quarta-feira, 7 de setembro de 2016

“Doctoris Angelici – Sobre o estudo da doutrina de Santo Tomás de Aquino”, de São Pio X


DOCTORIS ANGELICI

Motu proprio

PAPA SÃO PIO X

Sobre o estudo da doutrina de Santo Tomás de Aquino

A filosofia escolástica, base dos estudos sagrados

Nenhum católico sincero pode pôr em dúvida a seguinte afirmação do Doutor Angélico: Regular o estudo compete, de modo particular, à autoridade da Sé Apostólica que governa a Igreja universal, e a isto provê por meio de um plano geral de estudos.[1] Em várias ocasiões, cumprimos este magno dever de Nosso ofício, principalmente quando em nossa carta Sacrorum antistitum, de 1 de setembro de 1910, nos dirigíamos a todos os Bispos e aos Superiores das Ordens Religiosas, os quais têm o dever de atender à educação dos seminaristas, e os advertíamos: “No que se refere aos estudos, queremos e mandamos determinantemente que como fundamento dos estudos sagrados se ponha a filosofia escolástica… É importante notar que, ao prescrever que se siga a filosofia escolástica, Nos referimos principalmente ao que ensinou Santo Tomás de Aquino: tudo o que Nosso Predecessor decretou acerca dela queremos que continue em vigor, e, como se fosse necessário, repetimo-lo e confirmamo-lo, e mandamos que seja observado estritamente por todos. Os Bispos deverão, no caso de que disto se houvesse descuidado nos Seminários, urgir e exigir que de agora em diante se observe. Igualmente mandamos aos Superiores das Ordens Religiosa”.

Referimo-nos aos princípios de Santo Tomás

Como havíamos dito que havia que seguir principalmente a filosofia de Santo Tomás, e não dissemos unicamente, alguns creram cumprir com Nosso desejo, ou ao menos creram não ir contra este Nosso desejo, ensinando a filosofia de qualquer dos Doutores escolásticos, ainda que seja oposta aos princípios de Santo Tomás. Mas equivocam-se plenamente. Está claro que, ao estabelecer como principal guia da filosofia escolástica a Santo Tomás, nos referimos de modo especial a seus princípios, nos quais essa filosofia se apoia. Não se pode admitir a opinião de alguns já antigos, segundo ao qual é indiferente, para a verdade da Fé, o que cada qual pense a respeito das coisas criadas, contanto que a ideia que se tenha de Deus seja correta, já que um conhecimento errôneo acerca da natureza das coisas leva a um falso conhecimento de Deus; por isso se devem conservar santa e invioladamente os princípios filosóficos estabelecidos por Santo Tomás, a partir dos quais se aprende a ciência das coisas criadas de maneira congruente com a Fé.[2], se refutam os erros de qualquer época, se pode distinguir com certeza o que somente a Deus pertence e não se pode atribuir a nada mais,[3] se ilustra com toda a clareza tanto a diversidade como a analogia que há entre Deus e suas obras. O Concílio Lateranense IV expressava assim esta diversidade e esta analogia: “Quanto mais semelhança se afirme entre o Criador e a criatura, mais se há de afirmar a dessemelhança”.[4]

Estes princípios são como o fundamento de toda e qualquer ciência

Ademais, falando em geral, estes princípios de Santo Tomás não encerram nada além do que já haviam descoberto os mais importantes filósofos e Doutores da Igreja, meditando e argumentando sobre o conhecimento humano, sobre a natureza de Deus e das coisas, sobre a ordem moral e a consecução do fim último. Com um engenho quase angélico, desenvolveu e acrescentou toda essa quantidade de sabedoria recebida dos que o haviam precedido, e empregou-a para apresentar a doutrina sagrada à mente humana, para ilustrá-la e para dar-lhe firmeza;[5] por isso, a sã razão não pode deixar de tê-la em conta, e a Religião não pode consentir que seja menosprezada. Tanto mais que, se a verdade católica se vê privada da valiosa ajuda que lhe prestam estes princípios, não poderá ser defendida buscando, em vão, elementos nessa outra filosofia que compartilha, ou ao menos não refuta, os princípios em que se apoiam o Materialismo, o Monismo, o Panteísmo, o Socialismo e as diversas classes de Modernismo. Os pontos mais importantes da filosofia de Santo Tomás não devem ser considerados como algo opinável, que se possa discutir, senão que são como os fundamentos em que se assenta toda a ciência do natural e do divino. Se forem rechaçados estes fundamentos ou se forem pervertidos, seguir-se-á necessariamente que aqueles que estudam as ciências sagradas nem sequer poderão captar o significado das palavras com que o magistério da Igreja expõe os dogmas revelados por Deus.
Por isso quisemos advertir aqueles que se dedicam a ensinar a filosofia e a sagrada teologia de que, se se afastam das pegadas de Santo Tomás, principalmente em questões de metafísica, não será sem graves danos.

Este é Nosso pensamento:

Mas agora dizemos, ademais, que não só não seguem a Santo Tomás mas se apartam totalmente deste Santo Doutor aqueles que interpretam distorcidamente ou contradizem os mais importantes princípios e afirmações de sua filosofia. Se alguma vez Nós ou Nossos antecessores aprovamos com particulares louvores a doutrina de um autor ou de um Santo, se ademais aconselhamos que se divulgasse e se defendesse essa doutrina, é porque foi comprovado que está de acordo com os princípios de Santo Tomás ou que absolutamente não os contradiz.
Cremos Nosso dever Apostólico expor e mandar tudo isto, para que em assunto de tanta importância todas as pessoas que pertencem tanto ao Clero regular como ao secular considerem seriamente qual é Nosso pensamento e para que o ponham em prática com decisão e diligência. Porão nisto particular empenho os professores de filosofia cristã e de sagrada teologia, que devem ter sempre presente que não será lhes dada a faculdade de ensinar para que exponham a seus alunos as opiniões pessoais que tenham acerca de sua disciplina, senão para que exponham as doutrinas plenamente aprovadas pela Igreja.
Concretamente, no que se refere à sagrada teologia, é Nosso desejo que seu estudo se leve a cabo sempre à luz da filosofia que citamos; nos Seminários, com professores competentes, poderão utilizar-se livros de autores que exponham de maneira resumida as doutrinas tomadas de Santo Tomás; estes livros, quando bem elaborados, são muito úteis.

