sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Questões acerca do Novo Testamento (II): “O que ensina nossa Santa Religião acerca da eternidade na seguinte questão: Habitarão os cinco reinos da natureza neste Planeta depois do Fim do Mundo?”


Carlos Nougué


“O que ensina nossa Santa Religião acerca da eternidade
na seguinte questão: Habitarão os cinco reinos da natureza
neste Planeta depois do Fim do Mundo?”

I) Antes de tudo, falando propriamente, eternidade só a de Deus, e isso é assim porque, como diz Boécio (em De consolat., V, prosa 6), “a eternidade é a posse simultaneamente total e perfeita de uma vida interminável”. E só Deus tem tal posse.
II) Mas pode dizer-se que alguma criatura seja de certo modo eterna (ou perdurável) no tempo (os homens íntegros depois da ressurreição, por milagre) ou no evo (as almas separadas do corpo e os anjos, por natureza), enquanto Deus está acima do tempo e do evo. Por isso se diz no Credo: “creio na vida eterna” (ou perdurable [perdurável] em espanhol) que se dará depois da ressurreição da carne.
III) Quanto a como será o mundo com o fim dos tempos, quem mais e melhor o estudou e expôs foi Santo Tomás de Aquino (em especial em seu Compêndio de Teologia).[1] Transcrevo-o:

«Capítulo 169

O homem será então renovado,
bem como a criatura corpórea

É manifesto, no entanto, que as coisas que são para o fim se dispõem segundo a existência do fim, razão por que, se aquilo para o que são as outras coisas varia segundo o perfeito e o imperfeito, é necessário que as que se ordenam a ele se disponham de modo diverso, de sorte que o sirvam segundo um ou outro estado: com efeito, a comida e a roupa preparam-se de uma maneira para a criança e de outra maneira para o adulto. Ora, mostrou-se acima [c. 148] que a criatura corpórea se ordena à natureza racional como a seu fim. É necessário portanto que, ao receber o homem a última perfeição pela ressurreição, a criatura corpórea receba um estado diverso, e diz-se segundo isto que o mundo se renovará com o homem ressurgente, segundo aquilo do Apocalipse (21, 1): “Vi um céu novo e uma terra nova”, e segundo aquilo de Isaías (65, 17): “Eis que crio novos céus e novas terras”.

Capítulo 170

Que criaturas se renovarão, e
que criaturas permanecerão

Deve porém considerar-se que os diversos gêneros de criaturas corpóreas se ordenam ao homem segundo razão diversa. É manifesto, com efeito, que as plantas e os animais servem ao homem em auxílio de sua fraqueza, enquanto este tem deles alimento, roupa e transporte e outras coisas que tais, com as quais se sustenta a fraqueza humana. No estado último, no entanto, tirar-se-á do homem pela ressurreição toda essa fraqueza: com efeito, os homens então já não necessitarão de alimentos para nutrir-se, por serem incorruptos, como se mostrou acima [c. 155]; nem de roupas para cobrir-se, dado que se vestirão da glória da claridade; nem de animais para transporte, porque terão agilidade; nem de nenhum remédio para conservar a saúde, dado que serão impassíveis. Logo, é conveniente que nesse estado de consumação última não permaneçam tais criaturas corpóreas, ou seja, as plantas, os animais e os outros corpos mistos.[2]
Mas os quatro elementos, ou seja, o fogo, o ar, a água e a terra, ordenam-se ao homem não só quanto ao uso da vida corruptível, mas também quanto à constituição de seu corpo: porque o corpo humano é constituído dos elementos. Os elementos, portanto, têm ordem essencial ao corpo humano. Por isso, consumado o homem em corpo e em alma, é conveniente que também os elementos permaneçam, mas mudados em melhor disposição.[3]
E, se os corpos celestes, quanto à sua substância, nem são assumidos pelo homem para a vida corruptível nem entram na substância do corpo humano, servem porém ao homem enquanto por sua beleza e por sua grandeza demonstram a excelência de seu criador: daí que frequentemente nas Escrituras se mova o homem a considerar os corpos celestes para que deles seja conduzido à reverência divina, como se vê em Isaías (40, 26): “Levantai os olhos para o alto e vede quem criou estas coisas”. E, conquanto no estado de tal perfeição o homem não seja levado ao conhecimento de Deus a partir das criaturas sensíveis, porque vê a Deus nele mesmo, é porém deleitável e também jucundo para o que conhece a causa considerar de que modo sua semelhança resplandece no efeito: por isso, aos santos entrega-os ao gáudio considerar a refulgência da bondade divina nos corpos, e precipuamente os celestes, que vemos ter preeminência sobre os demais. Ademais, os corpos celestes têm de algum modo ordem essencial[4] ao corpo humano segundo a razão de causa agente, assim como os elementos segundo a razão de causa material. Com efeito, o homem, juntamente com o sol, gera o homem:[5] e também por esta razão convém que os corpos celestes permaneçam.
Isto todavia aparece não só da comparação das referidas criaturas corpóreas ao homem, mas ainda de sua natureza. Com efeito, o que segundo nada seu é incorruptível não deve permanecer em tal estado de incorrupção. Mas os corpos celestes são incorruptíveis segundo o todo e a parte; os elementos segundo o todo, mas não segundo a parte; os homens, por sua vez, segundo a parte, ou seja, segundo a alma racional, mas não segundo o todo, porque o composto se dissolve pela morte; já os outros animais e as plantas e todos os corpos mistos não são incorruptíveis segundo o todo nem segundo a parte. Convenientemente, portanto, em tal estado último de incorrupção permanecerão os homens e os elementos e os corpos celestes, mas não os animais, nem as plantas, nem os [demais] corpos mistos.
Razoavelmente, ademais, aparece o mesmo da razão do universo. Como, com efeito, o homem é parte do universo corpóreo, na última consumação do homem é necessário que permaneça o universo corpóreo: certamente não parece que a parte seja perfeita se for sem o todo. Mas o universo corpóreo não pode permanecer sem que permaneçam suas partes essenciais. São todavia partes essenciais suas os corpos celestes e os elementos, já que neles consiste toda a máquina do mundo; os demais, porém, não parece pertencerem à integridade do universo corpóreo, mas antes a certo ornato e decor[6] seu que compete ao estado de mutabilidade, enquanto do corpo celeste como agente e dos elementos como materiais se geram os animais e as plantas e os corpos minerais. Ora, no estado da última consumação se conferirá aos elementos outro ornato, que convenha ao estado de incorrupção. Neste estado, portanto, permanecerão os homens e os elementos e os corpos celestes, mas não os animais, nem as plantas, nem os corpos minerais.

