O
que se lerá aqui são extratos do referido comentário, a saber, os mais
diretamente relacionados à moral conjugal. Quanto ao Comentário como um
todo e quanto à sua tradução que aqui reproduzo, entrego a palavra a Omayr José
de Moraes Junior:
“O Comentário aos Dois Preceitos da Caridade e aos Dez Mandamentos
da Lei, de Santo
Tomás de Aquino, tem sua origem nas pregações do Santo Doutor, realizadas em
Nápoles, durante exercícios quaresmais do ano de 1273. Proferidas originalmente
em dialeto local, e tendo sido anotadas por Pedro de Ândria, confrade do
Angélico, estas Collationes ganharam
posterior redação latina, da qual procedem os manuscritos.
Este Comentário fez-se preceder, na mesma ocasião, de outros dois
congêneres, a saber, um referente ao Credo
e o outro ao Pai-Nosso, que
formam uma trilogia cujo fundamento repousa sobre as três virtudes teologais —
a fé, a esperança e a caridade. A regra áurea que preside toda a explanação é a
mesma que nos legou Jesus Cristo: Amarás
o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e ao teu próximo como a ti mesmo.
A tradução que o leitor tem mãos é de
Braz Florentino Henriques de Souza, e veio a lume na cidade do Recife, pela Typographia Academica de Miranda &
Vasconcellos, no ano de 1858. E aqui faz-se necessário notar que, se nem
sempre é muito precisa a escolha dos termos realizada pelo jurista pernambucano
— que deu maior preferência ao floreio do estilo à exatidão da palavra — o
texto, contudo, nada encerra que desautorize sua reedição.
Pregando
ao povo que acorria à catedral ou à capela dos frades dominicanos, esta terá
sido das últimas ocasiões em que Santo Tomás, ausentando-se um pouco do meio
acadêmico, que era o seu habitual, pôde mais diretamente exercer o ministério
da Palavra junto aos fiéis. No ano seguinte, tendo deixado Nápoles rumo ao
concílio de Lion, o Angélico, colhido pela Providência, não cumpriu outra
Quaresma em que pregasse as maravilhas antigas e novas do tesouro inefável da
Revelação divina, expirando no 7 de março de 1274.”
Entre
o texto de Tomás, incluirei notas complementares, sempre entre colchetes.
Carlos Nougué
* * *
«DO
SEXTO PRECEITO DA LEI
Não cometerás adultério (Ex 20, 14). Depois
de ter proibido o homicídio, o legislador supremo nos proíbe o adultério, e
consequentemente, pois que o homem e a mulher, graças ao casamento, tornam-se
um só e mesmo corpo: Serão dois, disse
o Senhor, em uma só carne (Gn 2, 24).
Por conseguinte, depois do assassino que ataca o próximo em sua pessoa e vida,
o inimigo mais perigoso para o homem é o libertino que o ataca na pessoa e na
honra daquela que é a sua metade. O adultério porém é igualmente proibido ao
marido e à mulher. Entretanto, convém considerá-lo primeiramente em relação à
mulher, porque esse crime parece maior quando é ela que o comete. [Atenção para
o verbo empregado por Tomás: parece.
Já se verá por que o emprega.] A esposa adúltera comete três pecados
gravíssimos, que são indicados pelo Eclesiástico nestes termos: toda a mulher que deixa seu marido torna-se
primeiramente desobediente à lei do Altíssimo; em segundo lugar peca contra o
seu marido; enfim, viola a castidade conjugal (Ecl 23, 22-24).
118. Ela pois peca antes de tudo por
incredulidade, e isto de muitas maneiras. Porquanto não acreditou na palavra do
Senhor que proibiu o adultério, obra contra a ordem de Deus, que quer que a
união do homem e da mulher seja indissolúvel: não separe o homem o que Deus ajuntou, diz Ele em São Mateus (19,
6); obra contra os estatutos da Igreja, que abençoou seu casamento; viola o
juramento que pronunciou à face do céu tomando a Deus por testemunha e garante
da fé jurada. O Senhor,
diz o Profeta, foi testemunha entre
ti e a esposa da tua mocidade, que depois desprezaste (Ml 2, 14). Assim, a
mulher peca por incredulidade obrando contra a lei divina, contra os estatutos
da Igreja, e contra a santidade do sacramento estabelecido pelo próprio Deus.
