Nota Prévia de Carlos Nougué
Ao final desta tradução do capítulo VI da
obra De Controversiis, de São Roberto Belarmino, tem-se a página web de
onde a transcrevo. Mas o que importa aqui são as palavras introdutórias do
responsável dessa página. Reproduzo-as a certa altura do corpo da tradução,
após um parágrafo que ponho em negrito e a que se segue minha resposta àquelas
palavras.
* * *
CAPÍTULO IV: Sobre a Igreja Particular de Roma
A SEGUNDA PROPOSIÇÃO. Não só o Romano Pontífice não
pode errar na fé, mas até mesmo a Igreja particular de Roma não pode
errar.
Neste lugar é mister salientar que o poder da
Igreja Romana na fé deve ser recebido em um sentido, e o poder do Pontífice em
outro. O papa não pode errar a partir de um erro judicial, isto é, enquanto ele
julga e define uma questão de fé, mas a Igreja Romana, isto é, o povo e o clero
romano, não pode assim errar por um erro pessoal, de tal forma que todos iriam
errar e não haveria fiéis na igreja romana aderindo ao Papa. Mesmo que os
indivíduos possam errar por conta própria, ainda assim não pode acontecer que
todos errem enquanto um corpo e a Igreja Romana como um todo torne-se
apóstata.
Além disso, que a Igreja Romana não pode errar na
maneira explanada, pode ainda ser entendido de duas maneiras: por um lado, que
não pode errar enquanto a Sé Apostólica permanecer em Roma; seria de outro
modo, se a Sé fosse transferida para outro lugar. Na segunda maneira, que ela
não pode errar ou desertar simplesmente porque a Sé Apostólica nunca pode ser
transferida de Roma para outro lugar. E, de fato, seguindo o primeiro sentido,
a nossa proposta é muito verdadeira e talvez tão verdadeira quanto a primeira
proposição relativa ao Papa. Pois os autores que citamos, como Papa Lúcio e
Félix, mártires, Ágato e Nicolas, confessores, e do mesmo modo Cirilo e Rufino,
todos afirmam que não só o Papa, mas também a Igreja Romana não pode
errar.
Além do mais, São Cipriano diz: “eles se atrevem a
navegar e levar cartas de cismáticos e blasfemos para a cátedra de Pedro e
à Igreja principal, etc... eles nem pensaram que estes são romanos, cuja
fé foi elogiada na pregação pelo Apóstolo, e entre os quais não é possível a
perfídia ter entrada.”[1] São
Jerônimo disse: “Sabe, porém, que a fé romana, louvada pela voz do Apóstolo,
não admite artifícios desta natureza, e que, mesmo se um anjo anunciasse
diferentemente do que foi pregado uma vez por todas, a fé sustentada pela
autoridade de Paulo não poderia mudar.” São Gregório Nazianzeno, em um poema
sobre sua vida, no meio deste, disse, “Antiga Roma tem desde os tempos
imemoriais professado a fé correta, e sempre manteve-a; assim como é apropriado
para a cidade que preside o mundo inteiro, sempre detém a totalidade da fé de
Deus”.
Eu acrescento ainda o testemunho de dois Papas, que
também foram condenados por hereges, mas foram recebidos com a maior honra
pelos católicos. Um deles é o Papa Martinho VI, que na Bula que aprovou no
Concílio de Constança, fez registrar que eles devem ser considerados como
hereges, pois que pensavam de forma diferente da Igreja Romana acerca dos
Sacramentos ou dos artigos da fé.
O outro é o Papa Sisto IV, que pela primeira vez
por meio do Sínodo de Alcalá, em seguida, por si mesmo, condenou os artigos de
um determinado Pedro de Oxford, um dos quais era que a Igreja da cidade de Roma
poderia errar. E, embora tal pareça ser entendido particularmente em razão do
Papa, todavia, a Igreja Romana não é somente o Papa, mas o Papa e as pessoas,
portanto, quando os Padres da Igreja ou os Papas dizem que a Igreja Romana não
pode errar eles querem dizer que na Igreja Romana sempre haverá de existir um
bispo ensinando de uma forma católica e um povo crente de uma forma
Católica.
[Nota de Carlos Nougué. a) Eis pois antes de tudo a «NOTA DO
EDITOR: Este capítulo da Obra
magistral “De Controversiis” de São Roberto Belarmino é sumamente importante no
debate com os tradicionalistas e sedevacantistas, que advogam posições que
defrontam a tese defendida pelo Doutor da Igreja. Nos discursos de Mons. Marcel
Lefebvre esse contraste é nítido. Para exemplificar, vejamos o que o bispo
afirmou numa Carta a São João Paulo II, de 02 de junho de 1988: “Continuaremos
a rezar para que a Roma moderna, infestada de modernismo, torne a ser a Roma
católica e reencontre a sua Tradição bimilenar”. Também o que afirmou numa
conferência em Albias (Tarn-et-Garonne) no dia 10 de outubro de 1990: “Enquanto
Roma não voltar a Tradição, enquanto Roma não voltar a fé católica, não podemos
esperar o retorno da fé católica para o conjunto da Igreja”. Por fim, vale
dizer que a tese explanada pelo Santo Doutor é, segundo Mons. Joseph Clifford
Fenton, “muito mais do que mera opinião teológica”. Acrescenta este último que
a “proposição de que “a igreja da cidade de Roma pode cair em erro” é uma das
teses de Pedro de Osma condenadas formalmente pelo Papa Sisto IV como errôneas
e como contendo heresia manifesta” (Mons. Joseph Clifford FENTON, A Igreja
Local de Roma, dez. 1950; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, 13 mai. 2015,
blogue Acies Ordinata,http://wp.me/pw2MJ-2yI)».
