quinta-feira, 29 de setembro de 2016
terça-feira, 27 de setembro de 2016
sexta-feira, 23 de setembro de 2016
A resposta tomista atual ao problema da origem da alma dos brutos
Escrevi (Carlos Nougué) o seguinte ao Padre Luiz
Carlos Lodi, um pouco à guisa de objeção:
“Li e estudei atentamente seu A Alma do Embrião
Humano, e adiro a suas conclusões (aliás, diga-se que nunca fui mediatista,
e que em meu estudo introdutório ao Compêndio de Teologia
assinalei que, quanto a isto, Santo Tomás se equivocara, e
que poderia não tê-lo feito como não o fizera S. Máximo). Mas
pergunto-lhe: se é necessário que a alma humana informe desde o início
o zigoto, do mesmo modo será necessário que nos brutos sua alma
informe desde o início o zigoto. Mas a alma humana provém
de Deus. De onde provém, por conseguinte, a alma dos brutos? Dos mesmos
dois gametas de seus pais? E pode estender-se analogamente a pergunta ao
problema da alma vegetal.”
Respondeu-me magnífica e tomisticamente o Padre,
contra os mesmos tomistas mediatistas:
«Segundo S. Tomás, as almas vegetativa e sensitiva,
por não serem intrinsecamente dependentes da matéria, são eduzidas dos
genitores.
A animação retardada, defendida por S. Tomás também
para os animais, ocorreria quando a matéria estivesse devidamente disposta para
receber a alma sensitiva. Quem disporia a matéria para esse fim seria alma do
genitor, através da vis formativa
presente no sêmen.
O Doutor Angélico jamais disse que a alma vegetativa
(presente desde o primeiro momento) seria capaz de “dispor” a matéria para
receber a alma sensitiva. Tal afirmação (que se encontra hoje entre tomistas)
contradiria o princípio de causalidade, segundo o qual a perfeição do efeito
não pode superar a perfeição da causa. Uma alma inferior não teria condições de
formar os órgãos de uma alma superior.
Somente uma alma pode ser causa eficiente para a
disposição da matéria para a chegada (por edução ou criação) de outra alma. E
essa alma, no caso do homem, tem que ser racional. No caso de um animal,
deve ser sensitiva. É portanto, segundo o Aquinate, a alma sensitiva do
pai (animal) a que dispõe a matéria do embrião, por meio da vis formativa presente no sêmen.
No entanto, é um dado biológico novo que o sêmen não
permanece envolvendo o embrião após a concepção, como pensava S. Tomás. Logo,
na ausência da vis formativa do sêmen
(que se degenera logo após o encontro dos gametas), resta apenas que a alma
sensitiva (no caso dos animais) esteja presente desde a concepção. Se ela não
estiver presente (mas estiver presente apenas um organismo com alma
vegetativa), jamais poderá estar presente.
Como a alma sensitiva se torna presente no momento
da concepção? Ela é eduzida dos pais (que têm alma sensitiva), retirada
da potencialidade da matéria [eu acrescentaria: mediante a vis formativa presente nos gametas] .
Em resumo. Os novos dados da biologia impelem-nos a
defender a animação imediata tanto para os irracionais como para o homem.
Quanto aos vegetais, a animação só pode ser
imediata. Não faria sentido falar em animação retardada, pois não há uma alma
inferior à vegetativa.»
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
Se pode o homem usar saia
Carlos Nougué
Antes que algum liberal venha
sofismar contra o que eu disse (“Assim são os liberais: “Para não criar
constrangimento para os transexuais”...) com respeito à liberação pelo Colégio
Pedro II do uso de saia para meninos, digo o seguinte.
1) Considerada a coisa em si
mesma, não há nenhum problema em o homem usar saia: usam-na os escoceses,
usavam-na os exércitos gregos, os exércitos romanos, etc., usavam-na os judeus
de antes e de depois de Cristo, etc.
2)
Ademais, como diz o Código de Direito Canônico de 1917, após cerca de 40 anos
certo uso geral pode passar a chamar-se propriamente costume, desde que não
ultrapasse os limites do conveniente.
3)
O que porém fez o Colégio Pedro II e que os liberais ecoam é revolucionário, em
duplo sentido.
a)
Antes de tudo, porque põe a liberdade acima daquilo para a qual ela existe:
para que escolhamos o bem. O bem é anterior à liberdade.
b)
Depois, porque se enquadra perfeitamente na revolução marcusiana, segundo a
qual não há distinção radical entre os sexos, o que fere diretamente a lei
natural eterna e a própria natureza.
3)
Pois bem, o que distingue os petistas e os liberais? São
igualmente revolucionários, ainda que com diferenças que tratarei em outro lugar.
Observação.
Logo escreverei eu mesmo, em extensão de livro, sobre a anticristã, sofística e
revolucionária Escola Austríaca.
terça-feira, 20 de setembro de 2016
sábado, 17 de setembro de 2016
Um herói da Religião: Dom Vital
Dom Vital |
C.
N.
Dom Frei Vital
Maria Gonçalves de Oliveira, OFM Cap (Pedras de Fogo,
1844-Paris, 1878), frade capuchino, foi designado aos 26 anos bispo de Olinda,
Pernambuco.
