sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Questões acerca do Novo Testamento (II): “O que ensina nossa Santa Religião acerca da eternidade na seguinte questão: Habitarão os cinco reinos da natureza neste Planeta depois do Fim do Mundo?”


Carlos Nougué


“O que ensina nossa Santa Religião acerca da eternidade
na seguinte questão: Habitarão os cinco reinos da natureza
neste Planeta depois do Fim do Mundo?”

I) Antes de tudo, falando propriamente, eternidade só a de Deus, e isso é assim porque, como diz Boécio (em De consolat., V, prosa 6), “a eternidade é a posse simultaneamente total e perfeita de uma vida interminável”. E só Deus tem tal posse.
II) Mas pode dizer-se que alguma criatura seja de certo modo eterna (ou perdurável) no tempo (os homens íntegros depois da ressurreição, por milagre) ou no evo (as almas separadas do corpo e os anjos, por natureza), enquanto Deus está acima do tempo e do evo. Por isso se diz no Credo: “creio na vida eterna” (ou perdurable [perdurável] em espanhol) que se dará depois da ressurreição da carne.
III) Quanto a como será o mundo com o fim dos tempos, quem mais e melhor o estudou e expôs foi Santo Tomás de Aquino (em especial em seu Compêndio de Teologia).[1] Transcrevo-o:

«Capítulo 169

O homem será então renovado,
bem como a criatura corpórea

É manifesto, no entanto, que as coisas que são para o fim se dispõem segundo a existência do fim, razão por que, se aquilo para o que são as outras coisas varia segundo o perfeito e o imperfeito, é necessário que as que se ordenam a ele se disponham de modo diverso, de sorte que o sirvam segundo um ou outro estado: com efeito, a comida e a roupa preparam-se de uma maneira para a criança e de outra maneira para o adulto. Ora, mostrou-se acima [c. 148] que a criatura corpórea se ordena à natureza racional como a seu fim. É necessário portanto que, ao receber o homem a última perfeição pela ressurreição, a criatura corpórea receba um estado diverso, e diz-se segundo isto que o mundo se renovará com o homem ressurgente, segundo aquilo do Apocalipse (21, 1): “Vi um céu novo e uma terra nova”, e segundo aquilo de Isaías (65, 17): “Eis que crio novos céus e novas terras”.

