sábado, 7 de janeiro de 2017

Questões acerca do Novo Testamento (III): “Qual o significado teológico da terceira queda de Nosso Senhor Jesus Cristo a caminho do Calvário, quando foi ordenado que um terceiro continuasse a carregar a cruz em Seu lugar?”


Carlos Nougué

Diga-se antes de tudo que aparentemente a terceira queda de Cristo não se deu senão para que se introduzisse a figura de Simão de Cirene. A razão disso ver-se-á pela palavra dos doutores que Santo Tomás reuniu em sua Catena aurea a respeito deste episódio, que se lê tanto em Marcos 15, 21 como em Lucas 23, 26. – Para os sentidos das Escrituras, vide o ponto V e o ponto VI (Excurso 1 e Excurso 2) de Questões acerca do Novo Testamento (I): “Que significado tem a frase ‘Rasgou-se o véu do templo’?”.

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I) Marcos 15, 21
“E obrigaram certo homem que ia passar [por ali], Simão de Cirene, que vinha do campo, pai de Alexandre e de Rufo, a tomar a cruz de Jesus.”

Teofilacto. João diz que Jesus carregava sua cruz, e um e outro são verdadeiros : antes de tudo Jesus levava ele mesmo sua cruz até que os judeus obrigaram esse homem que passava a carregá-la com ele. O Evangelista faz conhecer o nome dos filhos desse homem para dar a seu relato uma marca mais autêntica de credibilidade; pois esse homem ainda vivia e podia confirmar todas as circunstâncias da crucificação.
Jerônimo. Uns deviam seu renome aos méritos de seus pais, outros às virtudes de seus filhos. Esse Simão, que os judeus forçam a levar a cruz, parece tirar sua ilustração de seus filhos, que eram discípulos de Jesus Cristo. Aprendemos disso que a sabedoria, que as virtudes das crianças podem ser nesta vida um poderoso auxílio para os próprios pais. É assim que os méritos dos patriarcas, dos profetas e dos apóstolos não cessam de ser um título de glória para o povo judeu. Simão, que leva forçosamente a cruz de Jesus, é a figura daquele que trabalha para a glória humana; os homens o obrigam a fazer o que nem o medo nem o amor de Deus teriam podido obter dele.
Beda. Ou ainda esse Simão, que não é de Jerusalém, mas de Cirene, cidade da Líbia, figura o povo dos gentios, que antes eram completamente estranhos às alianças, e que agora por sua obediência se tornaram os herdeiros de Deus ou os co-herdeiros de Jesus Cristo. É de observar, com efeito, que Simão quer dizer obediente, e Cirene herdeiro. Ele vem de sua casa no campo, em grego πάγος, donde provém a palavra paganus [pagão], nome que damos aos que são estranhos à cidade de Deus. Simão, que sai de sua casa no campo para carregar a cruz após Jesus é pois o povo das nações ou dos gentios, o qual abandona as superstições do paganismo para dedicar-se fielmente a seguir as pegadas da paixão do Salvador.

II) Lucas 23, 26
“E, quando o iam conduzindo, agarraram um certo Simão Cireneu, que voltava do campo; e puseram a cruz sobre ele, para que a levasse após Jesus.”

Agostinho. João conta que o próprio Jesus levava sua cruz, o que se deve entender a partir do momento em que saíra para ir ao lugar chamado Calvário; não foi senão no caminho que eles fizeram Simão levá-la até aquele lugar.
Teofilacto. Ninguém, com efeito, consentia em carregar a cruz, que se via como um lenho infame e maldito, e por isso é que eles impuseram a Simão a humilhação forçada de encarregar-se dessa cruz que todos os outros se recusavam a carregar. Assim se cumpriu a profecia de Isaías: “Ele levará sobre os ombros o signo de seu poder”. Com efeito, sua cruz é verdadeiramente o signo de seu poder, e é por causa de sua cruz que Deus o elevou tão alto. Vós vedes uns portar como marca de sua dignidade um rico boldrié, outros uma tiara ou um diadema; quanto ao Salvador, a marca de sua dignidade é sua cruz. E, se quereis refletir sobre isso, vereis que Jesus não estabelece em nós seu reino senão pelos sofrimentos; por isso os que procuram as delícias da vida são inimigos da cruz de Jesus Cristo.
Ambrósio. Jesus carregando sua cruz é como um vencedor que porta já o troféu de sua vitória; a cruz foi colocada sobre seus ombros, quer, com efeito, a tenha carregado ele mesmo, quer a tenha carregado Simão: é sempre Cristo o que a carrega no homem, assim como o homem a carrega na pessoa de Cristo. Não há aqui contradição no relato dos evangelistas, porque a significação misteriosa é a mesma. A ordem de nosso progresso na perfeição requeria que Jesus erguesse primeiramente o troféu de sua cruz, e que o transmitisse aos mártires para portá-lo depois dele. Ora, não é um judeu o que carrega a cruz, mas um estrangeiro e viajante, e ele não caminha diante de Jesus, senão que se contenta com segui-lo, segundo a palavra do Salvador: “Que tome sua cruz, e me siga”.
Beda. Simão quer dizer obediente, e Cirene significa herdeiro; este homem é pois a figura do povo das nações, que antes era completamente estranho às alianças (Ef 2, 12), e que agora se tornou por sua obediência herdeiro de Deus. É quando volta da casa no campo que Simão carrega a cruz após Jesus, figura nisso dos gentios, que começam por renunciar às superstições do paganismo para seguir com obediência os passos da paixão do Salvador, pois casa dos campos se diz em grego πάγος, donde os pagãos tiraram seu nome.
Teofilacto. Ou ainda: Aquele que carrega a cruz de Jesus Cristo vem do campo, ou seja, se separa do mundo e de suas obras, para dirigir-se para Jerusalém, ou seja, para a liberdade dos céus. Nosso Senhor dá-nos, também aqui, uma importante lição: aquele que segue seu exemplo, ele o põe entre seus irmãos, e deve começar por isso por carregar sua cruz e crucificar sua própria carne por temor de Deus, antes que a carreguem os que ele instrui e dirige.