Mas logo se tornaria protagonista da chamada “Questão Religiosa”, que
aconteceu no Brasil entre 1872 e 1875 por causa da interdição do próprio Dom Vital
e de Dom Antônio de Macedo Costa, bispo do Pará, de que o clero tivesse
relações com a Maçonaria. Dom Vital foi preso em 1875, por ordem do Visconde do
Rio Branco (ele mesmo maçom), em seu próprio palácio episcopal por um juiz, pelo
chefe de polícia e por um coronel da polícia.
Quando entraram no palácio e bateram à porta do quarto do bispo, Dom
Vital saiu paramentado, com mitra e com báculo. Assim foi preso; mas, ao chegarem
à rua, os policiais viram aumentar a multidão que dava vivas ao bispo. Puseram-no
num carro e levaram-no para o Arsenal de Marinha, onde ficou preso à espera do
navio que o levaria ao Rio. Em Salvador, embarcaram-no em outro navio para que
chegasse ao Rio sem ser esperado; e no Rio foi encarcerado no Arsenal. Não foi de
modo algum tratado brutalmente. Mas em todas as partes (Recife, Salvador, Rio...)
cresciam as homenagens e os protestos de outros bispos, do clero, do povo,
enfim.
O Papa Pio IX também passou a protestar. Escreveu ao imperador brasileiro
para pedir-lhe que libertasse os bispos e para dizer-lhe que eles se tinham
conduzido como verdadeiros príncipes da Igreja. Ao que tudo indica, Dom Pedro
II não deu maior importância à carta do papa. Foi então, porém, que por outras razões
caiu o gabinete do Visconde do Rio Branco, e o Duque de Caxias foi chamado para
constituir o novo. Aceitou o convite, com a condição, todavia, de que o
imperador libertasse os dois bispos. Dom Pedro enfim o aceitou, e em setembro
de 1875 anistiou Dom Vital e outros, incluindo o bispo do Pará. Em outubro Dom
Vital foi a Roma e foi recebido efusiva e paternalmente por Pio IX, que,
comovido, lhe repetia “Mio Caro Olinda”, “Mio Caro Olinda”.
Dom Vital retornou à sua diocese em outubro de 1876. Foi recebido de
modo triunfal. Retomou prontamente suas atividades. Mas eis que, de repente, se
agrava muito seu já precário estado
de saúde. Voltou à Europa em busca de tratamento, não sem escrever ao Papa para
informá-lo de que renunciava à diocese. O papa, porém, não aceitou a renúncia,
ainda que o tratamento a que se submetia não debelasse a doença e seus enigmáticos
sintomas.
O nosso Dom Vital morreu em Paris, em 4 de julho de 1878. Ao receber o viático,
disse: “Perdoo de coração aos meus inimigos e ofereço a Deus o sacrifício da
minha vida”. Mas Monsenhor de Ségur, na oração fúnebre recitada em suas
exéquias, disse que Dom Vital morrera envenenado. Assim terminou a “Questão
Religiosa”.
Pois bem, não escrevi esta breve notícia histórica (o que não é muito de
meu feitio) senão para dizer que, se digo convictamente que a república foi um
golpe, e que, se for possível, a restauração monárquica será um benefício para
o Brasil, digo também que “quem semeia vento colhe tempestade” (Oseias 8, 7): tanto
o golpe militar contra o império como a república que se seguiu foram da mesma
maçonaria que Dom Pedro II permitira desenvolver-se na antiga Terra da Santa
Cruz.
Ariano Suassuna, sua arte e a política
Carlos
Nougué
Ariano
Suassuna (João Pessoa, 1927-Recife, 2014) foi um dos maiores artistas
brasileiros, ao lado de um Jorge de Lima, por exemplo, ou de um Alphonsus de
Guimaraens, ou do primeiro Guimarães Rosa. E, como a destes, sua obra é marcada
com o selo do catolicismo, ao qual Suassuna se converteu (era de origem calvinista
e tivera um período de agnosticismo).[1]
Por
ora, porém, é preciso consignar que infelizmente Ariano Suassuna logo se fez
socialista ou algo assim, conquanto não marxista (repudiava tanto os Estados
Unidos como a União Soviética). E, se não ter sido marxista não o livra da mancha de ter
sido socialista, podem porém encontrar-se algumas razões para que homem e
artista tão profundo aderisse a uma doutrina iníqua.
Entre
tais possíveis razões, está primeiramente o assassinato de seu pai, João
Suassuna, em 1930, quando Ariano era ainda criança. O nosso artista atribuía o
crime à família de João Pessoa, governador da Paraíba, candidato a vice-presidente
na chapa de Getúlio Vargas, e ele próprio também assassinado. Ora, seu pai
identificava-se com a luta contra as políticas que assolavam (verdadeiramente!)
o Nordeste. Pode objetar-se que tal razão é “psicologista”. Mas deixemos Ariano
mesmo falar sobre a morte de seu pai em seu discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras:
“Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa
forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro
de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do
que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo
tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos
outros, das palavras que o pai deixou”.