Capítulo 171

Os corpos celestes deixarão de mover-se

Como todavia vemos os corpos celestes mover-se continuamente, pode alguém pensar que, se permanece sua substância, então em tal estado de consumação também se hão de mover. E, com efeito, se valesse para os corpos celestes a razão que vale para os elementos, tal parecer seria razoável. Sem dúvida, o movimento nos elementos graves[7] ou leves existe para que se consiga sua perfeição. Certamente, tendem por seu movimento natural a seu lugar próprio, onde é melhor que estejam: daí que em tal estado último de consumação cada elemento e cada parte sua estarão em seu lugar próprio. Ora, não se pode dizer o mesmo do movimento dos corpos celestes, porque o corpo celeste não repousa em nenhum lugar alcançado, senão que, assim como naturalmente se movem a algum lugar, assim também naturalmente saem dele. Logo, os corpos celestes não perdem nada se se suprime seu movimento, já que seu movimento não existe para que se perfaçam. Mas é ridículo dizer que, assim como o corpo leve por sua natureza se move para cima, assim também o corpo celeste por sua natureza se move circularmente como por um princípio ativo. É manifesto, com efeito, que a natureza sempre tende ao uno: daí que o que de sua razão repugna à unidade não possa ser o fim último da natureza. Mas o movimento repugna à unidade, na medida em que o que se move se tem de um e de outro modo enquanto se move. A natureza, portanto, não produz o movimento por ele mesmo, senão que o causa tendendo ao termo do movimento, assim como a natureza leve tende ao lugar alto ascendendo, e o mesmo dos demais. Como pois o movimento circular dos corpos celestes não se faz para nenhum lugar determinado, não se pode dizer que a natureza seja o princípio ativo do movimento circular dos corpos celestes, como é princípio do movimento dos graves e dos leves. Por isso, permanecendo embora a mesma a natureza do corpo celeste, nada proíbe que ele repouse, ainda que ao fogo seja impossível repousar fora de seu próprio lugar enquanto permaneça a mesma sua natureza. Diz-se contudo natural o movimento do corpo celeste não pelo princípio ativo do movimento, mas pelo próprio móvel que tem aptidão para mover-se assim. Resta portanto que o movimento do corpo celeste proceda de algum intelecto.
Como todavia o intelecto não move senão com intenção do fim, é necessário considerar qual seja o fim do movimento dos corpos celestes. Não pode dizer-se, porém, que o movimento mesmo seja o fim: o movimento, com efeito, por ser via para a perfeição, não tem razão de fim, mas antes do que é para o fim. Semelhantemente, ademais, não pode dizer-se que a mudança de lugar seja o fim do movimento do corpo celeste, de modo que por este movimento o corpo celeste adquira em ato todo e qualquer lugar para o qual está em potência, porque isto é infinito, mas o infinito repugna à razão de fim. É necessário, portanto, considerar a partir disso o fim do movimento do céu. É manifesto, com efeito, que todo e qualquer corpo movido pelo intelecto é instrumento seu. Mas o fim do movimento do instrumento é a forma concebida pelo agente principal, que eduz a ato pelo movimento do instrumento. No entanto, a forma do intelecto divino que pelo movimento do céu se completa é a perfeição das coisas por via de geração e de corrupção. Ora, o fim último da geração e da corrupção é a nobilíssima forma que é a alma humana, cujo fim último é a vida eterna, como acima se mostrou [c. 104 ss.]. Por conseguinte, o fim último do movimento do céu é a multiplicação dos homens em direção à vida eterna. Esta multidão, porém, não pode ser infinita, porque a intenção de qualquer intelecto se detém em algo finito. Completado pois o número de homens em direção à vida eterna, e constituídos eles na vida eterna, cessará o movimento do céu, assim como o movimento de qualquer instrumento cessa depois de perfeita a obra. Cessando contudo o movimento do céu, cessará por conseguinte todo e qualquer movimento nos corpos inferiores, à exceção do movimento que haverá nos homens a partir da alma: e assim todo o universo corpóreo terá outra disposição e outra forma, segundo aquilo do Apóstolo na Primeira Carta aos Coríntios (7, 31): “A figura deste mundo passa”.[8]»



[1] Tradução, notas e apresentação Carlos Nougué, Porto Alegre, Editora Concreta, 2015.
[2] Dizem-se mistos por compostos de elementos e em comparação aos corpos celestes, isentos de composição e de contrariedade. Vide o apêndice 1 da apresentação.
[3] Vide ainda o apêndice 1 da apresentação. – Basta porém que se substituam por quaisquer outros os antigos quatro elementos para ver que se mantém irretorquível o dito aqui pelo nosso Doutor.
[4] Ou seja, ordenam-se essencialmente.
[5] Aristóteles, Phys., l. 2, c. 2, n. 11 (Bk 194 b 1).
[6] Dĕcor, ōris: aqui, adorno, harmonia, beleza.
[7] Ou pesados.
[8] Além da profundidade propriamente teológica deste capítulo, a nada dele podem obstar as descobertas físicas posteriores se se fazem as devidas precisões, não só aliás ao dito pelo nosso Doutor, mas ainda e sobretudo ao dito pela Física média desde o Renascimento. Algo disto já fazemos no apêndice 1 da apresentação; mas desde já há que dizê-lo: não se pode afirmar que tal mudança da figura deste mundo sucederá, dentro de bilhões de anos, pela morte térmica do universo ocasionada por sua entropia, segundo a tese de Eddington, de Wulf, de Chwolson, de Boltzmann e de outros (cf. José María Riaza Morales, S.J., El comienzo del mundo, 2ª. ed., B.A.C., Madri, 1964, p. 628 ss.). Seguir-se-á à completação do número dos eleitos e, pois, da intenção de Deus. Como o fará este, ou seja, se se valerá ou não de causas naturais segundas para tão radical mudança, isso não nos é dado saber. Mas descrer da possibilidade de que tal se dê por imediata intervenção sobrenatural é incorrer em naturalismo e, ipso facto, excluir-se do teológico.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

“Dos Juízos dos Astros”, opúsculo de Santo Tomás de Aquino


Tradução
Carlos Nougué

Porque me pediste que escrevesse se é lícito recorrer aos juízos dos astros, e querendo satisfazer teu pedido, tratei de escrever o que nos foi transmitido sobre isto pelos sacros doutores.
Em primeiro lugar, portanto, é-te necessário saber que a virtude dos corpos celestes se estende a imutar [modificar] os corpos inferiores. Diz com efeito Agostinho, no livro V de Da Cidade de Deus: “não de todo absurdamente pode dizer-se que certos influxos sidéreos são suficientes só para diferenças dos corpos”. E assim, se se recorre aos julgamentos dos astros para conhecer antecipadamente efeitos corporais, como, por exemplo, tempestade e serenidade do ar, saúde ou enfermidade do corpo, ou abundância e esterilidade dos frutos, e coisas assim que dependem de causas corporais e naturais, parece não haver nenhum pecado. Pois todos os homens, acerca de semelhantes efeitos, se utilizam de alguma observação dos corpos celestes: assim, os agricultores semeiam e colhem em certo tempo, que se observa segundo o movimento do sol; os marinheiros evitam navegações no plenilúnio, ou no eclipse da lua; os médicos, com respeito às doenças, observam dias críticos, que são determinados segundo o curso do sol e da lua. Por isso não é inconveniente recorrer, segundo outras observações mais ocultas das estrelas, ao juízo dos astros com respeito a efeitos corporais.
É necessário todavia manter totalmente que a vontade do homem não está sujeita à necessidade dos astros; sem isso pereceria o livre-arbítrio: e, supresso este, nem se atribuiria ao homem o mérito das boas obras, nem se lhe atribuiria a culpa das más. E por isso todo cristão deve sustentar certissimamente que tudo o que depende da vontade do homem, como é o caso de toda e qualquer obra humana, não se sujeita à necessidade dos astros: e por isso se diz em Jeremias X, 2: “não temais os sinais do céu, como temem os gentios”.
Mas o diabo, para arrastar todos ao erro, imiscui-se em suas obras que têm respeito aos juízos dos astros. E por isso diz Agostinho em II [17] de Super Gen. ad litteram: “deve reconhecer-se que, quando coisas verdadeiras são ditas pelos astrólogos, são ditas por impulso de algo ocultíssimo, que ignorantes mentes humanas padecem: o que, como se faz para enganar os homens, é uma operação de espíritos imundos e sedutores, aos quais se permite conhecer coisas verdadeiras das coisas temporais”. E por isso diz Agostinho no livro II de De doctrina Christiana [II, 23] que semelhantes observações dos astros se relacionam a certos pactos tidos com os demônios. Mas o cristão deve evitar totalmente ter pacto ou sociedade com o demônio, segundo aquilo do Apóstolo em I Coríntios X, 20: “Eu não quero que vos torneis sócios dos demônios”. E assim deve ter-se por certo que é pecado grave recorrer aos juízos dos astros com respeito às coisas que dependem da vontade do homem.      

