Carlos Nougué
A ALTURA DE CÍCERO[1]
Apesar de a figura de
Marco Túlio Cícero (Arpino, 106-Caieta, 43 a.C.) sempre se ter afigurado
paradoxal ou contraditória nos livros que dele falavam, desde jovem nunca
hesitei na admiração, algo confusa, que sentia por ele.
Admirava-o como
filósofo? como retórico? como político? Mas obviamente Cícero, o Túlio a que
com respeito tantas vezes se refere Santo Tomás de Aquino, não foi tão grande
filósofo como Platão ou Aristóteles; faltava-lhe um sistema, uma visão
orgânica, a solução intelectiva do mundo. Tampouco se mostrava original, sendo
aparentemente, como seus pares romanos, um simples eclético na tentativa de
conciliar grande parte das escolas filosóficas precedentes.
Como retórico, era sem
dúvida grande, o que porém não era bastante para alicerçar-me a admiração por
ele. Se se tratava do político grande que também sem dúvida foi, já aumentava
um pouco a possibilidade de minha admiração ter fundamento. Mas não tanto para
justificar a própria grandeza dela. Donde pois me provinha aquela inclinação
que me fazia ler com avidez e verdadeira simpatia as obras do romano?
Hoje, beirando já a casa
dos sessenta, creio ter a resposta. Com efeito, era Cícero um mosaico de
qualidades. Historicamente, foi um verdadeiro vaso comunicante tanto entre o
pensamento helênico e o pensamento romano como, mais tarde, entre a cultura
antiga e os Padres latinos (com especial influência sobre Santo Agostinho,
Santo Ambrósio e São Jerônimo). O Pai da Pátria dos romanos conseguiu de fato
transplantar a cultura grega para o então solo rústico da sua pólis, dando-lhe
uma orientação ética geral e solidificando, desse modo, aquela cidade que
progressivamente se confundia com quase todo o orbe conhecido. Mais que isso,
porém: deu à língua latina porte científico ao dotá-la, num esforço de
adaptação do léxico filosófico grego, de vocábulos para as coisas e ideias que
povoavam o universo da sabedoria. Pode-se assim dizer, em sentido lato, que
Roma teve três fundadores: Rômulo, Virgílio e Cícero.
Terá, todavia, o
filósofo Cícero a mesma altura que o vaso comunicante entre três mundos e o
fundador Cícero? Ainda considerando suas grandes contribuições naquele terreno,
como o ter firmado grandemente a noção de lei natural (que porém só se
consolidaria definitivamente com Santo Tomás), não se pode negar, por um lado,
sua inferioridade com relação a um Aristóteles — a cuja filosofia, todavia,
como mostrei em outro lugar,[2]
tendeu grandemente. Por outro lado, há homens cuja obra, se assim se pode
dizer, são grandes por razões extrínsecas a ela. De fato, Cícero, que como
filósofo era antes de tudo um seguidor de Sócrates, igualou-se ao mestre não no
plano da invenção especulativa, mas no do exemplo vital diante da morte.
Precisamente, o que sem
dúvida remata a figura de Cícero em toda a sua grandeza é a absoluta
concordância entre o seu pensamento e a maneira como ele se portou na hora de
perder a vida. Antes de ser degolado por sicários a soldo de Marco Antônio,
primeiro pronunciou aristotélica e, digamos, pré-cristãmente: “Causa das
causas, tem misericórdia de mim”, e depois, ao estender ele próprio o pescoço
para o golpe fatal, proferiu socraticamente: “Morra eu na pátria que tantas
vezes salvei”.
Mais portanto do que
elucidar-me uma admiração juvenil, o conhecimento preciso de Cícero
confirmou-me o que com grande propriedade alguém já dissera: “Na história, só
importam os heróis e os santos [e os sábios, acrescento eu]”.
[1] Apresentação de O Sonho de Cipião, de Marco Túlio Cícero, apresentação, tradução e
notas Prof. Dr. Ricardo da Costa
(http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/sonhocipiao.pdf).
(http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/sonhocipiao.pdf).
[2] Na Apresentação de Do Sumo Bem e do Sumo Mal (De finibus bonorum et malorum), trad.
Carlos Nougué. São Paulo, Martins Fontes, 2004.