Utilizar o texto da Suma Teológica

Quando porém se trata de estudar mais profundamente esta disciplina, como se deve fazer nas Universidades, nos Ateneus e em todos os Seminários e Institutos que têm a faculdade de conferir graus acadêmicos, é absolutamente necessário – como sempre se fez e nunca se deve deixar de fazer – que nas aulas se explique com a própria Suma Teológica: os comentários deste livro farão que se compreendam com maior facilidade e que recebam melhor luz os decretos e os documentos que a Igreja docente publica. Nenhum Concílio celebrado posteriormente à santa morte deste Doutor deixou de utilizar sua doutrina. A experiência de tantos séculos põe de manifesto a verdade do que afirmava Nosso Predecessor João XXII: “(Santo Tomás) deu mais luz à Igreja que todos os demais Doutores: com seus livros, um homem aproveita mais em um ano que com a doutrina dos outros em toda a sua vida”.[6] São Pio V voltou a afirmar isto mesmo ao declarar Doutor da Igreja universal a Santo Tomás no dia de sua festa: “A providência de Deus onipotente quis que, desde que o Doutor Angélico foi incluído no elenco dos Santos, por meio da segurança e da verdade de sua doutrina, aparecessem desarticuladas e confundidas muitas das heresias que surgiram, como se pôde comprovar já desde muito tempo e, mais recentemente, no Concílio de Trento; por isso estabelecemos que sua memória seja venerada com maior agradecimento e maior piedade que até agora, pois por seus méritos a terra inteira se vê continuamente livre de erros deletérios”.[7] E, por fazer referência a outros elogios, entre muitos outros que lhe dedicaram Nossos Predecessores, trazemos com muito gosto à colação as palavras de Bento XIV, cheias de elogios a todos os escritos de Santo Tomás, particularmente à Suma Teológica: “Muitos Romanos Pontífices, predecessores Nossos, honraram sua doutrina (a de Santo Tomás) como Nós mesmos fizemos nos diferentes livros que escrevemos, depois de estudar e de assimilar com afinco a doutrina do Doutor Angélico, e sempre Nós aderimos com gosto a ela, confessando com toda a sensatez que, se há algo bom nestes livros, não se deve de nenhum modo a Nós, senão que se há de atribuir ao Mestre”.[8]
Assim, “para que a genuína e íntegra doutrina de Santo Tomás floresça na instrução, no que teremos grande empenho”, e para que desapareça “a maneira de ensinar que tem como ponto de apoio a autoridade e o capricho de cada mestre” e que, por isso mesmo, “tem fundamento instável, que dá origem a opiniões diversas e contraditórias… não sem grave dano para a ciência cristã”,[9] queremos, mandamos e preceituamos que aqueles que se entregam à instrução da sagrada teologia nas Universidades, nos Liceus, nos Colégios, nos Seminários, nos Institutos que por indulto apostólico tenham a faculdade de conferir graus acadêmicos, utilizem como texto para suas lições a Suma Teológica de Santo Tomás, e que exponham as lições na língua latina; e deverão levar a efeito esta tarefa pondo interesse em que os ouvintes se afeiçoem a este estudo.
Isto já se faz em muitos Institutos, e é de louvar; também foi desejo dos Fundadores das Ordens Religiosas que em suas casas de formação assim se fizesse, com a decidida aprovação de Nossos Predecessores; e os homens santos posteriores a Santo Tomás de Aquino não tiveram outro supremo mestre na doutrina que Tomás. Desta forma, e não de outra, não só se conseguirá restituir à teologia sua primigênia categoria, senão que também às demais disciplinas sagradas se lhes conferirá a importância que cada uma tem, e todas rejuvenescerão.

Medidas disciplinares

Por tudo isso, sucessivamente, não se concederá a nenhum Instituto a faculdade de conferir graus acadêmicos na sagrada teologia se não se cumpre fielmente o que nesta carta prescrevemos. Os Institutos ou as Faculdades, as Ordens e as Congregações Religiosas que já tem legitimamente a faculdade de outorgar graus acadêmicos ou outros títulos em teologia, ainda que somente dentro da própria instituição, serão privados dessa faculdade ou a perderão se, no prazo de três anos, não se adaptarem escrupulosamente a estas prescrições Nossas, ainda quando não possam cumpri-lo sem culpa alguma de sua parte.
Estabelecemos tudo isto, sem que nada obste em contrário.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de junho de 1914, ano undécimo de Nosso Pontificado.

PIO PAPA X

NOTAS
(1) Opúsculo contra impugnantes Dei cultum et religionem, c. III.
(2) Contra Gentiles, II, c. III y II..
(3)  Ibidem. c. III; y 1, 9. XII, a 4; y 9 LIV, a I.
(4) Decretal II Damnamus ergo, etc. Cfr. Santo Tomás. Questiones disputadas “De scientia Dei”, art. 11.
(5) Boecio. De Trinitate, 9. II, art. 3.
(6)  Alocução no Consistório, 1318.
(7)  Bula Mirabilis Deus, 11/4/1557.
(8) Actas Cop. Gen. O.P., tomo IX, p. 196.
(9) Leão XIII, Carta Qui te, 19/6/1886.