*  *  *

Sancti Thomae de Aquino
De iudiciis astrorum

Quia petisti ut tibi scriberem an liceret iudiciis astrorum uti, tuae petitioni satisfacere uolens, super ea quae a sacris doctoribus traduntur, scribere curaui.
In primis ergo oportet te scire quod uirtus celestium corporum ad immutanda inferiora corpora se extendit. Dicit enim Augustinus V De ciuitate Dei Non usquequaque absurde dici potest ad solas corporum differentias afflatus quosdam sydereos peruenire. Et ideo, si aliquis iudiciis astrorum utatur ad prenoscendum corporales effectus, puta tempestatem et serenitatem aeris, sanitatem uel infirmitatem corporis, uel ubertatem et sterilitatem fructuum, et cetera huiusmodi que ex corporalibus et naturalibus causis dependent, nullum uidetur esse peccatum. Nam omnes homines circa huiusmodi effectus aliqua obseruatione utuntur celestium corporum: sicut agricole seminant et metunt certo tempore quod obseruatur secundum motum solis; naute nauigationes uitant in plenilunio, uel in lune defectu; medici circa egritudines creticos dies obseruant, qui determinantur secundum cursum solis et lune. Vnde non est inconueniens, secundum aliquas alias occultiores obseruationes stellarum, circa corporales effectus uti astrorum iudicio. 
Hoc autem omnino tenere oportet, quod uoluntas hominis non est subiecta necessitati astrorum; alioquin periret liberum arbitrium, quo sublato non deputarentur homini neque bona opera ad meritum, neque mala ad culpam. Et ideo certissime tenendum est cuilibet christiano, quod ea que ex uoluntate hominis dependent, qualia sunt omnia humana opera, non ex necessitate astris subduntur; et ideo dicitur Ier. x A signis celi nolite metuere que gentes timent.
Sed dyabolus, ut omnes pertrahat in errorem, immiscet se operibus eorum qui iudiciis astrorum intendunt ; et ideo Augustinus dicit in II Super Genesim ad litteram Fatendum, quando ab astrologis uera dicuntur, instinctu quodam occultissimo dici, quem nescientes humane mentes patiuntur; quod cum ad decipiendos homines fit, spirituum immundorum et seductorum operatio est, quibus quedam uera de temporalibus rebus nosse permittitur. Et ideo Augustinus dicit in II De doctrina christiana quod huiusmodi obseruationes astrorum referende sunt ad quedam pacta cum demonibus habita. Est autem omnino christiano uitandum pactum uel societatem cum demonibus habere, secundum illud Apostoli I Cor. x Nolo uos fieri socios demoniorum. Et ideo pro certo tenendum est graue peccatum esse, circa ea que a uoluntate hominis dependent iudicio astrorum uti.

Desejo-lhes a todos um novo ano repleto de progressos espirituais.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Questões acerca do Novo Testamento (I): “Que significado tem a frase ‘Rasgou-se o véu do templo’?”


Carlos Nougué

“Que significado tem a frase 
‘Rasgou-se o véu do templo?’”