119. Em segundo lugar peca por traição, porque abandonou seu esposo. A mulher, diz o Apóstolo, não tem
poder sobre o seu corpo, mas tem-no o marido (1 Cor 7, 14). Por isso não
lhe é permitido guardar a continência sem o consentimento daquele que tem todo
o poder sobre sua pessoa. Se ela comete portanto o adultério, torna-se
criminosa de traição, entregando-se a um novo senhor: deixa o guia da sua puberdade, e esqueceu-se do pacto do seu Deus (Pr
2, 17).
120. Em terceiro lugar peca pela comissão de um furto, porque introduz na
casa conjugal os filhos de um estranho, e lhes entrega a herança paterna, o que
é um grande furto que faz aos seus filhos legítimos. A mulher adúltera deveria,
pelo menos, para diminuir a enormidade da sua culpa, dedicar ao estado
religioso os frutos do seu amor criminoso, ou tomar outro qualquer expediente
lícito, afim de que nunca eles tivessem parte na sucessão do seu marido. Assim
pois a mulher adúltera é criminosa de sacrilégio, de traição e de furto.
121. O marido adúltero não é menos
criminoso, bem que muitas vezes seja indulgente para com suas próprias
fraquezas: e digo que não é menos criminoso por três razões.
122. Primeira razão. A mulher tem sobre ele os mesmos direitos que ele
sobre a mulher. O marido, diz S.
Paulo, não tem poder sobre o seu corpo,
mas tem-no a mulher (1 Cor 7, 4). Assim, como esposos, o homem e a mulher
acham-se em mútua dependência um do outro, e os deveres do casamento são os
mesmos para ambos. Para significar essa dependência mútua dos esposos, é que
Deus formou a mulher de uma das costelas do homem, e não de outra qualquer
parte do corpo humano. O casamento nunca foi o que deve ser senão depois da
promulgação da lei cristã. Entre os Judeus era permitido a um homem ter muitas
mulheres, mas não o era a uma mulher ter muitos maridos. Não havia portanto
igualdade de direitos e de deveres entre o esposo e a esposa.
123. Segunda razão. A força é o atributo do homem, e a fraqueza o da
mulher. A paixão, por assim dizer, própria da mulher, é o amor; a fragilidade
deste sexo é pois uma espécie de escusa às suas faltas (cf. lPd 3, 7), e o
marido que exige de sua mulher uma fidelidade que ele mesmo não quer guardar é
um tirano injusto.
124. Terceira razão. O homem tem autoridade sobre a mulher, e é o seu
chefe. Por isso devem as mulheres, segundo o preceito do Apóstolo, guardar um
respeitoso silêncio na Igreja, e contentarem-se com interrogar seus maridos na
casa conjugal. O homem tem pois a missão de guiar a mulher, de esclarecê-la com
suas luzes; e eis aí por que foi a ele que Deus deu os seus preceitos e suas
leis. Ora, o desprezo das leis e dos preceitos de Deus é mais criminoso em um
sacerdote do que em um leigo, mais em um bispo do que em um simples sacerdote.
Porquanto os ministros da religião têm a missão de instruírem os outros homens,
e esta missão é um dever mais rigoroso para aqueles que estão mais elevados na
hierarquia eclesiástica. Da mesma maneira o esposo, sendo o guia e o chefe da
esposa, é mais criminoso do que ela em calcar aos pés a santidade do casamento
cometendo um adultério. Entretanto, atendam bem as mulheres e não esqueçam o
preceito que Jesus Cristo lhes deu: mulheres,
obedecei aos vossos maridos; fazei tudo que eles vos ordenarem; porém
guardai-vos de seguir os seus maus exemplos (Mt 23, 3).
