Carlos
Nougué
Ariano
Suassuna (João Pessoa, 1927-Recife, 2014) foi um dos maiores artistas
brasileiros, ao lado de um Jorge de Lima, por exemplo, ou de um Alphonsus de
Guimaraens, ou do primeiro Guimarães Rosa. E, como a destes, sua obra é marcada
com o selo do catolicismo, ao qual Suassuna se converteu (era de origem calvinista
e tivera um período de agnosticismo).[1]
Por
ora, porém, é preciso consignar que infelizmente Ariano Suassuna logo se fez
socialista ou algo assim, conquanto não marxista (repudiava tanto os Estados
Unidos como a União Soviética). E, se não ter sido marxista não o livra da mancha de ter
sido socialista, podem porém encontrar-se algumas razões para que homem e
artista tão profundo aderisse a uma doutrina iníqua.
Entre
tais possíveis razões, está primeiramente o assassinato de seu pai, João
Suassuna, em 1930, quando Ariano era ainda criança. O nosso artista atribuía o
crime à família de João Pessoa, governador da Paraíba, candidato a vice-presidente
na chapa de Getúlio Vargas, e ele próprio também assassinado. Ora, seu pai
identificava-se com a luta contra as políticas que assolavam (verdadeiramente!)
o Nordeste. Pode objetar-se que tal razão é “psicologista”. Mas deixemos Ariano
mesmo falar sobre a morte de seu pai em seu discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras:
“Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa
forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro
de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do
que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo
tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos
outros, das palavras que o pai deixou”.
Ou neste tocante soneto elegíaco:
Aqui
morava um rei quando eu menino
Vestia
ouro e castanho no gibão,
Pedra
da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava
junto ao meu, seu coração.
Para
mim, o seu cantar era Divino,
Quando
ao som da viola e do bordão,
Cantava
com voz rouca, o Desatino,
O Sangue,
o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram
meu pai. Desde esse dia
Eu me
vi, como cego, sem meu guia
Que
se foi para o Sol, transfigurado.
Sua
efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele,
a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada
de Ouro em pasto ensanguentado.
Quem
não conseguir ver aqui a alma de um poeta exposta em suas fibras mais sensíveis
não será capaz de entender jamais, em toda a sua profundidade, a arte.
Mas
quase certamente também outra razão terá concorrido para sua adesão –
equivocada, repita-se – a certo socialismo de contorno algo indefinido: sua repulsa
à república golpista que derrubou iniquamente o império e que sempre se fundou
num sistema partidário-oligárquico. E essa repulsa não era somente de
Suassuna: é minha também, e deveria ser de muitos mais. E era de Antônio
Conselheiro e de seu arraial de Canudos. Com efeito, aquele ex-cangaceiro
convertido ao catolicismo reuniu outros ex-cangaceiros em Canudos para resistir à república golpista e defender
a volta da monarquia e do estado confessional católico. Praticamente, porém, não
houve membro da hierarquia da Igreja brasileira que os orientasse, senão que
essa mesma hierarquia não só se calou diante do massacre de Canudos, mas
convenceu os emissários do Papa Pio X de que era o exército brasileiro, maçônico e
positivista, o que tinha razão.
Mas
não tinha: por rudes e toscos que fossem os de Canudo, a verdade estava com
eles. É o que lembra o nosso Ariano Suassuna neste belo artigo escrito em 1999 (para
a Folha de São Paulo) e com o qual encerro este primeiro escrito.
«Canudos e o Exército
O
que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo como nas grandes
cidades brasileiras, foi o choque do Brasil “oficial e mais claro” contra o
Brasil “real e mais escuro”. Ao Brasil oficial e mais claro que não é somente “caricato
e burlesco”, como afirmou um Machado de Assis, momentaneamente perturbado por
sua justa indignação, pertenciam algumas das melhores figuras do patriciado do
tempo de Euclydes da Cunha: civis e políticos como Prudente de Moraes, ou
militares como o general Machado Bittencourt.
Bem-intencionados
mas cegos, honestos mas equivocados, estavam convencidos de que o Brasil real
de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário invadir, assolar
e destruir. O civil que começou a reparar esse erro doloroso foi Euclydes da
Cunha. O militar foi o major Henrique Severiano, grande herói de Canudos, do
lado do Exército. Através de sua bela morte, acendeu ele uma chama que,
juntamente com a de Euclydes da Cunha, temos todos nós – intelectuais,
políticos, padres, soldados – o dever de levar fraternalmente adiante.
Conta-se, em Os Sertões, sobre o
incêndio dos últimos dias de Canudos: “O comandante do 25º batalhão, major
Henrique Severiano, era uma alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega
uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a
nos braços; aconchegou-a do peito criando, com um belo gesto carinhoso, o único
traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz e salvou-a. Mas expusera-se.
Baqueou malferido, falecendo poucas horas depois”.
A
meu ver, tal seria o militar simbólico, emblema do verdadeiro soldado
brasileiro, capaz de apoiar um movimento em favor do povo,[2]
também simbolicamente representado aí por essa criança, iluminada entre as
chamas do seu martírio.
Euclydes
da Cunha, formado, como todos nós, pelo Brasil oficial, falsificado e
superposto, saiu de São Paulo como seu fiel adepto positivista, urbano e “modernizante”.
E, de repente, ao chegar ao sertão, viu-se encandeado e ofuscado pelo Brasil
real de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Sua intuição de escritor de
gênio e seu nobre caráter de homem de bem colocaram-no imediatamente ao lado dele,
para honra e glória sua. Mas a revelação era recente demais, dura demais,
espantosa demais. De modo que, entre outros erros e contradições, só lhe
ocorreu, além da corajosa denúncia contra o crime, pregar uma “modernização”
que consistiria, finalmente, em conformar o Brasil real pelos moldes da rua do
Ouvidor e do Brasil oficial. Isto é, uma modernização falsificadora e falsa, e
que, como a que estão tentando fazer agora, é talvez pior do que uma invasão
declarada. Esta apenas destrói e assola, enquanto a falsa modernização, no
campo como na cidade, descaracteriza, assola, destrói e avilta o povo do Brasil
real.»