b) Pois bem, como disse em As indicações bibliográficas referentes ao artigo “Se a
hierarquia conciliar está fora da Igreja”, Belarmino
estava convencido de que um papa não pode incorrer em heresia; mas admitia-o ex suppositione, segundo suposição, e dizia que neste
caso tal papa perderia ipso facto a jurisdição. Veja-se porém pela
impressionante lista de doutores e de papas (dada ainda no referido artigo) cuja opinião era
distinta da de São Roberto que a opinião deste não só era minoritária, senão
que, ademais, é a menos provável – tanto pelo peso mesmo daquelas autoridades
como se se leva em conta o que estamos vendo hoje com nossos próprios olhos, ou
seja, o que por primeiro viu D. Marcel Lefebvre. – Repita-se aqui tal lista: o Decretum de Graciano, o Papa Inocêncio III, o
Papa São Leão II, Tomás de Vio Caetano O.P., Domingo Báñez O.P., João de
Santo Tomás O.P., os Carmelitas de Salamanca (no século XVII), Billuart
O.P., Santo Afonso Maria de Ligório, Reginald Garrigou-Lagrange O.P., entre
outros.]
Mas seguindo o segundo sentido, que a Igreja Romana
não pode desertar é certamente piedoso e uma opinião muito provável; ainda que
não seja tão certo que o contrário possa ser chamado de herético, ou
manifestamente errôneo, como John Driedo ensina.[2]
O fato é, não é completamente de fide que
a Igreja Romana não possa ser separada da Sé Apostólica uma vez que nem as
Escrituras, nem tradição tem a Sé Apostólica de modo fixo em Roma, que não
possa ser transferida para outro lugar. E todos os testemunhos dos Papas e
Padres da Igreja (que dizem que a Igreja Romana não pode errar) podem estar
relacionados com a Igreja Romana, desde que permaneça naquela Sé Apostólica,
mas não absoluta e simplesmente.
Da mesma forma é ainda uma opinião piedosa e muito
provável que a cátedra de Pedro não possa ser separada de Roma, e, portanto, a
Igreja Romana absolutamente não pode errar ou desertar. Está provado, em
primeiro lugar a partir do fato de que a Sé Apostólica manteve-se em Roma por
um período tão longo, a despeito das infinitas perseguições, bem como das
oportunidades para mudá-la para outro lugar. A primeira razão oferecia uma
maior oportunidade de transferir a Sé Romana para outro lugar nos tempos dos
imperadores pagãos. Perturbava-os muito que a Sé Apostólica estivesse em Roma,
e por isso sempre que eles ouviam que um novo bispo tinha sido sagrado, ele era
morto ou enviado para o exílio. Daí Cipriano elogiou a constância do Papa
Cornélio: “Quanta virtude recebeu seu episcopado! Quanta fortaleza de ânimo,
quanta firmeza na fé! Sentou-se intrepidamente na cátedra episcopal de Roma, em
um tempo em que um perigoso tirano lançou-se contra os sacerdotes de Deus de
forma lícita e ilícita, e que lhe era mais suportável e tolerável ouvir que um
príncipe rival tinha se elevado contra de que em Roma se tinha sido constituído
um sacerdote de Deus.”[3]
A próxima oportunidade para transferir a Sé ocorreu
no tempo dos godos, especialmente durante a época de Inocêncio I, quando
Alarico tomou Roma, despojou-a e queimou-a, como Jerônimo relata em sua carta à
Principia sobre a morte de Marcela. Em seguida, na época de Leão I, quando
Genserico novamente tomou Roma e despojou-a, como Biondo escreve;[4] período em que
Roma permaneceu por algum espaço de tempo, sem habitantes. Novamente no tempo
do Papa Vigílio, Totila, que tendo posto abaixo grande parte das muralhas e
queimado praticamente todas as casas, quase derrubou Roma, deixando a cidade
desolada, pois nenhum homem ou mulher nela permaneceu, como Biondo escreve na
mesma obra.[5] Depois
disso, em todo o tempo dos lombardos, os Pontífices Romanos estavam na maior
miséria, como fica claro em muitas epístolas de São. Gregório. No entanto, os
Pontífices Romanos jamais pensaram em mudar seu Episcopado de Roma.