I) Antes de tudo, a frase encontra-se nos três Evangelhos ditos sinópticos (Mt 27, 51; Mc 15, 38; Lc 23, 45), ainda que de modo ligeiramente diferente.
II) Sobre Mateus 27, 51 (“E eis que o véu do templo se rasgou em duas partes de alto a baixo”):
«Orígenes (In Matth.): Grandes acontecimentos seguiram-se a este alto grito lançado por Jesus: “E eis que o véu do templo se rasgou em duas partes de alto a baixo”. — Agostinho (De Cons. Evang, 3, 10): Estas palavras provam suficientemente que o véu se rasgou no momento mesmo em que Jesus rendeu o espírito. Se o Evangelista não tivesse dito: “E eis que”, mas simplesmente: O véu do tempo rasgou-se, poder-se-ia dizer com justeza se Mateus e Marcos não fazem senão resumir suas lembranças, enquanto Lucas segue em seu relato a ordem natural dos fatos dizendo: “E escureceu-se o sol ”, e imediatamente depois: “E rasgou-se o véu do templo”; ou se Lucas resume o que os dois primeiros relatam em ordem cronológica”. — Orígenes (In Matth.): Havia dois véus, um que fechava o Santo dos Santos [cf. Ex 26, 14; Nb 4, 4; 3R 3, 50; 8,6], e o outro, no exterior, diante do templo, ou diante do tabernáculo. No momento em que o Salvador expirou, o véu exterior rasgou-se de alto a baixo, para significar que os mistérios que se tinham mantido ocultos segundo os desígnios da sabedoria de Deus desde o princípio do mundo até ao advento do Salvador iam ser revelados de uma extremidade da terra à outra. Quando porém vier o estado perfeito, então o segundo véu igualmente se rasgará, para que possamos ver o que está oculto no interior, ou seja, a verdadeira arca do Testamento, e os querubins e as outras maravilhas do céu em sua própria natureza. — Hilário (In Matth.): Ou então o véu do templo se rasgou porque, a partir desse momento, o povo se divide em duas partes, e porque a glória desse véu desaparece com o anjo que o cobria com sua proteção.»
III) Sobre Marcos 15, 38 (“E o véu do templo rasgou-se em duas partes, de alto a baixo”):
Glosa: Depois de ter narrado a paixão e a morte do Salvador, o Evangelista passa ao relato dos acontecimentos que se seguiram à sua morte: (“E o véu do templo rasgou-se em duas partes, de alto a baixo”. — Jerônimo: O véu do templo que se rasgou é o céu que se abre. — Teofilacto: Deus permite que o véu se rasgue a fim de significar que a graça do Espírito Santo se afastava e se separava do templo para descobrir aos olhos de todos os segredos do santo dos santos, e também que o templo ficaria desolado quando os judeus deplorassem as calamidades e rasgassem seus vestidos. Esse véu também figura o templo vivo do corpo de Jesus Cristo, que, em sua paixão, viu seus vestidos, quer dizer, seu corpo rasgado. Há ainda outro significado: nossa carne é o véu de nosso templo, isto é, de nossa alma. Ora, o poder da carne na paixão de Jesus Cristo foi rasgado e destruído de alto a baixo, quer dizer, desde Adão até ao último rebento de sua posteridade. Com efeito, Adão é salvo pela paixão de Jesus Cristo, sua carne já não permanece sob a maldição, já não está sujeita à corrupção, senão que recebe ao mesmo tempo o dom da incorruptibilidade. “E o centurião vendo, etc.” O centurião é o oficial que comandava um centena de homens. À vista de Jesus expirando com tanta potestade e domínio, admirou-se e confessou sua divindade.»
IV) Sobre Lucas 23, 45 (“e rasgou-se pelo meio o véu do templo”):
«Beda: A este milagre, Lucas acrescenta outro: “e rasgou-se pelo meio o véu do templo”. Foi no momento mesmo em que Jesus expirou que se deu este prodígio, como o relatam Mateus e Marcos; Lucas situa-o aqui por antecipação. — Teofilacto: O Senhor anunciava assim que doravante o santo dos santos já não estaria inacessível, que seria entregue às profanações dos romanos, e que sua entrada estaria aberta a todos. — Ambrósio: O véu do templo rasgou-se também para figurar a divisão dos dois povos, e a profanação da sinagoga. O véu antigo rasga-se para deixar a Igreja desdobrar e suspender os véus novos da fé cristã. O véu da sinagoga desaparece para permitir-nos ver com os olhos de nossa alma os profundos mistérios da religião. Teofilacto: Por isso também se mostra que se rasgou o véu que nos separava dos mistérios do céu, isto é, a inimizade entre Deus e o pecado.»
V) Excurso 1. Como o mostra Santo Tomás de Aquino (cf. Suma Teológica I, q. 1, a. 10, c.), o autor das Escrituras é Deus mesmo, e, para significar algo, ele pode empregar não somente palavras – o que também o homem faz –, mas as coisas mesmas. Só as Escrituras têm como próprio que as próprias coisas significadas pelas palavras também possam significar algo. A primeira significação, ou seja, aquela segunda a qual as palavras significam algo, constitui o sentido literal ou histórico das Escrituras, enquanto a significação pela qual as próprias coisas significadas pelas palavras designam, por sua vez, outras coisas é o sentido chamado espiritual. Este segundo sentido, todavia, se funda no sentido literal ou o pressupõe.
Mas o sentido espiritual subdivide-se por sua vez. Com efeito, diz o Apóstolo (cf. Epístola aos Hebreus) que a lei antiga é figura da lei nova, enquanto a lei nova, como diz Dionísio Areopagita, é figura da glória futura. Na lei nova, ademais, o que se cumpriu na cabeça é figura do que devemos fazer.
1. Assim, quando nas Escrituras as coisas da lei antiga significam as da lei nova, tem-se o sentido alegórico.
2. Quando, por outro lado, as coisas sucedidas em Cristo, ou no que Cristo representa, são sinal do que havemos de fazer, tem-se então o sentido moral.
3. Quando, enfim, estas mesmas coisas significam as coisas da glória eterna, então se tem o sentido anagógico.
Como, todavia, o sentido literal é justamente o que o autor quer significar, e como, repita-se, o autor mesmo das Escrituras é Deus, que intelige simultaneamente todas as coisas, não há inconveniente algum em que, como o diz Santo Agostinho, em um mesmo texto das Escrituras se encontrem vários sentidos, sempre, insista-se, segundo o sentido literal ou histórico ou em ordem a este.
VI) Excurso 2. Há que entender adequadamente, no entanto, o que aqui se chama literalLiteral tem aqui exatamente o sentido de à letra (ad litteram), ou seja, segundo a letra. Mas a letra pode ser também de alguma analogia de proporcionalidade imprópria, ou seja, de alguma metáfora, ou de alguma figura aparentada à metáfora: símile, metonímia, sinédoque, hipérbole, etc. É o que se chama sentido parabólico, que, di-lo Santo Tomás de Aquino (Suma Teológica I, q. 1, a. 10, ad 3), “está contido sob o sentido literal: porque pelas palavras podemos significar algo em sentido próprio ou em sentido figurado [ou seja, por analogia de proporcionalidade imprópria, como dito]; neste último caso, o sentido literal não designa a própria figura, mas o que ela figura [ou representa]. Com efeito, quando as Escrituras falam do braço de Deus, o sentido literal não indica que haja um membro corporal em Deus, senão que indica o que é significado por esse membro, no caso a virtude operativa [divina]. Isso patenteia que o sentido literal das Sagradas Escrituras não pode nunca padecer nada falso” (destaque nosso).
E, com efeito, afora casos eventuais de defeito de cópia, as Sagradas Escrituras não podem conter erro algum: justamente porque Deus, seu autor, é inerrante, enquanto o hagiógrafo ou escritor sagrado não é senão o instrumento de que se vale Deus de modo, insista-se, inerrante.* Mas o dito mais acima há de prevenir-nos contra um exagero interpretativo, no qual nunca incorrem os Padres, nem Santo Tomás, nem, muito menos, o magistério da Igreja: o de considerar que o sentido literal nunca pode ser metafórico, e assim julgar que as palavras das Escrituras têm caráter de um como tratado científico. Não o têm. Vejamos alguns exemplos.
• Conquanto o Gênesis encerre todos os principais caracteres metafísicos da criação do mundo (criação no tempo e de nada [ex nihilo], ordem da criação, culminação no homem, etc.), nele Deus, por intermédio do instrumento Moisés, se vale de imagens sensíveis, e isso é assim porque, como diz, entre outros, Santo Tomás de Aquino, o Gênesis foi escrito para “um povo rude” que, no entanto, precisava educar-se na fé em ordem a ser aquele de onde nasceria o Messias. É por essa razão, aliás, que Santo Tomás de Aquino, ao tratar na Suma Teológica dos Dias da Criação, suspende o juízo quanto ao número destes e apenas expõe as diversas interpretações dos Padres.** – Atenção, porém: mostrar algo mediante imagens sensíveis não equivale a valer-se de “erros”, porque, com efeito, em seu mesmo âmbito e especialmente quanto a seu objeto próprio, os sentidos não erram. Os sentidos conhecem de fato (sensivelmente, insista-se), conquanto não possam saber, o que é próprio do intelecto.  
• Ademais, não há erro algum no dito em Jó 20, 26, ou seja, que a víbora mata pela língua: trata-se de perfeita metáfora; assim como não há erro algum em dizer que o grão ou semente de mostarda é a menor de todas: trata-se de hipérbole (ou talvez se diga segundo a agricultura de então).
Mas, insista-se, que não haja nem possa haver erro algum nas Escrituras não implica que estas se componham de tratados científicos.

VI) Para que se confirme quão despropositado e indevido é dar exegese contrária à dada pela Igreja e pelos Padres, transcrevo dois decretos dogmáticos sobre a interpretação das Escrituras:

a) Concílio de Trento
“Decreta também com a finalidade de conter os ingênuos insolentes que ninguém, confiando em sua própria sabedoria, se atreva a interpretar a Sagrada Escritura em coisas pertencentes à fé e aos costumes que visam à propagação da doutrina Cristã, violando a Sagrada Escritura para apoiar suas opiniões, contra o sentido que lhe foi dado pela Santa Amada Igreja Católica, da qual é de exclusividade determinar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Letras; nem contra o unânime consentimento dos santos Padres, ainda que em nenhum tempo se venham dar ao conhecimento estas interpretações” (Sessão IV).
b) Concílio Vaticano I
“Todavia, já que o salutar decreto dado pelo Concílio Tridentino sobre a interpretação da Sagrada Escritura para corrigir espíritos petulantes é erradamente exposto por alguns, Nós, renovando o mesmo decreto, declaramos que seu sentido é que, nas coisas da fé e da moral, pertencentes à estrutura da doutrina cristã, deve ter-se por verdadeiro sentido da Sagrada Escritura aquele que foi e é mantido pela Santa Madre Igreja, a quem compete decidir quanto ao verdadeiro sentido e à interpretação da Sagrada Escritura; e que, por conseguinte, a ninguém é permitido interpretar a mesma Sagrada Escritura contrariamente a este sentido nem contra o consenso unânime dos Santos Padres” (Decretos Dogmáticos do Concílio Vaticano I, cap. 2).



* Se o hagiógrafo, enquanto instrumento de Deus, é absolutamente inerrante, o papa, enquanto assistido pelo Espírito, é infalível. Por um ângulo, ser inerrante é mais que ser infalível; mas, por outro ângulo, como o magistério do papa enquanto assistido pelo Espírito é a regra próxima da fé (ao passo que as Escrituras são regra remota da fé), este magistério está de certa maneira acima da mesma fé e é o intérprete infalível e último das mesmas Escrituras.
** E, com efeito, nunca o magistério definiu a questão. Como, ademais, os Padres não chegaram quanto a este ponto a consentimento unânime, então nos é lícito adotar esta ou aquela posição a este respeito, ou suspender o juízo como Santo Tomás de Aquino – desde que não se neguem os referidos caracteres metafísicos, e muito especialmente o relato de Adão e Eva, o qual, como sempre disse o magistério, há de tomar-se de todo historicamente.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Poland against Islam - Manifestation in Wroclaw


Contra o Império do Mal.
Contra o liberalismo, a democracia liberal e os "media" liberais.
Contra a invasão islâmica.
Contra as leis de proteção e de estímulo do que vai contra a natureza.
Contra a postura da atual hierarquia católica, que apoia todo o anterior.
Pela Fé.
Pela Igreja.
Por Cristo Rei.
Deus, honra, nação!
Viva a Polônia!