125. Não cometerás adultério. Dissemos que este preceito refere-se tanto
ao marido como à mulher. Acrescentemos que certas pessoas, não obstante
reconhecerem que o adultério é um crime, contudo não acreditam que a simples
fornicação seja um pecado mortal. Mas esta opinião é destruída por estas
palavras de S. Paulo: Deus julgará os
fornicários e os adúlteros (Hb 13, 4); e por esta outra passagem do mesmo
Apóstolo: não vos enganeis, nem os
fornicários, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas hão de
possuir o reino de Deus (1 Cor 6, 9). Ora, a única coisa que pode fechar ao
homem a entrada do reino celeste é um pecado mortal; por consequência a simples
fornicação é um pecado mortal. Mas, direis vós, como a simples fornicação pode
ser um pecado mortal, pois que ela não mancha, como o adultério, o corpo de uma
esposa? A isto respondo que, se não mancha o corpo de uma esposa, mancha o corpo
de Jesus Cristo, que de nós se apossa no momento do batismo. Se pois é um crime
desonrar a pessoa do próximo, muito maior crime é ainda ultrajar a Cristo
mesmo. Não sabeis, diz S. Paulo aos fiéis, que os vossos corpos são membros de Cristo? E como haveis de fazer dos
membros de Cristo os membros de uma vil prostituta, manchando-os pela
fornicação? Longe de vós semelhante pecado (ibid. 6, 15).
[O chamado casamento natural será legítimo para os não batizados desde que os
nubentes prometam a Deus (ou a algo, digamos, análogo) a procriação e o cuidado da prole e a indissolubilidade do laço. Mas os batizados não podem senão unir-se sacramentalmente,
porque, com efeito, na Nova Aliança o casamento foi elevado a sacramento. Neste sacramento, os ministros
são os próprios noivos, e a validade do casamento depende sempre, antes de
tudo, de que se façam as mesmas promessas feitas no casamento natural.
Acrescente-se que os fins do matrimônio ordenam-se entre si: o fim primeiro é a
procriação e o cuidado da prole; o fim segundo, o apoio mútuo entre os cônjuges,
o qual se ordena ao fim primeiro. Esta é a doutrina expressa, por exemplo, no Catecismo Romano – e é de fé. – Mas na
Antiga Aliança, pela dureza do coração do povo de que o Messias nasceria pela
carne, Deus mesmo permitiu que se afrouxasse o rigor adâmico do matrimônio
natural, donde a poligamia. Santo Tomás referiu-o mais acima, no número 122.]
126. É portanto uma heresia dizer que a
simples fornicação não é um pecado mortal. Digamos ainda que o preceito que nos
ocupa, se o interpretarmos em seu sentido verdadeiro e completo, não proíbe
somente o adultério, mas também todos os prazeres carnais, exceto os que o
casamento tem legitimado. Acrescentemos além disto que, segundo certas pessoas,
a união dos sexos no casamento não é isenta de pecado; mas esta doutrina é
ainda uma heresia. Seja por todos tratado
com honra o matrimônio, diz o Apóstolo, e
o leito sem mácula (Hb 13, 4). Algumas vezes a união dos sexos no
casamento, longe de ser um pecado, é mesmo uma obra meritória; é o que sucede
quando, acompanhada da intenção de aumentar o número das criaturas de Deus
procurando filhos, toma o caráter de um ato de virtude; quando é acompanhada da
intenção de cumprir um dever, conserva ainda o caráter de um ato de justiça.
Entretanto, ela pode tornar-se, conforme as circunstâncias, ou um pecado
venial, ou um pecado mortal. Quando não tem outro fim senão satisfazer os
apetites grosseiros da carne, mas sem degenerar em libertinagem, tem o caráter
de pecado venial; quando excede os necessidades da natureza e os limites
severos do casamento, toma o caráter de pecado mortal. Digamos agora por que o
adultério e a fornicação são proibidos. Há muitos motivos para esta proibição.