A terceira ocasião para transferência da Sé foi no
tempo de S. Bernardo, por conta da perseguição dos cidadãos de Roma. Por muitos
anos, os cidadãos romanos perturbaram tanto seus Pontífices que eles foram
muitas vezes obrigados a deixar a cidade para o exílio, como fica claro tanto a
partir de historiadores e de S.Bernardo.[6] A quarta vez foi quando os pontífices romanos
permaneceram na França por 70 anos. Em primeiro lugar, embora tenham passado
esse tempo longe de Roma, com toda a cúria, porque, eu pergunto, eles não
transferiram a Sé? Por que não trocar o Episcopado Romano para o de Avignon?
Uma vez que tiveram tantas oportunidades para transferi-la, mas ainda assim a
Sé manteve-se em Roma por mais de 1500 anos, e é muito provável que ela de
forma alguma possa ser transferida.
Além disso, a mesma coisa pode ser comprovada pelo
fato de que o próprio Deus ordenou que a Sé Apostólica de Pedro fosse
estabelecida em Roma. Os homens não podem mudar a seu bel prazer algo que Deus
ordena. O Bem-aventurado Marcelo, Papa e mártir, em uma epístola ao povo de
Antioquia dá testemunho desta ordem quando ele diz que Pedro, a mando de Deus,
transferiu a sua sede de Antioquia a Roma. Santo Ambrósio também testemunha
isto em seu discurso na entrega das basílicas, onde ele relata que Cristo mesmo
quis que Pedro devesse morrer em Roma. E por esta razão que Cristo ao cruzar
com Pedro fugindo da cidade, Ele [Cristo] disse: “Eu estou voltando para Roma
para ser crucificado novamente.” É um sinal manifesto que Deus queria confirmar
a Sé de Pedro em Roma, por meio de sua morte. O Papa São Leão I diz também
estar ligado a isto, “... trazias o troféu da cruz de Cristo à amarga Roma
onde, por divina predestinação, esperavam-te a honra da autoridade e a glória
do martírio.”[7] Alguém
dirá que este argumento parece ser prova de que a Sé não pode ser transferida
de Roma. Posto que se é da fé, preceitos divinos não podem ser alterados pelos
homens. Se, pois, Deus ordenou a Sé ser constituída em Roma, parece ser de
fide que não pode ser transferida para qualquer outro lugar.
Eu respondo: tal não decorre, pois Marcelo e Leão
não definem este assunto como se fosse de fide; antes eles
mencionam como história. Além disso, eles não são testemunhos de fide dos
Pontífices, mas apenas decretos. Em seguida, o que eles mesmos dizem, que por
ordem do Senhor, Pedro transferiu sua Sé para cidade, pode ser entendido de
duas maneiras: 1) porque o Senhor ordenou isso quando Ele apareceu a Pedro e
posteriormente de fato foi dito por preceito divino que a Sé de Pedro foi
constituída em Roma; ou 2) que Cristo de fato não ordenou claramente, mas que
ele disse que foi comandado porque Pedro o fez por inspiração de Deus, assim
como todos os decretos e preceitos da Igreja podem ser ditos divinos, que ainda
são, contudo, mutáveis.
Acontece que, mesmo que fosse estabelecido que
Cristo ordenou a Pedro que ele deveria colocar sua Sede em Roma, ainda não se
seguiria imediatamente que a ordem para fazer isso fosse imutável. Porque não
há certeza como Cristo ordenou a Pedro que ele deveria estabelecer sua Sede em
Roma, portanto, não é de fide, preceito divino e imutável, que
a Sé foi constituída em Roma. Ainda assim, como dissemos, é muito provável e é
piamente acreditável. Também não é contrário que no tempo do Anticristo Roma
deva ser destruída e queimada como se deduz do capítulo XVII do Apocalipse.
Pois tal não se sucederá senão ao fim do mundo e, além disso, o Sumo Pontífice
é chamado de Romano Pontífice e ele sobreviverá mesmo que ele não venha viver
em Roma, assim como no tempo de Totila, o rei dos godos, como dissemos acima. Além
disso, Agostinho e muitos outros ao comentarem sobre essa passagem do
Apocalipse, ela não diz que Roma teria de ser queimada, mas a multidão dos
ímpios, que é a cidade do diabo.
[1]Libro I, epistola 3
[2]De
Ecclesiasticis dogmat. et Scripturis , lib.
4, cap. 3, par. 3.
[3] Lib. 4, epist.
2.
[4] Lib. 2 decadis
1.
[5] Lib. 6.
[6] Epistola 242 ad
populum Romanum; epistola 243 ad Conradum imperatorem.
[7] Serm. 1 de
Natali Apostolorum Petri et Pauli.
FONTE:
De Controversiis On the Roman Pontiff. Vol. II: Books 3-5. St. Robert
Bellarmine, S. J. Translated from the Latin by Ryan Grant. First Edition, March
2016 Mediatrix Press <http://www.mediatrixpress.com>, pp.
204-208.
PARA CITAR: BELARMINO,
São Roberto. A indefectibilidade da Igreja de Roma - São Roberto
Belarmino. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/valor-magisterial/924-a-indefectibilidade-da-igreja-de-roma-sao-roberto-belarmino>.
Desde 10/11/2016. Tradutor: JBF.