É tudo isso o que em resumo diz essa verdadeira e tão jovem católica. 
Que sirva de lição aos católicos brasileiros.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Os mártires de nossos dias


“Em nossos dias, povos inteiros do Oriente Médio são assassinados por ser cristãos. Igreja Martirial em pleno século XXI! E são gente como nós, com suas limitações e fraquezas, mas que sem titubear preferem submeter-se ao golpe da espada a renegar sua fé. E os que temos a possibilidade de compartilhar com eles a vida quotidiana em nossas missões, na Síria e no Iraque, consideramos isto um privilégio. Contemplemos estes irmãos nossos: são os ‘Nazarenos’. De que nos adianta tão somente lamentar sua sorte? Estão indicando-nos o caminho. Não tenhamos medo de imitar sua coragem e de viver também nós com os olhos cravados no Céu.” 

Irmã Maria de Guadalupe, missionária em Alepo, Síria – Família Religiosa do Verbo Encarnado

sábado, 10 de dezembro de 2016

A moral conjugal segundo o "Comentário aos Dois Preceitos da Caridade e aos Dez Mandamentos da Lei", de Santo Tomás de Aquino


O que se lerá aqui são extratos do referido comentário, a saber, os mais diretamente relacionados à moral conjugal. Quanto ao Comentário como um todo e quanto à sua tradução que aqui reproduzo, entrego a palavra a Omayr José de Moraes Junior:
“O Comentário aos Dois Preceitos da Caridade e aos Dez Mandamentos da Lei, de Santo Tomás de Aquino, tem sua origem nas pregações do Santo Doutor, realizadas em Nápoles, durante exercícios quaresmais do ano de 1273. Proferidas originalmente em dialeto local, e tendo sido anotadas por Pedro de Ândria, confrade do Angélico, estas Collationes ganharam posterior redação latina, da qual procedem os manuscritos.
Este Comentário fez-se preceder, na mesma ocasião, de outros dois congêneres, a saber, um referente ao Credo e o outro ao Pai-Nosso, que formam uma trilogia cujo fundamento repousa sobre as três virtudes teologais — a fé, a esperança e a caridade. A regra áurea que preside toda a explanação é a mesma que nos legou Jesus Cristo: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e ao teu próximo como a ti mesmo.
A tradução que o leitor tem mãos é de Braz Florentino Henriques de Souza, e veio a lume na cidade do Recife, pela Typographia Academica de Miranda & Vasconcellos, no ano de 1858. E aqui faz-se necessário notar que, se nem sempre é muito precisa a escolha dos termos realizada pelo jurista pernambucano — que deu maior preferência ao floreio do estilo à exatidão da palavra — o texto, contudo, nada encerra que desautorize sua reedição.
Pregando ao povo que acorria à catedral ou à capela dos frades dominicanos, esta terá sido das últimas ocasiões em que Santo Tomás, ausentando-se um pouco do meio acadêmico, que era o seu habitual, pôde mais diretamente exercer o ministério da Palavra junto aos fiéis. No ano seguinte, tendo deixado Nápoles rumo ao concílio de Lion, o Angélico, colhido pela Providência, não cumpriu outra Quaresma em que pregasse as maravilhas antigas e novas do tesouro inefável da Revelação divina, expirando no 7 de março de 1274.”
Entre o texto de Tomás, incluirei notas complementares, sempre entre colchetes.

Carlos Nougué

*  *  *

Os Graus de Autoridade nos Atos do Magistério da Igreja


Nota prévia de C. N. Todo o luminoso trecho que se transcreve abaixo é do Pe. Álvaro Calderón, em A Candeia Debaixo do Alqueire. – Ademais, como o debate entre o Prof. Carlos Ramalhete e mim se vai postergando, voltarei a tratar por escrito o tema. Isso sem detrimento de um futuro debate: assim que o professor se sentir em condições para tal, e se não sobrevier nenhum outro problema, realizar-se-á.

«I . Os graus de autoridade nos atos de magistério

Existência. Como se demonstra na primeira objeção, não só o magistério infalível é assistido pelo Espírito Santo, mas também o magistério simplesmente autêntico, que portanto exige dos fiéis religiosa submissão do intelecto; mas a assistência do Espírito Santo é comprometida em diversos graus, segundo a natureza dos diversos atos magisteriais. O autorizado esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II, em seu capítulo sobre o Magistério eclesiástico (frequentemente citado nas objeções), considera doutrina católica certa que o magistério simplesmente autêntico se impõe aos fiéis segundo diversos graus de autoridade, que dependem da diversa maneira de expressar-se: “É necessário prestar obediência religiosa da vontade e da inteligência ao magistério autêntico do pontífice romano, mesmo quando não fala ex cathedra, de maneira que seu magistério supremo seja realmente reconhecido, e que se adira sinceramente ao ensinamento que propõe; fazendo-o segundo o espírito e a vontade por ele manifestados [nota], que se reconhecem quer pela matéria dos documentos, quer pela frequência da proposição da mesma doutrina, quer pela maneira de expressar-se”.[1] Na nota dá várias referências e a seguinte citação de Pio XI: “Para que não se privem de uma ajuda dada por Deus com tão generosa bondade, devem necessariamente prestar esta obediência não só às definições solenes da Igreja, mas também, guardando o modo devido – servato modo –, às outras constituições e decretos pelos quais algumas opiniões são proscritas e condenadas como perigosas ou más”.[2]

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Polish Independence Day 2016 Święto Niepodległości - Polônia, o bastião da Europa


Alexander Solzhenitsyn: “Los hombres han olvidado a Dios”



Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008), es recordado como un eminente novelista, escritor e historiador ruso. En palabras del New York Times:
Alexander Solzhenitsyn es un genio literario cuyo talento coincide con el de Dostoievski, Turgueniev, y Tolstoi.” (Edición de Harrison Salisbury: [1]
Este escritor nació poco después de la Revolución Rusa de Octubre, y creció rodeado de propagandas comunistas durante su juventud, por lo cual no es sorprendente que fuera un ateo soviético militante. Pero hoy, su historia es la de un ateo marxista que se convirtió al cristianismo.
Comenzó su carrera estudiando matemáticas y física en la Universidad de Rostov (URSS), donde se graduó en 1941. Durante la época también tomó cursos por correspondencia en el Instituto de Filosofía, Literatura, e Historia de Moscú.
Con la llegada de la Segunda Guerra Mundial, Solzhenitsyn fue elegido comandante de un batallón en el Ejército Rojo. No obstante, en 1945, mientras servía a los soviéticos en la Prusia Oriental, Solzhenitsyn comenzó a darse cuenta de algunos problemas del régimen, y comenzó a cuestionar la conducta de guerra de la dictadura de Joseph Stalin. Pronto sería arrestado por escribir comentarios al respecto en unas cartas privadas a su amigo, Nikolai Vitkevich. La censura en la U.R.S.S. hizo que, al igual que muchísima gente de su época, Solzhenitsyn fuera acusado de “propaganda antisoviética”, y sólo por esto fue llevado a la prisión de Lubyanka en Moscú, donde fue interrogado y finalmente condenado injustamente, obligándosele a trabajar ocho años en un campo de trabajo forzado. 

