Carlos
Nougué
“O que ensina nossa Santa
Religião acerca da eternidade
na seguinte questão: Habitarão os
cinco reinos da natureza
neste Planeta depois do Fim do
Mundo?”
I) Antes de tudo, falando propriamente, eternidade só a de Deus, e isso é assim porque, como diz Boécio
(em De consolat., V, prosa 6), “a
eternidade é a posse simultaneamente total e perfeita de uma vida
interminável”. E só Deus tem tal posse.
II) Mas pode dizer-se que alguma criatura seja de certo modo eterna (ou perdurável) no tempo (os homens íntegros depois da ressurreição, por milagre) ou no
evo (as almas separadas do corpo e os anjos, por natureza), enquanto Deus está acima do tempo e do evo. Por isso se diz no Credo:
“creio na vida eterna” (ou perdurable
[perdurável] em espanhol) que se dará depois da ressurreição da carne.
III) Quanto a como será o mundo com o fim dos tempos, quem mais e melhor o estudou e expôs foi Santo Tomás de Aquino (em especial em
seu Compêndio de Teologia).[1]
Transcrevo-o:
«Capítulo 169
O homem
será então renovado,
bem como
a criatura corpórea
É manifesto, no entanto, que as
coisas que são para o fim se dispõem segundo a existência do fim, razão por
que, se aquilo para o que são as outras coisas varia segundo o perfeito e o
imperfeito, é necessário que as que se ordenam a ele se disponham de modo
diverso, de sorte que o sirvam segundo um ou outro estado: com efeito, a comida
e a roupa preparam-se de uma maneira para a criança e de outra maneira para o
adulto. Ora, mostrou-se acima [c. 148] que a criatura corpórea se ordena à
natureza racional como a seu fim. É necessário portanto que, ao receber o homem
a última perfeição pela ressurreição, a criatura corpórea receba um estado
diverso, e diz-se segundo isto que o mundo se renovará com o homem ressurgente,
segundo aquilo do Apocalipse (21, 1): “Vi um céu novo e uma terra nova”, e
segundo aquilo de Isaías (65, 17): “Eis que crio novos céus e novas terras”.
Capítulo 170
Que
criaturas se renovarão, e
que
criaturas permanecerão
Deve porém considerar-se que os
diversos gêneros de criaturas corpóreas se ordenam ao homem segundo razão
diversa. É manifesto, com efeito, que as plantas e os animais servem ao homem
em auxílio de sua fraqueza, enquanto este tem deles alimento, roupa e
transporte e outras coisas que tais, com as quais se sustenta a fraqueza
humana. No estado último, no entanto, tirar-se-á do homem pela ressurreição
toda essa fraqueza: com efeito, os homens então já não necessitarão de
alimentos para nutrir-se, por serem incorruptos, como se mostrou acima [c.
155]; nem de roupas para cobrir-se, dado que se vestirão da glória da
claridade; nem de animais para transporte, porque terão agilidade; nem de
nenhum remédio para conservar a saúde, dado que serão impassíveis. Logo, é
conveniente que nesse estado de consumação última não permaneçam tais criaturas
corpóreas, ou seja, as plantas, os animais e os outros corpos mistos.[2]
Mas os quatro elementos, ou seja,
o fogo, o ar, a água e a terra, ordenam-se ao homem não só quanto ao uso da
vida corruptível, mas também quanto à constituição de seu corpo: porque o corpo
humano é constituído dos elementos. Os elementos, portanto, têm ordem essencial
ao corpo humano. Por isso, consumado o homem em corpo e em alma, é conveniente
que também os elementos permaneçam, mas mudados em melhor disposição.[3]
E, se os corpos celestes, quanto
à sua substância, nem são assumidos pelo homem para a vida corruptível nem
entram na substância do corpo humano, servem porém ao homem enquanto por sua
beleza e por sua grandeza demonstram a excelência de seu criador: daí que frequentemente
nas Escrituras se mova o homem a considerar os corpos celestes para que deles
seja conduzido à reverência divina, como se vê em Isaías (40, 26): “Levantai os
olhos para o alto e vede quem criou estas coisas”. E, conquanto no estado de
tal perfeição o homem não seja levado ao conhecimento de Deus a partir das
criaturas sensíveis, porque vê a Deus nele mesmo, é porém deleitável e também
jucundo para o que conhece a causa considerar de que modo sua semelhança
resplandece no efeito: por isso, aos santos entrega-os ao gáudio considerar a
refulgência da bondade divina nos corpos, e precipuamente os celestes, que
vemos ter preeminência sobre os demais. Ademais, os corpos celestes têm de
algum modo ordem essencial[4]
ao corpo humano segundo a razão de causa agente, assim como os elementos
segundo a razão de causa material. Com efeito, o homem, juntamente com o sol, gera
o homem:[5]
e também por esta razão convém que os corpos celestes permaneçam.