Ou neste tocante soneto elegíaco:
Aqui
morava um rei quando eu menino
Vestia
ouro e castanho no gibão,
Pedra
da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava
junto ao meu, seu coração.
Para
mim, o seu cantar era Divino,
Quando
ao som da viola e do bordão,
Cantava
com voz rouca, o Desatino,
O Sangue,
o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram
meu pai. Desde esse dia
Eu me
vi, como cego, sem meu guia
Que
se foi para o Sol, transfigurado.
Sua
efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele,
a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada
de Ouro em pasto ensanguentado.
Quem
não conseguir ver aqui a alma de um poeta exposta em suas fibras mais sensíveis
não será capaz de entender jamais, em toda a sua profundidade, a arte.
Mas
quase certamente também outra razão terá concorrido para sua adesão –
equivocada, repita-se – a certo socialismo de contorno algo indefinido: sua repulsa
à república golpista que derrubou iniquamente o império e que sempre se fundou
num sistema partidário-oligárquico. E essa repulsa não era somente de
Suassuna: é minha também, e deveria ser de muitos mais. E era de Antônio
Conselheiro e de seu arraial de Canudos. Com efeito, aquele ex-cangaceiro
convertido ao catolicismo reuniu outros ex-cangaceiros em Canudos para resistir à república golpista e defender
a volta da monarquia e do estado confessional católico. Praticamente, porém, não
houve membro da hierarquia da Igreja brasileira que os orientasse, senão que
essa mesma hierarquia não só se calou diante do massacre de Canudos, mas
convenceu os emissários do Papa Pio X de que era o exército brasileiro, maçônico e
positivista, o que tinha razão.
Mas
não tinha: por rudes e toscos que fossem os de Canudo, a verdade estava com
eles. É o que lembra o nosso Ariano Suassuna neste belo artigo escrito em 1999 (para
a Folha de São Paulo) e com o qual encerro este primeiro escrito.
«Canudos e o Exército
O
que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo como nas grandes
cidades brasileiras, foi o choque do Brasil “oficial e mais claro” contra o
Brasil “real e mais escuro”. Ao Brasil oficial e mais claro que não é somente “caricato
e burlesco”, como afirmou um Machado de Assis, momentaneamente perturbado por
sua justa indignação, pertenciam algumas das melhores figuras do patriciado do
tempo de Euclydes da Cunha: civis e políticos como Prudente de Moraes, ou
militares como o general Machado Bittencourt.
Bem-intencionados
mas cegos, honestos mas equivocados, estavam convencidos de que o Brasil real
de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário invadir, assolar
e destruir. O civil que começou a reparar esse erro doloroso foi Euclydes da
Cunha. O militar foi o major Henrique Severiano, grande herói de Canudos, do
lado do Exército. Através de sua bela morte, acendeu ele uma chama que,
juntamente com a de Euclydes da Cunha, temos todos nós – intelectuais,
políticos, padres, soldados – o dever de levar fraternalmente adiante.
Conta-se, em Os Sertões, sobre o
incêndio dos últimos dias de Canudos: “O comandante do 25º batalhão, major
Henrique Severiano, era uma alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega
uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a
nos braços; aconchegou-a do peito criando, com um belo gesto carinhoso, o único
traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz e salvou-a. Mas expusera-se.
Baqueou malferido, falecendo poucas horas depois”.
A
meu ver, tal seria o militar simbólico, emblema do verdadeiro soldado
brasileiro, capaz de apoiar um movimento em favor do povo,[2]
também simbolicamente representado aí por essa criança, iluminada entre as
chamas do seu martírio.
Euclydes
da Cunha, formado, como todos nós, pelo Brasil oficial, falsificado e
superposto, saiu de São Paulo como seu fiel adepto positivista, urbano e “modernizante”.
E, de repente, ao chegar ao sertão, viu-se encandeado e ofuscado pelo Brasil
real de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Sua intuição de escritor de
gênio e seu nobre caráter de homem de bem colocaram-no imediatamente ao lado dele,
para honra e glória sua. Mas a revelação era recente demais, dura demais,
espantosa demais. De modo que, entre outros erros e contradições, só lhe
ocorreu, além da corajosa denúncia contra o crime, pregar uma “modernização”
que consistiria, finalmente, em conformar o Brasil real pelos moldes da rua do
Ouvidor e do Brasil oficial. Isto é, uma modernização falsificadora e falsa, e
que, como a que estão tentando fazer agora, é talvez pior do que uma invasão
declarada. Esta apenas destrói e assola, enquanto a falsa modernização, no
campo como na cidade, descaracteriza, assola, destrói e avilta o povo do Brasil
real.»
terça-feira, 13 de setembro de 2016
Campanha pela publicação de "Do Reino e outros escritos", de S. Tomás de Aquino (com tradução e apresentação de Carlos Nougué)
O selo editorial Armada, em uma atitude
inédita e ousada, lançou uma campanha para a publicação de seis títulos
consecutivos. Um deles, o terceiro, é de Santo Tomás de Aquino, traduzido e
prefaciado por Carlos Nougué e intitulado Do
Reino e outros escritos. Nele estarão os mais importantes escritos
políticos e legais do santo Doutor (De
regno e questões da Suma Teológica),
nos quais o autor trata, entre outras coisas, da ordenação do poder temporal ao
espiritual, das diversas formas de regime político e da escolha do mal político
menor, assuntos, aliás, da mais candente atualidade. O livro pode ser adquirido
clicando no link a seguir.
