e
romper seu círculo vicioso; para rasgar o véu ideológico da “boa vida” mantida
pela mentira da perpétua criação de novas necessidades e da obsolescência
programada, é preciso “um Sujeito histórico essencialmente novo”[15]. Como o proletariado
perdeu seu afã revolucionário, onde se pode buscar esse “novo Sujeito” – senão
nas margens da sociedade, em que ainda se dá sua negação? Escreve Marcuse:
Por baixo da base conservadora popular está o substrato dos párias e
estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e de outras cores, os
desempregados e os não-empregáveis. Eles existem fora do processo democrático;
sua existência é a mais imediata e a mais real necessidade de pôr fim às
condições e instituições intoleráveis. Assim, sua oposição é revolucionária
ainda que sua consciência não o seja. Sua oposição atinge o sistema de fora
para dentro, não sendo, portanto, desviada pelo sistema, é uma força elementar
que viola as regras do jogo e, ao fazê-lo, revela-o como um jogo trapaceado[16].
É
aos “subcães”[17]
que Marcuse agora brada: “uni-vos!”. A massa dos psicologicamente frustrados –
intelectuais e estudantes ensoberbecidos, mulheres insatisfeitas com os
maridos, feministas horrorizadas pelo patriarcado, gays enraivecidos com a
ditadura heterossexual, drogaditos, degenerados, marginais e delinquentes – é
agora o novo agente da revolução. É esse o novo espectro que ronda a sociedade
atual. Invocando-o, o alemão espera que os extremos possam novamente tocar-se:
“a mais avançada consciência da humanidade” – supõe-se que a sua própria – “e
sua força mais explorada”[18]. Olavo de Carvalho
observa que “a influência de Marcuse, fundindo-se às propostas de ‘revolução
cultural’ inspiradas em Antônio Gramsci, foi tão vasta e profunda que hoje o
marcusianismo em ação já nem aparece associado ao nome de seu inventor:
tornou-se o modo de ser natural e universal do movimento revolucionário por
toda a parte”[19].
É
claro que essa nova estratégia de ação revolucionária demanda uma readequação
nos objetivos do movimento. Já Georg Lukács ensinava que o inimigo da revolução
não era o capitalismo, mas a “civilização judaico-cristã”[20]. A rigor, “esse objetivo
– destruir a civilização do Ocidente – foi delineado de maneira simultânea por
três fontes independentes: o filósofo marxista
húngaro Georg Lukács, o líder comunista italiano Antonio Gramsci e os
cientistas sociais da Escola de Frankfurt”[21]. Entre eles, Marcuse,
mais que os demais, parece ter sido decisivo.
Em sua
obra Eros e civilização, de 1955,
Marcuse pretende, mediante o artifício da reformulação da psicanálise (similar
ao marxismo no número de repaginações que já experimentou), dar foros
científicos ao novo alvo da revolução. A associação entre Marx e Freud parecia
muito natural, porque afinal de contas “a fronteira tradicional entre a
Psicologia, de um lado, a Política e a Filosofia Social, do outro, tornou-se
obsoleta em virtude da condição do homem na era presente: os processos
psíquicos anteriormente autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela
função do indivíduo no Estado – pela sua existência pública”[22]. O diagnóstico
psicológico pode, pois, ter um alcance político; “os problemas psicológicos
tornam-se problemas políticos: a perturbação particular reflete mais
diretamente do que antes a perturbação do todo, e a cura dos distúrbios
pessoais depende mais diretamente do que antes da cura de uma desordem geral”[23]. A intimidade já não é
mais real, porque a natureza totalitária da sociedade atual absorve e modela os
poderes individuais. A mais-valia virou “mais-repressão”[24]. O agenciamento dos
instintos tornou-se um problema político:
os processos que criam o ego e o superego também modelam e perpetuam
instituições e relações sociais específicas. Os conceitos psicanalíticos como
sublimação, identificação e introjeção não possuem apenas um conteúdo psíquico,
mas também social: terminam em um sistema de instituições, leis, agências,
coisas e costumes que enfrentam o indivíduo como entidades objetivas[25].
Para
empreender esta tão necessária cura da desordem e perturbação gerais, é preciso
“desenvolver a substância política e sociológica das noções psicológicas”[26], de modo a ser possível o
“diagnóstico de uma perturbação geral”[27]. O primeiro passo é rever
a equiparação tipicamente freudiana da civilização com a repressão. Com efeito,
para Freud, filhote confesso da Ilustração, “o sacrifício metódico da libido, a
sua sujeição rigidamente imposta às atividades e expressões socialmente úteis,
é cultura”[28];
“a civilização se baseia na permanente subjugação dos instintos humanos”[29]. É tal axioma que se deve
rejeitar, tanto mais porque “a própria teoria de Freud fornece-nos razões para
rejeitarmos a sua identificação de civilização com repressão”[30].