[No ato conjugal, é lícito tudo quanto
concorra para o fim primeiro do matrimônio, ou seja, a procriação. São lícitos
pois os beijos, as carícias... – tanto quanto, repita-se, sejam necessários
para o cumprimeiro do fim primeiro e dentro de limites determinados pelo mesmo
fim, e desde que não impliquem polução do marido fora do canal genital,
o que, salvo acidentes imprevisíveis, constitui pecado. Ademais, são muito diferentes
o marido e a esposa quanto a tais limites, e cabem ao marido os maiores sacrifícios.
Assim, muito por exemplo, se o marido chega ao êxtase (estando dentro do canal
genital) e a esposa não, então ele a deve manipular para que o alcance: porque
sem isso ela permanecerá abrasada e poderá encontrar-se em ocasião de pecado. O
marido que assim procede não só não comete pecado, senão que pratica um ato de
justiça, que até pode ser meritório segundo a caridade. Mas o inverso não é
verdadeiro ou lícito: não pode o marido, repita-se, chegar ao êxtase senão dentro
do canal genital. Por fim, se por qualquer razão natural um casal não pode ou já
não pode ter filhos, nem por isso deixa de poder praticar o ato conjugal, desde
que o faça como se o fizesse para alcançar o fim primeiro do matrimônio e
segundo todos os limites determinados para o casal fértil. – Ficam assim
sepultados a doutrina de certos Padres da Igreja, para quem o ato conjugal não poderia
dar-se sem mácula ou pecado ao menos venial, e, mais ainda, o puritanismo
protestante, que infelizmente invade até certos círculos católicos.]
127. Primeiro motivo. A libertinagem perde a alma. O esposo adúltero, diz o autor dos Provérbios, perde sua alma por causa da fraqueza do seu coração (Pr 6, 32).
Esta expressão — fraqueza do seu coração —
significa a covarde complacência que o espírito tem para com a carne.
128. Segundo motivo. A libertinagem merece a morte. O esposo adúltero
deve morrer, segundo o preceito da lei mosaica. Ele pode escapar ao castigo
nesta vida; mas esta impunidade é uma desgraça para ele; porquanto os castigos
sofridos com resignação sobre a terra alcançam ao criminoso a remissão de suas
culpas. Esta impunidade, além disto, não será de longa duração; e, se ele pode
subtrair-se à justiça humana, não evitará de certo a justiça divina.
129. Terceiro motivo. A libertinagem é uma causa de ruína. Assim, o
filho pródigo de que se fala no Evangelho dissipou todo o seu patrimônio,
vivendo na desordem e na devassidão. Não
te entregues às voluptuosidades dos sentidos, diz o Eclesiástico, para que te não deites a perder a ti e a tua
herança (Ecl 9, 6).
130. Quarto motivo. A libertinagem avilta até as inocentes vítimas que
tiraram a vida desta fonte impura. Os
filhos dos adúlteros, diz Salomão, não
prosperarão, e a linhagem do tálamo iníquo será exterminada. E, ainda quando
forem de larga vida, serão reputados como coisa de nenhuma entidade, e a sua
última velhice será sem honra (Sb 3, 16). Nunca um bastardo é promovido às
dignidades eclesiásticas, e quando muito pode-se, sem desonra para a Igreja,
deixá-lo no último grau da clericatura.
131. Quinto motivo. A
libertinagem é uma desonra para os que se entregam a ela, e especialmente para
as mulheres. Toda a mulher que é
prostituta, diz o Eclesiástico, será
pisada como o esterco em o caminho (Ecl 9, 10). E quanto ao homem, diz
Salomão, se ele ajunta para si a infâmia
e a ignomínia, [...] não se apagará o seu opróbrio (Pr 6,
33). São Gregório também diz que os pecados da carne são mais infames e menos
condenáveis do que os do espírito. E a razão é [que] eles nos rebaixam até a
ordem dos brutos, de sorte que o homem, neste estado de abjeção, merece mais
desprezo do que censura. O homem, quando
estava na honra, não o entendeu: foi comparado aos brutos irracionais, e se fez
semelhante a eles (Sl 48, 21).