sábado, 10 de setembro de 2016
Da Arte de Traduzir
Carlos Nougué
I
A Tradução, arte subalternada à Linguagem e à Gramática, tem
por duplo objeto 1) o discurso ou o texto por traduzir e 2) seu destinatário, ou
seja, fazer compreensível a este, em sua língua, o dito ou o escrito em outra
língua; e tem por fim contra-arrestar a própria multiplicidade das línguas. Com
efeito, a linguagem visa à comunicabilidade universal entre os homens – ou seja,
a atender à sua natureza social e política –, e a multiplicidade linguística vai
a contrapelo dessa tendência e natureza, razão por que diz com toda a razão
Aristóteles que os que falam línguas diferentes não convivem bem.[1]
II
Mas a Tradução é um gênero que se divide em duas espécies: a
Tradução Oral e a Tradução Escrita. Esta, por sua vez, também é gênero de duas
espécies: a Tradução Stricto Sensu e
a Tradução Literária. Esta última,
todavia, é igualmente um gênero, que, por seu turno, se divide em três espécies:
a Tradução Poética, a Tradução Dramática e a Tradução de Prosa Literária.
Ademais, e para complicar um pouco o assunto, muitos filósofos, teólogos,
historiadores... se valem de recursos literários como arte aplicada, com o que
o que os traduz tem de valer-se de recursos tradutórios hauridos da Tradução
Literária. Como se fora pouco, todo tradutor multilíngue sabe que uma coisa é
traduzir do espanhol ao português, outra do francês ao português, outra do latim
ao português... Que não implicará, então, traduzir do chinês ao português!
O que porém distingue exatamente a Tradução Stricto Sensu e a Tradução Literária? E de que necessita o tradutor
para ser tradutor literário?
III
A Tradução Stricto Sensu
simplesmente verte[2] a determinada
língua o escrito em outra língua. Mas a Tradução Literária, se igualmente verte
a determinada língua o escrito em outra língua, não o faz senão enquanto ambas as
línguas são mera matéria para outra arte: a Poética.[3]
Com efeito, como escrevi na Suma Gramatical
da Língua Portuguesa ao tratar da
pontuação, “há que repetir: à Poética, o poético. E
repetimo-lo até porque, ainda que lido, qualquer conjunto de versos entre dois
sinais de pontuação final tem entoação ditada não principalmente pela expressão
de ideias ou de sentimentos, mas por sua mesma forma poética (no caso
d’Os Lusíadas, epopeia vazada em versos decassílabos heroicos, ou seja,
aqueles em que o acento tônico recai na sexta e na décima sílaba). O exemplo d’Os Lusíadas pode
dizer-se frase,
sim, mas apenas analogicamente, porque a frase propriamente dita, com seu sinal de
pontuação final, é signo de algo dito com certa entoação linguística, ao passo
que a frase camoniana é signo de algo dito, antes
de tudo, insista-se, com certa entoação
poética”. Que quero dizer aqui com tudo isso?
Que, conquanto o tradutor literário verta a dada língua outra língua, não o faz
senão para manter a forma literária que se valeu desta outra
língua como de sua matéria. Naturalmente, tal fim – manter a forma literária vazada em outra língua –
é perfeitamente “assimptótico”,[4]
e o grau de seu êxito depende de múltiplas variáveis, como a distância entre as
línguas entre as quais se fará o trânsito tradutório: com efeito, é muito mais
fácil manter a forma literária quando
se traduz do espanhol ao português do que quando se traduz do japonês ao português.
IV
O tradutor literário supõe uma série de predisposições e de domínios:
capacidade para traduzir e certa capacidade literária,[5]
domínio da gramática e da literatura tanto da língua para a qual traduz como
da(s) língua(s) das quais traduz... – e radical humildade, porque a Tradução Literária
não é mais que um ofício serviçal: está a serviço da arte alheia.
V
Pois bem, é de tudo isso e de muito mais – os princípios e as
técnicas da Tradução Literária – que tratarei no curso online de três aulas (de duas horas cada uma) O Que É a Tradução Literária:
que começará na próxima quinta-feira. Nele tentarei transmitir
minha experiência de tradutor literário de várias línguas ao português que
conta em sua bagagem mais de trezentos livros traduzidos, de Quevedo a Cícero,
de Cervantes a Santo Tomás de Aquino.
Em outubro, ademais, ministrarei outro curso de
características similares, mas sobre a Tradução
[em geral] do Espanhol ao Português:
Os dois cursos
ministrar-se-ão pela Escola de Tradutores:
Muito obrigado desde já
aos que se inscreverem.
[1] Estudo-o detidamente tanto na Suma Gramatical da Língua Portuguesa (É
Realizações) como no primeiro opúsculo de Estudos
Tomistas (Edições Santo Tomás), “Gramática, Arte Subalternada à Lógica”.