Capítulo 170

Que criaturas se renovarão, e
que criaturas permanecerão

Deve porém considerar-se que os diversos gêneros de criaturas corpóreas se ordenam ao homem segundo razão diversa. É manifesto, com efeito, que as plantas e os animais servem ao homem em auxílio de sua fraqueza, enquanto este tem deles alimento, roupa e transporte e outras coisas que tais, com as quais se sustenta a fraqueza humana. No estado último, no entanto, tirar-se-á do homem pela ressurreição toda essa fraqueza: com efeito, os homens então já não necessitarão de alimentos para nutrir-se, por serem incorruptos, como se mostrou acima [c. 155]; nem de roupas para cobrir-se, dado que se vestirão da glória da claridade; nem de animais para transporte, porque terão agilidade; nem de nenhum remédio para conservar a saúde, dado que serão impassíveis. Logo, é conveniente que nesse estado de consumação última não permaneçam tais criaturas corpóreas, ou seja, as plantas, os animais e os outros corpos mistos.[2]
Mas os quatro elementos, ou seja, o fogo, o ar, a água e a terra, ordenam-se ao homem não só quanto ao uso da vida corruptível, mas também quanto à constituição de seu corpo: porque o corpo humano é constituído dos elementos. Os elementos, portanto, têm ordem essencial ao corpo humano. Por isso, consumado o homem em corpo e em alma, é conveniente que também os elementos permaneçam, mas mudados em melhor disposição.[3]
E, se os corpos celestes, quanto à sua substância, nem são assumidos pelo homem para a vida corruptível nem entram na substância do corpo humano, servem porém ao homem enquanto por sua beleza e por sua grandeza demonstram a excelência de seu criador: daí que frequentemente nas Escrituras se mova o homem a considerar os corpos celestes para que deles seja conduzido à reverência divina, como se vê em Isaías (40, 26): “Levantai os olhos para o alto e vede quem criou estas coisas”. E, conquanto no estado de tal perfeição o homem não seja levado ao conhecimento de Deus a partir das criaturas sensíveis, porque vê a Deus nele mesmo, é porém deleitável e também jucundo para o que conhece a causa considerar de que modo sua semelhança resplandece no efeito: por isso, aos santos entrega-os ao gáudio considerar a refulgência da bondade divina nos corpos, e precipuamente os celestes, que vemos ter preeminência sobre os demais. Ademais, os corpos celestes têm de algum modo ordem essencial[4] ao corpo humano segundo a razão de causa agente, assim como os elementos segundo a razão de causa material. Com efeito, o homem, juntamente com o sol, gera o homem:[5] e também por esta razão convém que os corpos celestes permaneçam.
Isto todavia aparece não só da comparação das referidas criaturas corpóreas ao homem, mas ainda de sua natureza. Com efeito, o que segundo nada seu é incorruptível não deve permanecer em tal estado de incorrupção. Mas os corpos celestes são incorruptíveis segundo o todo e a parte; os elementos segundo o todo, mas não segundo a parte; os homens, por sua vez, segundo a parte, ou seja, segundo a alma racional, mas não segundo o todo, porque o composto se dissolve pela morte; já os outros animais e as plantas e todos os corpos mistos não são incorruptíveis segundo o todo nem segundo a parte. Convenientemente, portanto, em tal estado último de incorrupção permanecerão os homens e os elementos e os corpos celestes, mas não os animais, nem as plantas, nem os [demais] corpos mistos.
Razoavelmente, ademais, aparece o mesmo da razão do universo. Como, com efeito, o homem é parte do universo corpóreo, na última consumação do homem é necessário que permaneça o universo corpóreo: certamente não parece que a parte seja perfeita se for sem o todo. Mas o universo corpóreo não pode permanecer sem que permaneçam suas partes essenciais. São todavia partes essenciais suas os corpos celestes e os elementos, já que neles consiste toda a máquina do mundo; os demais, porém, não parece pertencerem à integridade do universo corpóreo, mas antes a certo ornato e decor[6] seu que compete ao estado de mutabilidade, enquanto do corpo celeste como agente e dos elementos como materiais se geram os animais e as plantas e os corpos minerais. Ora, no estado da última consumação se conferirá aos elementos outro ornato, que convenha ao estado de incorrupção. Neste estado, portanto, permanecerão os homens e os elementos e os corpos celestes, mas não os animais, nem as plantas, nem os corpos minerais.