Isto todavia aparece não
só da comparação das referidas criaturas corpóreas ao homem, mas ainda de sua
natureza. Com efeito, o que segundo nada seu é incorruptível não deve
permanecer em tal estado de incorrupção. Mas os corpos celestes são
incorruptíveis segundo o todo e a parte; os elementos segundo o todo, mas não
segundo a parte; os homens, por sua vez, segundo a parte, ou seja, segundo a
alma racional, mas não segundo o todo, porque o composto se dissolve pela
morte; já os outros animais e as plantas e todos os corpos mistos não são
incorruptíveis segundo o todo nem segundo a parte. Convenientemente, portanto,
em tal estado último de incorrupção permanecerão os homens e os elementos e os
corpos celestes, mas não os animais, nem as plantas, nem os [demais] corpos mistos.
Razoavelmente, ademais,
aparece o mesmo da razão do universo. Como, com efeito, o homem é parte do
universo corpóreo, na última consumação do homem é necessário que permaneça o
universo corpóreo: certamente não parece que a parte seja perfeita se for sem o
todo. Mas o universo corpóreo não pode permanecer sem que permaneçam suas
partes essenciais. São todavia partes essenciais suas os corpos celestes e os
elementos, já que neles consiste toda a máquina do mundo; os demais, porém, não
parece pertencerem à integridade do universo corpóreo, mas antes a certo ornato
e decor[6]
seu que compete ao estado de mutabilidade, enquanto do corpo celeste como
agente e dos elementos como materiais se geram os animais e as plantas e os
corpos minerais. Ora, no estado da última consumação se conferirá aos elementos
outro ornato, que convenha ao estado de incorrupção. Neste estado, portanto,
permanecerão os homens e os elementos e os corpos celestes, mas não os animais,
nem as plantas, nem os corpos minerais.
Capítulo 171
Os corpos
celestes deixarão de mover-se
Como todavia vemos os corpos
celestes mover-se continuamente, pode alguém pensar que, se permanece sua
substância, então em tal estado de consumação também se hão de mover. E, com
efeito, se valesse para os corpos celestes a razão que vale para os elementos,
tal parecer seria razoável. Sem dúvida, o movimento nos elementos graves[7]
ou leves existe para que se consiga sua perfeição. Certamente, tendem por seu
movimento natural a seu lugar próprio, onde é melhor que estejam: daí que em
tal estado último de consumação cada elemento e cada parte sua estarão em seu
lugar próprio. Ora, não se pode dizer o mesmo do movimento dos corpos celestes,
porque o corpo celeste não repousa em nenhum lugar alcançado, senão que, assim
como naturalmente se movem a algum lugar, assim também naturalmente saem dele.
Logo, os corpos celestes não perdem nada se se suprime seu movimento, já que
seu movimento não existe para que se perfaçam. Mas é ridículo dizer que, assim
como o corpo leve por sua natureza se move para cima, assim também o corpo
celeste por sua natureza se move circularmente como por um princípio ativo. É
manifesto, com efeito, que a natureza sempre tende ao uno: daí que o que de sua
razão repugna à unidade não possa ser o fim último da natureza. Mas o movimento
repugna à unidade, na medida em que o que se move se tem de um e de outro modo
enquanto se move. A natureza, portanto, não produz o movimento por ele mesmo,
senão que o causa tendendo ao termo do movimento, assim como a natureza leve
tende ao lugar alto ascendendo, e o mesmo dos demais. Como pois o movimento
circular dos corpos celestes não se faz para nenhum lugar determinado, não se
pode dizer que a natureza seja o princípio ativo do movimento circular dos
corpos celestes, como é princípio do movimento dos graves e dos leves. Por
isso, permanecendo embora a mesma a natureza do corpo celeste, nada proíbe que
ele repouse, ainda que ao fogo seja impossível repousar fora de seu próprio
lugar enquanto permaneça a mesma sua natureza. Diz-se contudo natural o
movimento do corpo celeste não pelo princípio ativo do movimento, mas pelo
próprio móvel que tem aptidão para mover-se assim. Resta portanto que o
movimento do corpo celeste proceda de algum intelecto.