Para
Marcuse, os aspectos negativos de nossa cultura – “os campos de concentração,
extermínios em massa, guerras mundiais e bombas atômicas”, os quais “não são
‘recaídas no barbarismo’, mas a implementação irreprimida das conquistas da
ciência moderna, da tecnologia e dominação dos nossos tempos” – “podem muito
bem indicar o obsoletismo das instituições estabelecidas e a emergência de
novas formas de civilização: a repressão é, talvez, mantida com tanto mais
vigor quanto mais desnecessária se torna”[31]. Ou seja, a identificação
da dominação com o progresso não é a “essência da civilização”, mas antes “uma
organização histórica específica da existência humana”[32], que Freud,
enganadamente, tomou por estrutural e inevitável.
Sendo
assim, podemos augurar “uma civilização não-repressiva”[33]. Eis o sonho de Marcuse:
o estabelecimento de “uma nova relação entre os instintos e a razão”[34]; a criação de um novo
princípio de realidade, não-repressivo, capaz de não sufocar os “instintos da
vida”. Neste estado sublime, “a moralidade é invertida pela harmonização da
liberdade instintiva e da ordem: libertos da tirania da razão repressiva, os
instintos tendem para relações existenciais livres e duradouras, isto é, geram
um novo princípio de realidade”[35]. Uma civilização madura
poderia realizar o “estado estético” de Schiller.
Este
estado – que está para além do bem e do mal, ao menos tal como concebidos pelo
Ocidente até aqui – implicaria, é claro, uma regressão, que “reativaria estágios anteriores da libido, (...)
ultrapassados no desenvolvimento do ego da realidade, e dissolveria as
instituições da sociedade em que o ego da realidade existe”[36]. Tarefa, portanto,
essencialmente negativa, hegelianamente destruidora[37], mas capaz de promover,
tranquiliza-nos Marcuse, não uma “recaída no barbarismo” e sim “uma inversão do
processo de civilização, uma subversão da cultura – mas depois da cultura ter
realizado sua obra e criado uma humanidade e um mundo que podia ser livres.
Seria ainda uma ‘regressão’ – mas à luz da consciência madura e guiada por uma
nova racionalidade”[38].
Todo
bom psicólogo é um prático; sabe dar recomendações. Por isso, não surpreende
que Marcuse prescreva à sociedade doente que ele tencionar curar um exercício
terapêutico: “a noção de uma ordem instintiva não-repressiva deve ser
primeiramente testada nos mais ‘desordenados’ de todos os instintos: os da
sexualidade”[39].
Marcuse reitera a conclusão de Freud, segundo a qual tal regressão “anularia a
canalização da sexualidade para a reprodução monogâmica e o tabu sobre as perversões”[40].
Mas
enquanto Freud recua horrorizado diante de tal “regressão” como sinal de uma
queda na barbárie, Marcuse pretende que a liberação dos instintos seja, antes,
o princípio de uma nova, e mais madura, civilização. Se é verdade que a
“dessexualização do corpo”, a qual perpetua os tabus sexuais e a reprodução
monogâmica, não é o resultado de uma necessidade civilizatória intrínseca e
incontornável, mas de um modo de produção particular, que transforma o
organismo no “sujeito-objeto de desempenhos socialmente úteis”[41]; se é verdade, ao fim e
ao cabo, que o princípio de realidade, tal como Freud o concebia, não é fruto
da civilização enquanto tal, mas da civilização capitalista, as restrições à
libido que tal sistema impõe podem, e devem, ser revertidas.
Por
exemplo, “o amor e as relações duradouras e responsáveis que ele exige,
baseiam-se numa união de sexualidade com o ‘afeto’, e essa união é o resultado
histórico de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação
legítima do instinto se torna suprema e suas partes componentes são sustadas em
seu desenvolvimento”[42]. Esse processo, portanto,
pode ser abalado; sexualidade pode deixar de ser “dignificada pelo amor”[43]; o corpo pode ser
ressexualizado; os tabus destruídos; as perversões celebradas. Com efeito, a primeira
manifestação do sucesso do tratamento de nossa enferma sociedade totalitária
seria a “reativação de todas as zonas erotogênicas e, consequentemente, (...)
[a] ressurgência da sexualidade polimórfica pré-genital e (...) [o] declínio da
supremacia genital”[44]; a “erotização da
personalidade total”[45].
Aos
que pensam que tais processos conduziriam a uma “sociedade de maníacos sexuais”[46], Marcuse tem palavras de
consolo. O que ele pressagia é, antes, uma transformação da libido, que, uma
vez autorizada a expressar-se livremente, se manifestaria não como outrora,
quando ainda estava cingida aos repressivos limites da sociedade industrial,
mas de modo maduro e coesivo. As perversões, transformadas as instituições que
as deformam, seriam remodeladas, e assumiriam outras formas, “compatíveis com a
normalidade na civilização de elevado grau”[47]. Trata-se de uma
aplicação rigorosa da lógica hegeliana do negativo: destruída a “civilização
repressiva”, algo de melhor surgirá espontaneamente. Não há que se preocupar
com o positivo; ele é consequência natural do negativo. A tarefa revolucionária
é puramente destrutiva. Poderíamos novamente citar o acachapante desmentido da
história, mas já vimos que Marcuse não recua diante de meros fatos; mau vezo
também hegeliano. Se os fatos desmentem a teoria, a culpa é dos fatos, que
devem então ser suplementarmente torcidos e qualitativamente transformados.