La historia secreta de Archipiélago Gulag (2008)


Para que não caia no esquecimento um dos maiores homens do século XX - Alexander Soljenitsin: Palabras al recibir el Nobel (fragmento)


quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A Doutrina Platônica do Belo e da Arte segundo Giovanni Reale e Dario Antiseri


A DOUTRINA PLATÔNICA DO BELO E DA ARTE SEGUNDO 
GIOVANNI REALE E DARIO ANTISERI[1]

Carlos Nougué

I. O CONCEITO DE FORMA EM PLATÃO
Para compreender adequadamente o tão controverso conceito platônico de Forma, recorde-se, de início, que os termos gregos para forma são idea e eidos.
O primeiro — idea — não foi traduzido para o latim nem, em consequência, para as línguas novilatinas, mas apenas transliterado, chegando a adquirir no correr dos séculos sentido de todo diverso do original. Com efeito, que significa para o homem de hoje o termo ideia? Significa um conceito, uma noção, um pensamento, uma representação mental. Ora, para o grego em geral, e particularmente para Platão, a Idea não era o pensamento, mas, ao contrário, o objeto do pensamento, o objeto para o qual se dirige o pensamento. Ademais, note-se que idea e eidos provêm de idein, que significa “ver”, e indicam o objeto de ver. Por isso é que, antes de Platão, estes dois termos se empregavam especialmente para expressar a forma visível das coisas, a forma exterior, o que se capta com os olhos — a visão sensível.
A partir de Platão, todavia, passam a empregar-se para exprimir a forma interior das coisas, sua essência. Em decorrência da “Segunda navegação” platônica, isto é, da descoberta do mundo inteligível, a forma se alça do plano físico ao metafísico.[2]  

II. A “SEGUNDA NAVEGAÇÃO” PLATÔNICA
O ponto fundamental da filosofia platônica reside na descoberta da existência de uma realidade suprassensível, de uma dimensão suprafísica do ser, existência nem sequer vislumbrada, anteriormente, pela filosofia da physis. Esta sempre tentara explicar os fenômenos por causas de caráter físico e/ou mecânico (água, terra, ar, fogo, rarefação, condensação, etc.)
Talvez se devesse excetuar, entre os filósofos da physis, Anaxágoras, que intuíra a necessidade de uma Inteligência universal, a partir da qual se poderiam explicar todas as coisas; sucede porém que, como observa o mesmo Platão, aquele filósofo naturalista não soubera levar a termo sua intuição, e acabara por atribuir maior peso a causas físicas tradicionais. Platão, porém, seguindo a rota da intuição do predecessor, interrogava-se: Serão as causas de caráter físico e mecânico as verdadeiras causas, ou constituirão meras “concausas”, quer dizer, causas ao serviço de causas primeiras e mais altas? A causa do que é físico e mecânico não será algo não físico e não mecânico?
Foi para encontrar a resposta a essas indagações que Platão empreendeu o que ele chamou, simbolicamente, a “Segunda navegação” — na antiga linguagem dos homens do mar, chamava-se “segunda navegação” àquela que se dava quando, pela cessação do vento, se recorria aos remos. Na imagem platônica, a “Primeira navegação” se fizera pelo vento da filosofia da physis. Por seu turno, a “Segunda navegação” representava a contribuição do próprio Platão, ou seja, a navegação realizada graças ao impulso de seus próprios “remos”, de suas próprias forças pessoais. A “Primeira navegação” perdera a rota, sem conseguir explicar o sensível pelo próprio sensível. Já a “Segunda navegação” encontra a rota da verdade, que conduz à descoberta do suprassensível, do ser inteligível. Na “primeira navegação”, os filósofos permaneciam prisioneiros dos sentidos e do sensível, ao passo que, na “Segunda”, Platão “tenta a libertação radical dos sentidos e do sensível, e um deslocamento decidido para o plano do raciocínio puro e daquilo que é captável pelo intelecto e pela mente na pureza de sua atividade específica”.[3] Para compreender mais cabalmente esta “Segunda navegação”, valhamo-nos de um exemplo do mesmo Platão, e que se relaciona diretamente com o tema deste texto.
Qual é a causa de uma coisa ser bela? Para responder a isto, um filósofo pré-socrático invocaria elementos meramente físicos: cor, traços, figura, etc. Todavia, afirma Platão, essas não são verdadeiras causas, mas apenas “concausas” ou causas mediatas. É preciso, por conseguinte, postular a existência de uma causa anterior e mais elevada, que, para ser verdadeira causa, há de ser não sensível. Há de ser inteligível. Tal causa é a Ideia ou Forma do Belo em si, a qual, mediante sua participação ou sua presença, ou, ainda, mediante certa relação de determinação, faz as coisas empíricas ser belas; em outras palavras: faz as coisas realizar-se segundo certa cor, medida e proporção convenientes e precisamente adequadas a que sejam belas.
Observação minha. Neste caso, estariam mais perto da verdade os físicos ou filósofos pré-socráticos, a não ser que se proceda com Agostinho e Tomás de Aquino ao deslocamento das Ideias hiperurânicas para a mente divina. Só assim adquire plena validade o que se lerá a seguir.
E Platão afirma que esse paradigma vale para todas as coisas: toda e qualquer coisa física supõe uma causa suma e última, de caráter não físico; de caráter, dizemo-lo hoje, metafísico. Sua “Segunda navegação”, por conseguinte, conduz a reconhecer a existência de dois planos do ser: o primeiro, visível e fenomênico; o segundo, invisível e metafenomênico, não captável senão pela inteligência, ou seja, puramente inteligível.
Assim, a partir da “Segunda navegação” platônica a natureza e o cosmos deixam de considerar-se a totalidade das coisas existentes; passam a considerar-se somente a totalidade das coisas que aparecem. Mas retenhamos o que é especificamente platônico: O “verdadeiro ser” é formado pela realidade inteligível.  

III. RELAÇÕES ESTRUTURAIS ENTRE FORMA E NÚMERO
Escreve Paul Friedlaender: “Platão possuía [...] o olhar plástico do heleno, que apresentava a mesma natureza do olhar com que Policleto[4] viu o cânon [...] e a mesma natureza do olhar que o matemático grego dirigia às formas geométricas. Talvez Platão tivesse consciência desse dom, [talvez] tivesse mais sorte que todos os pensadores.”[5] Para que o entendamos perfeitamente, porém, é preciso antes falar um pouco das relações estruturais entre forma e número.
Na Grécia clássica, a arquitetura, a escultura e a cerâmica fundavam-se em cânones — que analogicamente correspondiam às leis por que se regulava a música —, os quais constituíam regras de perfeição que se podiam expressar, de modo exato, mediante números. Em outras palavras, para os gregos a forma e a beleza tinham por fundamento números e proporções.
Isso valia quer para a construção dos templos, quer para a confecção dos vasos, quer para o cinzelamento das esculturas.  Explica-o Tatarkiewicz: “O cânon da escultura também era numérico e dependia de uma proporção fixa. Como atesta Galeno,[6] a beleza nasce ‘da exata proporção não dos elementos mas das partes, de um dedo em relação a outro dedo, de todos os dedos em relação ao carpo e ao metacarpo, destes em relação ao antebraço, em suma, de todas as partes entre si, como diz o Cânon de Policleto’.”[7]
O cânon de Policleto expressava, particularmente, a proporção entre as partes, traduzível sempre em relações numéricas precisas. Desse modo, a perfeição da forma esculpida vinculava-se, rigorosamente, às figuras geométricas.
São ainda de Tatarkiewicz as palavras seguintes: “Durante o período grego clássico afirma-se também a ideia de que o corpo humano idealmente construído pode ser englobado nas simples figuras geométricas do círculo e do quadrado. ‘Se estendemos um homem de costas com [os] braços e pernas abertos e desenhamos um círculo tendo como centro o umbigo, a circunferência do círculo tocará a ponta dos dedos das mãos e dos pés’.”[8]
De maneira análoga, se imaginarmos o mesmo homem com os braços e mãos abertos e traçarmos uma reta de uma mão à outra, depois uma reta da mão ao pé à direita e à esquerda, e finalmente de um pé ao outro, obter-se-á um quadrado cujas diagonais se cruzam, coincidindo precisamente com o umbigo — e tal quadrado se inscreverá perfeitamente no círculo acima referido. É a clássica representação do homo quadratus.[9]  