[...]
DO DÉCIMO PRECEITO DA LEI
Não desejarás a mulher do teu próximo. S.
João nos diz que todos os bens deste mundo não são mais do que objetos de
concupiscência para a carne, objetos de cobiça para os olhos, e objetos de
ambição para o espírito. Assim, todos os objetos dos nossos desejos estão
compreendidos nestas três divisões. Duas sortes de desejos são proibidos por
este preceito: não desejarás a casa do
teu próximo: a saber, o desejo das riquezas e o desejo das honras; o desejo
de possuir a casa do próximo compreende ao mesmo tempo estes dois desejos,
estas duas paixões: a cobiça e a ambição. A
glória e a riqueza habitam em sua casa, diz o Salmista (Sl 112, 3). Assim,
a ideia de casa encerra, na Escritura Santa, a ideia de riquezas e de honras, e
o que deseja a casa do seu próximo é ao mesmo tempo cúpido e ambicioso. Depois
de ter proibido a cobiça e ambição, o legislador supremo nos proíbe a
concupiscência carnal. Tal é o sentido deste preceito: não desejarás a mulher do teu próximo. Mas depois da culpa de Adão
nenhum mortal está ao abrigo da concupiscência. Só o nosso divino Salvador e a
gloriosa Virgem sua mãe conservaram uma pureza sem mancha. A concupiscência
algumas vezes é acompanhada de um pecado venial, outras vezes de um pecado
mortal. É acompanhada de pecado mortal quando domina o homem. Não reine o pecado em vosso corpo mortal,
diz o Apóstolo (Rm 6, 12); e não diz — não exista o pecado em vós;
porquanto ele mesmo acrescenta: sei que o
bem não habita em mim, isto e, em
minha carne.
156. Ora, o pecado reina na carne, primeiramente, quando a concupiscência reina no coração e domina a razão. É
por isso que o Apóstolo, depois de ter dito: não reine o pecado em vosso corpo, acrescenta estas palavras: de maneira que não obedeçais aos seus
apetites. Pois aquele que olhar para
uma mulher cobiçando-a, já no seu coração adulterou com ela, diz o Evangelho
(Mt 5, 28). Porquanto aos olhos de Deus a intenção é reputada como o fato.
157. Em segundo lugar, quando a concupiscência se revela por palavras: fala a boca o de que está cheio o coração,
diz ainda o Evangelho (Ibid. 12, 34). Não
saia jamais de vossa boca uma só palavra má, diz S. Paulo (Ef 4, 29). Não
poderiam portanto ser inocentes os que compõem cantigas vãs; é o parecer dos
próprios filósofos, segundo os quais deviam ser expelidos das cidades os poetas
que fazem versos amatórios.*
158. Em terceiro lugar, quando a concupiscência se revela por atos. Oferecestes vossos membros, diz S.
Paulo, para que servissem à imundice, e à
iniquidade. (Rm 6. 19). Tais são os três graus da concupiscência.
Acrescentemos que se não evita este pecado sem dificuldade, e que é preciso
lutar com coragem para subtrair-se ao seu império: é um inimigo doméstico que
nos convém expelir de nossa casa. Ora, pode-se triunfar da concupiscência de
quatro maneiras.
159. Primeiramente devem-se evitar as ocasiões exteriores; por exemplo,
as más sociedades, as conversas criminosas,
e em geral todas as seduções. Não
detenhas os teus olhos em ver a donzela, diz o Eclesiástico, porque não suceda que a sua beleza te seja
ocasião de queda. Não lances os olhos por toda a parte pelas ruas da cidade,
nem andes vagueando pelas ruas. Aparta os teus olhos da mulher enfeitada, e não
olhes curiosamente para a formosura alheia. Por causa da formosura da mulher
perecerão muitos; porque daí é que se acende a concupiscência como fogo
devorador (Ecl 9, 5-9). Acaso pode o homem, diz o autor dos
Provérbios, esconder o fogo em seu seio,
sem que ardam os seus vestidos?