[2] Não há a menor
distinção semântica entre traduzir, transladar e verter.
[3] A Poética constitui um
gênero cujas espécies são justamente a Poesia, o Drama e a Prosa Artística.
[4] Em geometria, assímptota é a reta que se
aproxima indefinidamente de determinada curva sem que, todavia, haja
possibilidade de as duas virem a coincidir.
[5] Não necessariamente o
tradutor literário há de ser, ele mesmo, escritor literário. Por vezes, aliás,
sê-lo dificulta o assumir a “personalidade” artística do escritor que se traduz. Basta que o tradutor seja ótimo leitor literário, saiba escrever em geral e tenha desenvolvido a capacidade de traduzir. Com efeito, a arte de traduzir é um hábito intelectual distinto do da arte literária. Mas nada impede que um escritor literário também tenha capacidade tradutória e, pois, capacidade para despir-se de sua “personalidade” artística a fim de revestir-se da de outro.
quinta-feira, 8 de setembro de 2016
“Sacrorum Antistitum”, Motu Proprio de SAN PÍO X. Algunas normas para rechazar el peligro del modernismo
|
||
Venerables
hermanos: Salud y bendición apostólica
El
peligro del modernismo subsiste
Nos
parece que a ningún Obispo se le oculta que esa clase de hombres, los
modernistas, cuya personalidad fue descrita en la encíclica Pascendi dominici
gregis (1), no han dejado de maquinar para perturbar la paz de la Iglesia.
Tampoco han cesado de atraerse adeptos, formando un grupo clandestino;
sirviéndose de ello inyectan en las venas de la sociedad cristiana el virus
de su doctrina, a base de editar libros y publicar artículos anónimos o con
nombres supuestos. Al releer Nuestra carta citada y considerarla atentamente,
se ve con claridad que esta deliberada astucia es obra de esos hombres que en
ella describíamos, enemigos tanto más temibles cuanto que están más cercanos;
abusan de su ministerio para ofrecer su alimento envenenado y sorprender a
los incautos, dando una falsa doctrina en la que se encierra el compendio de
todos los errores.
Ante
esta peste que se extiende por esa parcela del campo del Señor, donde
deberían esperarse los frutos que más alegría tendrían que darnos,
corresponde a todos los Obispos trabajar en la defensa de la fe y vigilar con
suma diligencia para que la integridad del divino depósito no sufra
detrimento; y a Nos corresponde en el mayor grado cumplir con el mandato de
nuestro Salvador Jesucristo, que le dijo a Pedro -cuyo principado ostentamos,
aunque indignos de ello-: Confirma a tus hermanos. Por este motivo, es decir,
para infundir nuevas fuerzas a las almas buenas, en esta batalla que estamos
manteniendo, Nos ha parecido oportuno recordar literalmente las palabras y
las prescripciones de Nuestro referido documento:
«Os rogamos, pues, y os instamos para que en cosa de tanta importancia no falte vuestra vigilancia, vuestra diligencia, vuestra fortaleza, ni toleréis en ello lo más mínimo. Y lo que a vosotros os pedimos y de vosotros esperamos, lo pedimos y lo esperamos de todos los pastores de almas y de los que enseñan a los jóvenes clérigos, y de modo especial lo esperamos de los maestros superiores de las Ordenes Religiosas.
Los
estudios de filosofía y teología
|
quarta-feira, 7 de setembro de 2016
“Doctoris Angelici – Sobre o estudo da doutrina de Santo Tomás de Aquino”, de São Pio X
DOCTORIS ANGELICI
Motu proprio
PAPA SÃO PIO X
Sobre o estudo da doutrina de Santo Tomás de Aquino
A filosofia escolástica, base dos estudos sagrados
Nenhum católico sincero pode pôr em dúvida a seguinte afirmação do
Doutor Angélico: Regular o estudo compete, de modo particular, à autoridade
da Sé Apostólica que governa a Igreja universal, e a isto provê por meio de um
plano geral de estudos.[1]
Em várias ocasiões, cumprimos este magno dever de Nosso ofício, principalmente
quando em nossa carta Sacrorum
antistitum, de
1 de setembro de 1910, nos dirigíamos a todos os Bispos e aos
Superiores das Ordens Religiosas, os quais têm o dever de atender à educação
dos seminaristas, e os advertíamos: “No que se refere aos estudos, queremos e
mandamos determinantemente que como fundamento dos estudos sagrados se ponha a
filosofia escolástica… É importante notar que, ao prescrever que se siga a filosofia
escolástica, Nos referimos principalmente ao que ensinou Santo Tomás de
Aquino: tudo o que Nosso Predecessor decretou acerca dela queremos que continue
em vigor, e, como se fosse necessário, repetimo-lo e confirmamo-lo, e
mandamos que seja observado estritamente por todos. Os Bispos deverão, no caso de
que disto se houvesse descuidado nos Seminários, urgir e exigir que de agora em
diante se observe. Igualmente mandamos aos Superiores das Ordens Religiosa”.