Capítulo 171

Os corpos celestes deixarão de mover-se

Como todavia vemos os corpos celestes mover-se continuamente, pode alguém pensar que, se permanece sua substância, então em tal estado de consumação também se hão de mover. E, com efeito, se valesse para os corpos celestes a razão que vale para os elementos, tal parecer seria razoável. Sem dúvida, o movimento nos elementos graves[7] ou leves existe para que se consiga sua perfeição. Certamente, tendem por seu movimento natural a seu lugar próprio, onde é melhor que estejam: daí que em tal estado último de consumação cada elemento e cada parte sua estarão em seu lugar próprio. Ora, não se pode dizer o mesmo do movimento dos corpos celestes, porque o corpo celeste não repousa em nenhum lugar alcançado, senão que, assim como naturalmente se movem a algum lugar, assim também naturalmente saem dele. Logo, os corpos celestes não perdem nada se se suprime seu movimento, já que seu movimento não existe para que se perfaçam. Mas é ridículo dizer que, assim como o corpo leve por sua natureza se move para cima, assim também o corpo celeste por sua natureza se move circularmente como por um princípio ativo. É manifesto, com efeito, que a natureza sempre tende ao uno: daí que o que de sua razão repugna à unidade não possa ser o fim último da natureza. Mas o movimento repugna à unidade, na medida em que o que se move se tem de um e de outro modo enquanto se move. A natureza, portanto, não produz o movimento por ele mesmo, senão que o causa tendendo ao termo do movimento, assim como a natureza leve tende ao lugar alto ascendendo, e o mesmo dos demais. Como pois o movimento circular dos corpos celestes não se faz para nenhum lugar determinado, não se pode dizer que a natureza seja o princípio ativo do movimento circular dos corpos celestes, como é princípio do movimento dos graves e dos leves. Por isso, permanecendo embora a mesma a natureza do corpo celeste, nada proíbe que ele repouse, ainda que ao fogo seja impossível repousar fora de seu próprio lugar enquanto permaneça a mesma sua natureza. Diz-se contudo natural o movimento do corpo celeste não pelo princípio ativo do movimento, mas pelo próprio móvel que tem aptidão para mover-se assim. Resta portanto que o movimento do corpo celeste proceda de algum intelecto.
Como todavia o intelecto não move senão com intenção do fim, é necessário considerar qual seja o fim do movimento dos corpos celestes. Não pode dizer-se, porém, que o movimento mesmo seja o fim: o movimento, com efeito, por ser via para a perfeição, não tem razão de fim, mas antes do que é para o fim. Semelhantemente, ademais, não pode dizer-se que a mudança de lugar seja o fim do movimento do corpo celeste, de modo que por este movimento o corpo celeste adquira em ato todo e qualquer lugar para o qual está em potência, porque isto é infinito, mas o infinito repugna à razão de fim. É necessário, portanto, considerar a partir disso o fim do movimento do céu. É manifesto, com efeito, que todo e qualquer corpo movido pelo intelecto é instrumento seu. Mas o fim do movimento do instrumento é a forma concebida pelo agente principal, que eduz a ato pelo movimento do instrumento. No entanto, a forma do intelecto divino que pelo movimento do céu se completa é a perfeição das coisas por via de geração e de corrupção. Ora, o fim último da geração e da corrupção é a nobilíssima forma que é a alma humana, cujo fim último é a vida eterna, como acima se mostrou [c. 104 ss.]. Por conseguinte, o fim último do movimento do céu é a multiplicação dos homens em direção à vida eterna. Esta multidão, porém, não pode ser infinita, porque a intenção de qualquer intelecto se detém em algo finito. Completado pois o número de homens em direção à vida eterna, e constituídos eles na vida eterna, cessará o movimento do céu, assim como o movimento de qualquer instrumento cessa depois de perfeita a obra. Cessando contudo o movimento do céu, cessará por conseguinte todo e qualquer movimento nos corpos inferiores, à exceção do movimento que haverá nos homens a partir da alma: e assim todo o universo corpóreo terá outra disposição e outra forma, segundo aquilo do Apóstolo na Primeira Carta aos Coríntios (7, 31): “A figura deste mundo passa”.[8]»



[1] Tradução, notas e apresentação Carlos Nougué, Porto Alegre, Editora Concreta, 2015.
[2] Dizem-se mistos por compostos de elementos e em comparação aos corpos celestes, isentos de composição e de contrariedade. Vide o apêndice 1 da apresentação.
[3] Vide ainda o apêndice 1 da apresentação. – Basta porém que se substituam por quaisquer outros os antigos quatro elementos para ver que se mantém irretorquível o dito aqui pelo nosso Doutor.
[4] Ou seja, ordenam-se essencialmente.
[5] Aristóteles, Phys., l. 2, c. 2, n. 11 (Bk 194 b 1).
[6] Dĕcor, ōris: aqui, adorno, harmonia, beleza.
[7] Ou pesados.
[8] Além da profundidade propriamente teológica deste capítulo, a nada dele podem obstar as descobertas físicas posteriores se se fazem as devidas precisões, não só aliás ao dito pelo nosso Doutor, mas ainda e sobretudo ao dito pela Física média desde o Renascimento. Algo disto já fazemos no apêndice 1 da apresentação; mas desde já há que dizê-lo: não se pode afirmar que tal mudança da figura deste mundo sucederá, dentro de bilhões de anos, pela morte térmica do universo ocasionada por sua entropia, segundo a tese de Eddington, de Wulf, de Chwolson, de Boltzmann e de outros (cf. José María Riaza Morales, S.J., El comienzo del mundo, 2ª. ed., B.A.C., Madri, 1964, p. 628 ss.). Seguir-se-á à completação do número dos eleitos e, pois, da intenção de Deus. Como o fará este, ou seja, se se valerá ou não de causas naturais segundas para tão radical mudança, isso não nos é dado saber. Mas descrer da possibilidade de que tal se dê por imediata intervenção sobrenatural é incorrer em naturalismo e, ipso facto, excluir-se do teológico.