(Pr 6,27).
160. Em segundo lugar é preciso fechar o coração a todos os maus
pensamentos, porque eles produzem a concupiscência; e para fechar o coração às
imagens importunas das voluptuosidades é necessário recorrer às mortificações. Eu castigo o meu corpo, e o reduzo à
escravidão, diz o Apóstolo (1 Cor 19, 17).
161. Em terceiro lugar devemos fortificar-nos pela oração; se o Senhor não guardar a cidade, debalde
vigiarão os que a defendem (Sl 127, 1). Eu
sabia, diz Salomão, que de outra
maneira não podia ter continência, se Deus não ma desse (Sb 8, 21). Esse gênero de demônios, diz o
Evangelho, não pode ser expelido senão
pela oração e [pelo] jejum (Mt 17, 20). Com efeito, se dois
adversários estiverem em luta, e quiserdes tomar o partido de um contra o
outro, ser-vos-á necessário prestar socorro ao primeiro, e procurar enfraquecer
o segundo. Ora, entre o espírito e a carne há uma luta contínua; se quereis
portanto que o espírito triunfe, é preciso que lhe presteis socorro, e é da
oração que esse socorro pode vir; é preciso ao mesmo tempo que enfraqueçais a
carne, e é pelo jejum que ela pode ser enfraquecida.
162. Em quarto lugar devemos entregar-nos com ardor assíduo às ocupações
piedosas. A ociosidade é a mãe de todos
os vícios, diz o Eclesiástico (33, 29). Qual
foi o crime de Sodoma? pergunta Ezequiel: foi a soberba, a fartura de pão, e a abundância, e a ociosidade (Ez
16, 49). Fazei sempre alguma coisa boa, diz S. Jerônimo, a fim de que o demônio
vos ache ocupado. Ora, entre todas as
ocupações a melhor, sem contradição, é o estudo das Escrituras Sagradas. Amai
o estudo das Escrituras Sagradas, diz ainda S. Jerônimo, e não amareis os
prazeres sensuais.
163. Tal é a explicação que
tínhamos a dar desses dez preceitos da lei divina, desses preceitos augustos,
cuja sublimidade e importância Nosso Senhor mesmo nos fez ver, dizendo: se queres entrar na vida eterna, observa os
mandamentos (Mt 19, 17). Dois preceitos
principais resumem toda a lei, a saber — o do amor de Deus e o do amor do
próximo. O amor divino encerra três sortes de deveres: primeiramente ele impõe ao homem a
obrigação de não adorar senão a Deus, e é o que se nos ordena neste artigo da
lei: não adorarás deuses estranhos. Em
segundo lugar impõe-lhe a obrigação
de honrar a Deus, e é o que se nos ordena neste artigo da lei: não invocarás o nome do teu Deus em vão. Em
terceiro lugar impõe-lhe a obrigação
de procurar o descanso em Deus, e é o que se nos ordena neste artigo da lei: lembra-te de santificar o dia de sábado. [Ou
o dia de domingo, no cristianismo. O que importa é que seja o sétimo dia.] O amor do próximo encerra duas sortes de deveres; primeiramente ele impõe ao homem a
obrigação de prestar a cada um a honra que lhe é devida: honra a teu pai e a tua mãe. Em segundo
lugar impõe-lhe a obrigação de não fazer mal a outrem, quer seja por ações,
em sua pessoa, na pessoa que lhe é mais estreitamente unida, e em seus bens: não matarás; não cometerás adultério; não
furtarás; quer seja por palavras: não dirás falso testemunho contra o teu
próximo; quer seja enfim por pensamentos: não cobiçarás os bens do teu próximo, não desejarás a mulher do teu
próximo.»
* Ou seja, libidinosos.