Referimo-nos aos princípios de Santo Tomás
Como havíamos dito que havia que seguir principalmente a
filosofia de Santo Tomás, e não dissemos unicamente, alguns creram
cumprir com Nosso desejo, ou ao menos creram não ir contra este Nosso desejo,
ensinando a filosofia de qualquer dos Doutores escolásticos, ainda que seja
oposta aos princípios de Santo Tomás. Mas equivocam-se plenamente. Está claro
que, ao estabelecer como principal guia da filosofia escolástica a Santo Tomás,
nos referimos de modo especial a seus princípios, nos quais essa filosofia se
apoia. Não se pode admitir a opinião de alguns já antigos, segundo ao qual é
indiferente, para a verdade da Fé, o que cada qual pense a respeito das coisas
criadas, contanto que a ideia que se tenha de Deus seja correta, já que um
conhecimento errôneo acerca da natureza das coisas leva a um falso conhecimento
de Deus; por isso se devem conservar santa e invioladamente os princípios
filosóficos estabelecidos por Santo Tomás, a partir dos quais se aprende a
ciência das coisas criadas de maneira congruente com a Fé.[2], se refutam os
erros de qualquer época, se pode distinguir com certeza o que somente a Deus
pertence e não se pode atribuir a nada mais,[3] se ilustra com toda a clareza
tanto a diversidade como a analogia que há entre Deus e suas obras. O Concílio
Lateranense IV expressava assim esta diversidade e esta analogia: “Quanto mais
semelhança se afirme entre o Criador e a criatura, mais se há de afirmar a
dessemelhança”.[4]
Estes princípios são como o fundamento de toda e qualquer ciência
Ademais, falando em geral, estes princípios de Santo Tomás não encerram nada
além do que já haviam descoberto os mais importantes filósofos e Doutores da
Igreja, meditando e argumentando sobre o conhecimento humano, sobre a natureza
de Deus e das coisas, sobre a ordem moral e a consecução do fim último. Com um
engenho quase angélico, desenvolveu e acrescentou toda essa quantidade de
sabedoria recebida dos que o haviam precedido, e empregou-a para apresentar a
doutrina sagrada à mente humana, para ilustrá-la e para dar-lhe firmeza;[5] por
isso, a sã razão não pode deixar de tê-la em conta, e a Religião não pode
consentir que seja menosprezada. Tanto mais que, se a verdade católica se vê
privada da valiosa ajuda que lhe prestam estes princípios, não poderá ser
defendida buscando, em vão, elementos nessa outra filosofia que compartilha, ou
ao menos não refuta, os princípios em que se apoiam o Materialismo, o Monismo,
o Panteísmo, o Socialismo e as diversas classes de Modernismo.
Os pontos mais importantes da filosofia de Santo Tomás não devem ser
considerados como algo opinável, que se possa discutir, senão que são como os
fundamentos em que se assenta toda a ciência do natural e do divino. Se forem
rechaçados estes fundamentos ou se forem pervertidos, seguir-se-á
necessariamente que aqueles que estudam as ciências sagradas nem sequer poderão
captar o significado das palavras com que o magistério da Igreja expõe os
dogmas revelados por Deus.
Por isso quisemos advertir aqueles que se dedicam a ensinar a
filosofia e a sagrada teologia de que, se se afastam das pegadas de Santo
Tomás, principalmente em questões de metafísica, não será sem graves danos.
Este é Nosso pensamento:
Mas agora dizemos, ademais, que não só não seguem a Santo Tomás mas se apartam totalmente deste Santo Doutor aqueles que interpretam
distorcidamente ou contradizem os mais importantes princípios e afirmações de
sua filosofia. Se alguma vez Nós ou Nossos antecessores aprovamos com
particulares louvores a doutrina de um autor ou de um Santo, se ademais aconselhamos
que se divulgasse e se defendesse essa doutrina, é porque foi comprovado que
está de acordo com os princípios
de Santo Tomás ou que absolutamente não os contradiz.
Cremos Nosso dever Apostólico expor e mandar tudo isto, para que em
assunto de tanta importância todas as pessoas que pertencem tanto ao Clero
regular como ao secular considerem seriamente qual é Nosso pensamento e para
que o ponham em prática com decisão e diligência. Porão nisto particular
empenho os professores de filosofia cristã e de sagrada teologia, que devem ter
sempre presente que não será lhes dada a faculdade de ensinar para que exponham
a seus alunos as opiniões pessoais que tenham acerca de sua disciplina, senão
para que exponham as doutrinas plenamente aprovadas pela Igreja.
Concretamente, no que se refere à sagrada teologia, é Nosso desejo que
seu estudo se leve a cabo sempre à luz da filosofia que citamos; nos
Seminários, com professores competentes, poderão utilizar-se livros de autores
que exponham de maneira resumida as doutrinas tomadas de Santo Tomás; estes
livros, quando bem elaborados, são muito úteis.