IV. A COINCIDÊNCIA ENTRE O BELO E O BEM
Por quanto se disse acima, pode-se compreender por que Platão, como os gregos em geral, identificava o Belo e o Bem. Diga-se, aliás, que o substrato cultural dessa convicção se atesta pela própria língua grega, na qual se criou um termo intraduzível sinteticamente para as demais: kalokagathia, ou seja, “beleza-bondade”.[10] Para os helenos, ademais, a beleza-bondade é medida e proporção, e também virtude, no preciso sentido grego de realização cabal de determinada essência.
Para Platão, mais precisamente, o Bem coincide com o Uno, a medida suprema de todas as coisas;[11] e a manifestação do Bem e do Belo consiste na realização da unidade na multiplicidade, mediante proporção, ordem e harmonia. Logo, a ordem do mundo rege-se por número e medida, o que tornou possível a transição da desordem para a ordem. A beleza, porém, tem algo mais que todas as outras Formas inteligíveis: é a única que pode ser vista também pelos olhos físicos, além de sê-lo pelos olhos da alma.[12]

V. A BELEZA: REVELAÇÃO DO SUPRASSENSÍVEL NO SENSÍVEL
É pois o Belo um resplandecer, um esplendor, uma cintilação com que o suprassensível Bem se revela na dimensão do sensível, atraindo-nos.
Observação minha. Esta tese permanecerá até ao mesmo S. Tomás de Aquino. De Bruyne, porém, nega que Tomás a tenha sustentado até ao fim. A resolução deste ponto é decisiva.
Demos a palavra a Gadamer, que traduz assim tal noção platônica: “A luminosidade da aparência não é, portanto, apenas uma das propriedades do belo, mas constitui sua essência propriamente dita. A característica do belo, que o faz atrair imediatamente para si o desejo da alma humana, baseia-se em seu próprio ser. Por ser estruturado de acordo com medidas, o ente não é apenas aquilo que é, mas faz aparecer dentro de si uma totalidade em si medida e harmônica. É este o desvelamento (aletheia) de que Platão fala no Filebo, [e] que pertence à essência do belo. A beleza não é simplesmente a simetria, mas a própria aparência que nela se baseia. Ela tem a natureza do resplandecer. Resplandecer, porém, significa resplandecer sobre algo, como o sol [,] e, portanto, aparecer, por sua vez, naquilo em que a luz incide. A beleza tem o modo de ser da luz.”[13]
Observação minha. A analogia do belo e da luz atravessará toda a escolástica. Mas não atinge S. Tomás.  
Estamos diante de doutrina que tem de levar-se grandemente em conta nos estudos estéticos. Nada obstante, Platão não chegou a considerar como o Belo se plasma na arte. Vinculou-o antes ao Eros. Vejamo-lo primeira e brevemente.

VI. A ERÓTICA COMO VIA PARA O ABSOLUTO
Para Platão, portanto, a beleza se liga ao Eros, ao Amor, entendido este como força mediadora entre o suprassensível e o sensível: a força que dá asas e eleva, ao longo dos diversos graus de beleza, ao Belo metaempírico existente em si. E, como o Belo coincide com o Bem, o Eros é a força que eleva ao Bem, mostrando-se a erótica a via alógica para o Absoluto.[14]
Para Platão, consequentemente, o que os homens comumente chamam amor é somente parte, pequena, do autêntico Amor — este é o desejo do Belo, do Bem, da Sabedoria, da Felicidade, da Imortalidade. Do Absoluto.[15] E o Amor dispõe de vários caminhos conducentes a vários graus do Bem. E, se toda e qualquer forma de amor é um desejo de possuir definitivamente o Bem, o autêntico amante é o que sabe percorrer tais caminhos até ao fim, até à visão suprema, a saber, a visão do Belo absoluto.
• O grau mais baixo na escala do Amor é o amor físico: o desejo de possuir o corpo belo para gerar no belo outro corpo. Mas o amor físico é já desejo de eternidade, porque, no plano da criatura mortal, a geração é imortalidade. – Magnífico!!!
• Em seguida vem o grau dos amantes fecundos não quanto aos corpos, mas quanto às almas — os portadores de sementes que brotam e medram na dimensão do espírito. São os amantes das almas, os amantes das leis, os amantes das ciências puras.
• Por fim, a visão fulgente da Ideia do Belo em si, ou Absoluto.
No Fedro, Platão aprofundará o tema do Amor, ligando-o à doutrina da reminiscência. Na vida pré-terrena junto aos deuses, a alma contemplava o mundo das Ideias, o Hiperurânio. Ulteriormente, ao perder as asas e abismar-se nos corpos, esqueceu tudo quanto vira. Graças porém ao esforço filosófico, a alma pode recordar-se do que um dia contemplou, e, no caso da beleza, tal recordar-se se dá de maneira muito particular, pois que, como já referi, a Ideia do Belo recebeu o privilégio de ser “o mais manifesto e mais amável”. O reflexo do Belo no sensível inflama a alma, levando-a a querer alçar vôo e tornar ao sítio de onde desceu. E este querer se identifica com o Eros, que eleva a alma ao plano das Ideias.
Observação minha. A teoria da reminiscência é um dos pontos mais débeis do platonismo; mas de algum modo teve influxo até sobre S. Agostinho.
O Amor platônico é nostalgia do Absoluto.

VII. A ARTE COMO AFASTAMENTO DO VERDADEIRO
Ao determinar a essência e a função da arte, Platão não consegue vinculá-las ao Belo-Bem nem ao Eros, vinculando-as, isto sim, ao tema da metafísica e da dialética — está preocupado tão somente em estabelecer o valor de verdade que haja na arte. E estabelece-o negativamente: para nosso filósofo, “a arte não revela, mas esconde o verdadeiro, porquanto não constitui uma forma de conhecimento nem melhora o homem, mas o corrompe, porque é mentirosa; ela não educa o homem, mas o deseduca, porque se volta para as faculdades irracionais da alma[,] que constituem as partes inferiores de nós mesmos”.[16]
Já nos primeiros escritos Platão desdenhava a poesia, por julgá-la efetivamente inferior à filosofia. O poeta não é poeta, segundo ainda o nosso filósofo, por meio do conhecimento, mas da “intuição irracional”. Ao compor, está “fora de si”, e é “invadido”; ignora a razão do que faz, e não pode ensinar aos outros o que faz. O poeta só o é por “destino divino”, não por virtude provinda do conhecimento.[17]
No décimo livro d’A República Platão aprofunda esta visão negativa da arte. Trate-se de poesia ou de pintura, a arte constitui sempre uma mímesis, uma imitação de realidades sensíveis (coisas, homens, fatos). E, por considerar que as realidades sensíveis representam, ontologicamente, apenas imagens das Ideias paradigmáticas e, por conseguinte, se afastam do verdadeiro na medida mesma em que a cópia dista do original, Platão não pode considerar senão que a arte, por ser imitação, por seu turno, das realidades sensíveis, é “imitação de imitação”, permanecendo “três vezes distante do verdadeiro”.
A arte, pois, é tendencialmente corruptora, conquanto, se se submeter às leis do verdadeiro, ou seja, às regras da filosofia, e assim servir ao Bem, possa salvar-se. Caso contrário, há de ser banida do Estado perfeito.