A
moral religiosa tradicional por muito tempo defendeu que o ser humano não é
mero meio ou objeto, e sim um fim em si mesmo. Já basta. Agora o corpo pode
novamente recuperar sua condição de puro “objeto de catexe”, de “instrumento de
prazer”, processo que, com sorte, “levaria a uma desintegração das instituições
em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a
família monogâmica e patriarcal”[48]. Em tempos pretéritos, “a
força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o uso do corpo como
mero objeto, meio, instrumento de prazer; tal coisificação era tabu e
manteve-se como infeliz privilégio de prostitutas, degenerados e pervertidos”[49]; mas agora tal “infeliz
privilégio” pode tornar-se o feliz direito de todos. Em uma palavra: “se a
culpa acumulada na dominação civilizada do homem pelo homem pode alguma vez ser
redimida pela liberdade, então o ‘pecado original’ deve ser cometido de novo:
‘devemos comer de novo da árvore do conhecimento, para retornarmos ao estado de
inocência’”[50].
A
receita vem sendo aplicada à risca pela elite globalista, e a
coletividade-paciente, conquanto ainda reclame do amargor do remédio, é cada
vez mais dócil ao tratamento. A ideologia de gênero, a teoria queer, o poliamor, o irrestrito
incentivo à contracepção e ao aborto, a crescente campanha em prol da
normalização da pedofilia, a permanente defesa da liberação das drogas, o apoio
à eutanásia, etc., tudo o que constitui a pauta mesma da esquerda internacional
em nossos dias, é consequência do brado marcusiano contra a “mais-repressão”;
da tentativa de construir de uma “sociedade não-repressiva”; do esforço de
libertar a libido dos limites institucionais estreitos dentro dos quais o
princípio de realidade capitalista a mantém cativa; de sonho, sobretudo, de ser
livre de quaisquer culpas; em suma, do desejo ancestral de morder ainda outra
vez a maçã do Éden. O marcusianismo é o coroamento do “liberalismo
fundamental”. E o mundo hoje é, em grande medida, marcusiano.
“Em
grande medida”, dizíamos, mas, é claro, não completamente. O marxismo clássico,
em sua vertente propriamente comunista, continua em ação. E o liberalismo
econômico, que também comporta grande número de variações, não cessa de ganhar
espaço. Essas três vertentes do “liberalismo fundamental”, que de per se já não são homogêneas, ademais
tanto combatem-se quanto fundem-se, aqui e ali, de formas complexas. E, hoje em
dia, cresce assustadoramente o assalto islâmico ao Ocidente[51]. O conflito entre todos
estes projetos de sociedade é real, não simulado, conquanto também o sejam suas
alianças ocasionais. Seu fim é o mesmo: a destruição das bases civilizatórias –
católicas, em última instância – do Ocidente. O leão realmente não se deitou
com o cordeiro; deitou-se com um lobo em pele de cordeiro.
[2] Liberalismo
e Comunismo – rebentos da mesma raiz, 2008.
[3] O mercado livre numa sociedade cristã,
1999, p. 127.
[4] Três alqueires e uma vaca, 1961, p. 275
– 276.
[5] Manifesto do partido comunista, 2002, p.
47.
[6] Quadragesimo anno, 1931.
[7] E publicado, entre nós, com o título A ideologia da sociedade industrial: o homem
unidimensional, 1973.
[8]Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 14.
[9] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 16.
[10] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 16.
[11] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 17.
[12] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 24.
[13] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 232.
[14] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 234.
[15] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 231.
[16] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 235.
[17] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 235.
[18] Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, 1973, p. 235.
[19] Primores
de ternura – 2, 2009.
[20] Olavo de Carvalho, Uma corda para Lênin, 2007.
[21]
Olavo de Carvalho, Afinal, lutamos
contra quem?, 2008.
[22] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 24.
[23] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 24.
[24] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 174.
[25] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 173.
[26] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 24.
[27] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 29.
[28] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 26.
[29] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 26.
[30] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 27.
[31] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 27.
[32] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 27.
[33] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 27.
[34] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 173.
[35] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 173.
[36] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 174.
[37] Cf. o artigo de Olavo de Carvalho, Uma lição de Hegel, 2008.
[38] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 174.
[39] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 174.
[40] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 174.
[41] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 175.
[42] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 175.
[43] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 176.
[44] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 176.
[45] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 176.
[46] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 176.
[47] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 177.
[48] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 176.
[49] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 175.
[50] Herbert Marcuse, Eros e civilização, 1975, p. 174.
[51] Mas o Islamismo é um fator estranho ao
liberalismo ocidental. Padre Álvaro Calderón o explica: “o liberalismo
modernista é a heresia por excelência do catolicismo, que não pode ocorrer no
mundo que permaneceu alheio ao Evangelho, seja entre judeus, muçulmanos, ou
pagãos do Oriente” (A candeia debaixo do
alqueire, 2009, p. 81).