Utilizar o texto da Suma Teológica
Quando porém se trata de estudar mais profundamente esta disciplina,
como se deve fazer nas Universidades, nos Ateneus e em todos os Seminários e
Institutos que têm a faculdade de conferir graus acadêmicos, é absolutamente
necessário – como sempre se fez e nunca se deve deixar de fazer – que nas aulas
se explique com a própria Suma Teológica: os comentários deste livro farão que se compreendam com
maior facilidade e que recebam melhor luz os decretos e os documentos que a
Igreja docente publica. Nenhum Concílio celebrado posteriormente à santa morte
deste Doutor deixou de utilizar sua doutrina. A experiência de tantos séculos
põe de manifesto a verdade do que afirmava Nosso Predecessor João XXII: “(Santo
Tomás) deu mais luz à Igreja que todos os demais Doutores: com seus livros, um
homem aproveita mais em um ano que com a doutrina dos outros em toda a sua vida”.[6]
São Pio V voltou a afirmar isto mesmo ao declarar Doutor da Igreja universal a
Santo Tomás no dia de sua festa: “A providência de Deus onipotente quis que,
desde que o Doutor Angélico foi incluído no elenco dos Santos, por meio da
segurança e da verdade de sua doutrina, aparecessem desarticuladas e
confundidas muitas das heresias que surgiram, como se pôde comprovar já desde muito
tempo e, mais recentemente, no Concílio de Trento; por isso estabelecemos que
sua memória seja venerada com maior agradecimento e maior piedade que até
agora, pois por seus méritos a terra inteira se vê continuamente livre de erros
deletérios”.[7] E, por fazer referência a outros elogios, entre muitos outros
que lhe dedicaram Nossos Predecessores, trazemos com muito gosto à colação as
palavras de Bento XIV, cheias de elogios a todos os escritos de Santo Tomás,
particularmente à Suma Teológica: “Muitos Romanos Pontífices,
predecessores Nossos, honraram sua doutrina (a de Santo Tomás) como Nós mesmos fizemos
nos diferentes livros que escrevemos, depois de estudar e de assimilar com
afinco a doutrina do Doutor Angélico, e sempre Nós aderimos com gosto a ela,
confessando com toda a sensatez que, se há algo bom nestes livros, não se deve
de nenhum modo a Nós, senão que se há de atribuir ao Mestre”.[8]
Assim, “para que a genuína e íntegra doutrina de Santo Tomás floresça na
instrução, no que teremos grande empenho”, e para que desapareça “a maneira de
ensinar que tem como ponto de apoio a autoridade e o capricho de cada mestre” e
que, por isso mesmo, “tem fundamento instável, que dá origem a opiniões
diversas e contraditórias… não sem grave dano para a ciência cristã”,[9]
queremos, mandamos e preceituamos que aqueles que se entregam à instrução da
sagrada teologia nas Universidades, nos Liceus, nos Colégios, nos Seminários, nos
Institutos que por indulto apostólico tenham a faculdade de conferir graus acadêmicos,
utilizem como texto para suas lições a Suma Teológica de Santo
Tomás, e que exponham as lições na língua latina; e deverão levar a efeito esta
tarefa pondo interesse em que os ouvintes se afeiçoem a este estudo.
Isto já se faz em muitos Institutos, e é de louvar; também foi desejo
dos Fundadores das Ordens Religiosas que em suas casas de formação assim se
fizesse, com a decidida aprovação de Nossos Predecessores; e os homens santos
posteriores a Santo Tomás de Aquino não tiveram outro supremo mestre na
doutrina que Tomás. Desta forma, e não de outra, não só se conseguirá restituir
à teologia sua primigênia categoria, senão que também às demais disciplinas
sagradas se lhes conferirá a importância que cada uma tem, e todas rejuvenescerão.
Medidas disciplinares
Por tudo isso, sucessivamente, não se concederá a nenhum Instituto a
faculdade de conferir graus acadêmicos na sagrada teologia se não se cumpre fielmente
o que nesta carta prescrevemos. Os Institutos ou as Faculdades, as Ordens e as Congregações Religiosas que já
tem legitimamente a faculdade de outorgar graus acadêmicos ou outros títulos em
teologia, ainda que somente dentro da própria instituição, serão privados dessa
faculdade ou a perderão se, no prazo de três anos, não se adaptarem
escrupulosamente a estas prescrições Nossas, ainda quando não possam cumpri-lo
sem culpa alguma de sua parte.
Estabelecemos tudo isto, sem que nada obste em contrário.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de junho de 1914, ano undécimo
de Nosso Pontificado.
PIO PAPA X
NOTAS
(1) Opúsculo contra
impugnantes Dei cultum et religionem, c. III.
(2) Contra Gentiles, II, c.
III y II..
(3) Ibidem. c. III; y
1, 9. XII, a 4; y 9 LIV, a I.
(4) Decretal II Damnamus
ergo, etc. Cfr. Santo Tomás. Questiones disputadas “De scientia Dei”, art. 11.
(5) Boecio. De Trinitate, 9.
II, art. 3.
(6) Alocução no
Consistório, 1318.
(7) Bula Mirabilis Deus,
11/4/1557.
(8) Actas Cop. Gen. O.P.,
tomo IX, p. 196.