Como todavia o intelecto não move
senão com intenção do fim, é necessário considerar qual seja o fim do movimento
dos corpos celestes. Não pode dizer-se, porém, que o movimento mesmo seja o
fim: o movimento, com efeito, por ser via para a perfeição, não tem razão de
fim, mas antes do que é para o fim. Semelhantemente, ademais, não pode dizer-se
que a mudança de lugar seja o fim do movimento do corpo celeste, de modo que
por este movimento o corpo celeste adquira em ato todo e qualquer lugar para o
qual está em potência, porque isto é infinito, mas o infinito repugna à razão
de fim. É necessário, portanto, considerar a partir disso o fim do movimento do
céu. É manifesto, com efeito, que todo e qualquer corpo movido pelo intelecto é
instrumento seu. Mas o fim do movimento do instrumento é a forma concebida pelo
agente principal, que eduz a ato pelo movimento do instrumento. No entanto, a
forma do intelecto divino que pelo movimento do céu se completa é a perfeição
das coisas por via de geração e de corrupção. Ora, o fim último da geração e da
corrupção é a nobilíssima forma que é a alma humana, cujo fim último é a vida
eterna, como acima se mostrou [c. 104 ss.]. Por conseguinte, o fim último do
movimento do céu é a multiplicação dos homens em direção à vida eterna. Esta
multidão, porém, não pode ser infinita, porque a intenção de qualquer intelecto
se detém em algo finito. Completado pois o número de homens em direção à vida
eterna, e constituídos eles na vida eterna, cessará o movimento do céu, assim
como o movimento de qualquer instrumento cessa depois de perfeita a obra.
Cessando contudo o movimento do céu, cessará por conseguinte todo e qualquer
movimento nos corpos inferiores, à exceção do movimento que haverá nos homens a
partir da alma: e assim todo o universo corpóreo terá outra disposição e outra
forma, segundo aquilo do Apóstolo na Primeira Carta aos Coríntios (7, 31): “A
figura deste mundo passa”.[8]»
[2] Dizem-se
mistos por compostos de elementos e em comparação aos corpos celestes, isentos
de composição e de contrariedade. Vide
o apêndice 1 da apresentação.
[3] Vide ainda o apêndice 1 da apresentação.
– Basta porém que se substituam por quaisquer outros os antigos quatro
elementos para ver que se mantém irretorquível o dito aqui pelo nosso Doutor.
[4] Ou seja,
ordenam-se essencialmente.
[6] Dĕcor, ōris: aqui, adorno, harmonia, beleza.
[7] Ou pesados.
[8] Além da
profundidade propriamente teológica deste capítulo, a nada dele podem obstar as
descobertas físicas posteriores se se fazem as devidas precisões, não só aliás
ao dito pelo nosso Doutor, mas ainda e sobretudo ao dito pela Física média
desde o Renascimento. Algo disto já fazemos no apêndice 1 da apresentação; mas
desde já há que dizê-lo: não se pode afirmar que tal mudança da figura deste
mundo sucederá, dentro de bilhões de anos, pela morte térmica do universo
ocasionada por sua entropia, segundo a tese de Eddington, de Wulf, de Chwolson,
de Boltzmann e de outros (cf. José María
Riaza Morales, S.J., El comienzo del mundo, 2ª. ed., B.A.C.,
Madri, 1964, p. 628 ss.). Seguir-se-á à completação do número dos eleitos e,
pois, da intenção de Deus. Como o fará este, ou seja, se se valerá ou não de
causas naturais segundas para tão radical mudança, isso não nos é dado saber.
Mas descrer da possibilidade de que tal se dê por imediata intervenção
sobrenatural é incorrer em naturalismo e, ipso
facto, excluir-se do teológico.