VIII. UM INÍCIO DE REAVALIAÇÃO DA ARTE?
 Ainda que sem mudar de posição metafísica, Platão parece, nas Leis, tender já a um juízo mais favorável acerca da arte. Ao afirmar que a excelência da música não se deve estimar somente pela quantidade de prazer sensível que oferece, acrescenta o Filósofo que a única música de fato excelente é a “que consiste numa imitação do Bem”,[18] e que “os que queiram a melhor classe de sons e de música não devem buscar o agradável, mas o verdadeiro; e a verdade da imitação está, como íamos dizendo, em que se pareça com a coisa imitada tanto pela quantidade como pela qualidade”.[19] Temos assim, portanto, o conceito de música como imitativa; mas Platão concede que a imitação possa ser verdadeira caso reproduza o melhor possível, em seu próprio meio, o imitado, o que obviamente vale para todas as artes.
Sucede, todavia, que a obra de arte é em parte produto da imaginação e se dirige ao sentimento do homem, donde ser impossível inferir que para Platão o caráter imitativo da arte denotasse em essência uma mera reprodução “fotográfica” — apesar das muitas afirmações do Filósofo que parecem indicar o contrário. Leve-se em conta que uma realidade sensível não é, para Platão, uma “fotografia” da Ideia, já que esta pertence a uma ordem diversa da ordem dos objetos físicos, e conclua-se, analogamente, que tampouco a obra de arte possa ser, para ele, mera reprodução de uma realidade sensível. Ademais, a insistência de Platão no caráter imitativo da música afasta a ideia da mímesis como mera cópia “fotográfica”. Trata-se, antes, de algo como um simbolismo imaginativo, razão por que a imitação artística não pode comportar em si verdade nem falsidade: “a arte serve [grifo meu] ao verdadeiro ou ao falso, tertium non datur”.[20] – Devo aprofundá-lo.
Esta, digamos, “neutralidade” da arte já se encontrava na própria República, mas aprofunda-se nas Leis, onde Platão admite mais liberalmente algumas formas de arte no seio do estado. É que chegou à conclusão inequívoca de que a arte ocupa uma esfera particular da atividade humana — conquanto situada a pouca altura. Mas, de fato, é particular e irredutível a qualquer outra atividade, o que se confirma por esta passagem em que, após apontar e louvar o caráter padronizado da arte egípcia, afirma: “se alguém só é capaz de encontrar, do modo que for, as melodias naturais, deverá incorporá-las confiantemente a uma forma fixa e legítima”.[21]
Com respeito à arte, todavia, Platão segue interessando-se centralmente por seus efeitos educativos e morais, por suas funções recreativas, e pelo rigoroso controle a que há de estar submetida pelo estado. É que o nosso filósofo, diz Frederick Copleston, “não chega a perceber — ou não o manifesta bastante — que o distintivo específico da contemplação estética é o desinteresse”,[22] o que, se após Platão já foi afirmado vezes sem conta, permanece até hoje por demonstrar. Mais: as palavras de Copleston supõem profunda confusão entre o fim da arte e o modo como se contempla. E isso é parte da doutrina, tão estendida mas tão equivocada, segundo a qual a arte não se ordena senão a si mesma.



[1] Este texto (em que sigo de perto, comentando-a apenas pontual e indicativamente, a exposição de Giovanni Reale e Dario Antiseri em sua História da Filosofia — Antiguidade e Idade Média) também é um dos muitos que me serviram como cadernos de anotações para Das Artes do Belo: Essência e Fim, livro em fase final de escrita e que se publicará, como espero, no próximo ano.
[2] Não esqueçamos que o termo metafísica foi criado posteriormente não só a Platão, mas a Aristóteles.
[3] Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da Filosofia — Antiguidade e Idade Média, vol. I, 4a. ed., São Paulo, Paulus, 1990, p. 130-131.
[4] Escultor e arquiteto grego do século V a.C.. Ele aplicou o seu Cânon ou teoria das proporções à sua estátua O Doríforo.
[5] P. Friedlaender, Platone, trad. it., Florença, La Nuova Italia, 1979, p. 15-16, apud Giovanni Reale, O Saber dos Antigos — Terapia para os Tempos Atuais, São Paulo, Edições Loyola, 1999, p. 144. 
[6] Cláudio Galeno, célebre médico grego (131-c. 201), nascido em Pérgamo. Destacou-se por suas muitas descobertas em anatomia. 
[7] W. Tatarkiewicz, Storia dell’estetica, I, L’estetica antica, trad. it., Turim, Einaudi, 1979, p. 81, apud Giovanni Reale, O Saber dos Antigos — Terapia para os Tempos Atuais, São Paulo, Edições Loyola, 1999, p. 145.
[8] Ibid., p. 85, in op. cit., p. 145.
[9] Cf. Giovanni Reale, idem.
[10] Cf. idem.
[11] É o que se pode constatar pelos seus diálogos e, segundo Giovanni Reale em Para uma Nova Interpretação de Platão (São Paulo, Edições Loyola, 1987), por suas doutrinas não escritas. – Devo aprofundá-lo.
[12] Eis o que diz Platão no Fedro: “Só a beleza recebeu esta sorte de ser o que é mais manifesto e mais amável”. – Devo aprofundá-lo. Uma vez mais, todavia, mostra-se aqui Platão magnífico metafísico, mas mau lógico.
[13] H.-G Gadamer, Verità e metodo, trad. it., Milão, Bompiani, 1983, p. 549, apud Giovanni Reale, ibid., pp. 146-147.
[14] Falar do Absoluto em Platão não nos deve induzir no erro dos que creem ser sua filosofia uma espécie de teologia cristã avant la lettre. De fato, a “Segunda navegação” deu a Platão a possibilidade de ver o divino na perspectiva do suprassensível, e, de fato, o divino não é pensável senão sob a luz da categoria do imaterial. Mas na teologia platônica o divino é estruturalmente múltiplo; ademais, nessa mesma teologia, há que distinguir entre, por um lado, o Divino impessoal e, por outro, Deus e os deuses pessoais. O Divino é o mundo das Idéias em todos os seus planos, e divina é a Ideia do Bem; mas a Ideia do Bem não é pessoa (com efeito, não me parece encontrar em Platão nenhum ponto de apoio para a afirmação oposta). Desse modo, no ápice da hierarquia do inteligível está um Ente divino impessoal — a Ideia do Bem — e não um Deus pessoal.
Quem, na teologia platônica, apresenta caracteres de Deus pessoal é o Demiurgo. Ele, porém, é hierarquicamente inferior ao mundo das Ideias: não só não o cria, mas depende dele. O Demiurgo não cria sequer a matéria (chora) de que é formado o universo, pois que ela lhe é preexistente; ele é tão somente o plasmador, o artífice do universo. Não é seu criador. E, além do Demiurgo, há para Platão muitos outros deuses, entre os quais os astros, que não só têm alma mas inteligência. Até certas divindades do antigo politeísmo heleno se mantêm na teologia platônica, e divino é o mesmo Eros de que estou a tratar.
Havia que esperar Aristóteles para o pensamento ocidental dar um importante passo. Mas nem sequer Aristóteles pôde elevar-se à intelecção do Deus criador.     
[15] Aqui, mais que em qualquer outro lugar, é que refulge sumamente o gênio de Platão — com efeito, parece-nos por vezes ler nestas linhas um tratado de teologia cristã sobre o Fim Último do homem.
[16] Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da Filosofia — Antiguidade e Idade Média, op. cit., p. 150.
[17] Veja-se quão curiosamente Platão se aproxima aqui do mais extremado racionalismo. – É a crítica aristotélica a esta doutrina o que constitui meu ponto de partida. E, aqui, uma vez mais se manifesta quão mau lógico era o grande metafísico Platão: com efeito, seria preciso que Aristóteles incluísse a Poética como parte potencial da Lógica para que pudesse fundar com solidez e proficuidade os estudos estéticos.  
[18] Leis, 668 a 9-b 2. – Importantíssimo e profícuo, de certo modo.
[19] Ibid., 668 b 4-7. – Também importantíssimo e profícuo, de certo modo.
[20] Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da Filosofia — Antiguidade e Idade Média, op. cit., p. 151.
[21] Leis, 657 b 2-3.
[22] Frederick Copleston, Historia de la Filosofia, 1: Grécia y Roma, op. cit., p. 262.