(9) Leão XIII, Carta Qui te,
19/6/1886.
sábado, 3 de setembro de 2016
Os católicos liberais e a falência do Estado laico
Pe. João
Batista de A. Prado Ferraz Costa
Diante do avanço da legislação anticristã no Brasil, as lideranças dos
diversos grupos religiosos estão em busca de um entendimento para empreender
uma reação comum e impedir a aprovação de leis que agridem a consciência moral
da imensa maioria da população brasileira. Em princípio, essa atitude poderia ser
compreensível e louvável, contanto que observadas todas as regras da prudência
para afastar qualquer perigo de um falso ecumenismo e irenismo.
Mas há uma coisa que merece reparo nessa frente ampla das “religiões”
contra as forças maçônicas a serviço do Reino do Anticristo e da Sinagoga de
Satanás. É que no embate com o inimigo, quando este defende sua plataforma
política contra o Direito Divino e Natural e recusa uma interferência das
religiões nos debates em curso no Congresso Nacional argumentando que o Estado
brasileiro é laico, os representantes da frente ampla das religiões,
principalmente os católicos liberais, saem em defesa do Estado laico dizendo
que os verdadeiros inimigos deste são os políticos ateus ou agnósticos que se
mostram intolerantes e incapazes de manter um diálogo democrático com seus
adversários.
Dizem também os parlamentares da frente ampla das religiões que os seus
adversários estão esquecidos de que o Brasil não é um Estado ateu, visto que no
preâmbulo da Constituição Federal se diz que os representantes do povo
brasileiro promulgam a carta magna sob a proteção de Deus. E argumentam que
Estado laico significa que o Estado não sofre uma incidência direta das
instituições religiosas em sua organização.
Na minha opinião, toda essa arenga é um paralogismo, se não for, de
fato, um sofisma.
Com efeito, a invocação de Deus é anulada pelo princípio da soberania
popular consagrado nas constituições de todas as repúblicas modernas nascidas
da Revolução Francesa. Deus, nas constituições modernas, não significa nada,
ainda mais quando se sabe que, conforme o direito político moderno, o Estado
resulta de um contrato social. Soberano é o indivíduo que se põe no lugar de
Deus. Não prevalece o princípio de que Deus criou o homem como ser naturalmente
social.
Como deputados constituintes, os representantes do povo não declaram que
querem organizar o Estado conforme a lei de Deus ou da santa religião.
Portanto, a invocação de Deus (ou do Grande Arquiteto) na Constituição Federal
não passa de um artifício para selar um compromisso político ou tranquilizar as
consciências que ainda tenham algum sentimento religioso.
Quanto à argumentação de que Estado laico significa apenas que o Estado
não sofre incidência direta das instituições religiosas em sua organização, os
erros implicados nesta afirmação são mais insidiosos e difíceis de ser
compreendidos pelas pessoas mais simples.
Neste ponto, os católicos liberais agem com manifesta má-fé. Porque
querem dizer que Estado laico se opõe a Estado teocrático, ou seja, o Estado
dominado por uma casta sacerdotal. Isto é falso. O Estado laico (condenado
reiteradamente pelo magistério da Igreja e aceito pelo Vaticano II) opõe-se, na
história do ocidente, ao Estado confessional, sempre defendido pela Igreja como
o único Estado legítimo, conforme o plano de Deus que criou o homem para viver
como membro de duas sociedades perfeitas, distintas, mas em harmonia: a
sociedade civil e a sociedade eclesiástica, aquela subordinada a esta,
indiretamente, nas questões de interesse para a salvação eterna. Estado
confessional não é a mesma coisa que estado teocrático.
Ao contrário, o argumento dos católicos liberais da frente ampla das
religiões reduz a Igreja a uma instituição de direito privado que teria
direito, como qualquer outra instituição, a fazer-se ouvir no Congresso
Nacional. Será que esses católicos liberais não sabem que a lógica do Estado
laico é que a religião é assunto privado e a tal âmbito deve restringir-se e
que o Estado só cuida da esfera pública, ou seja, daquilo que é do interesse de
todos enquanto membros do Estado laico, não enquanto católicos, evangélicos,
judeus, muçulmanos, espíritas etc.?
Na verdade, o que falta aos católicos liberais é a honestidade de
reconhecer que o Estado laico é uma agressão contra a sociedade civil
majoritariamente católica, porque é um ordenamento jurídico, uma estrutura
burocrática, que se sobrepõe à sociedade não para servi-la mas para oprimi-la.
Não procede o argumento de que Estado laico significa dizer que o Estado
não manda na Igreja e a Igreja não manda no Estado, mas que tal separação não
impede que haja colaboração e boa convivência entre ambas as esferas.
Acabo de ler um artigo interessantíssimo de The Economist (traduzido
pel’O Estado de S. Paulo) a respeito da expansão do Islão sobre a Europa
e os vários problemas surgidos. A matéria diz que o Reino da Bélgica (que adota
o modelo de Estado laico propugnado pelos católicos liberais) subsidia o culto
e o ensino religioso nas escolas públicas e o Islão tem sido beneficiado: mais
de metade dos imãs é remunerada pelo governo e metade das crianças belgas opta
por aulas do Corão! A França, mais fiel à tradição republicana de um laicismo
radical que estabelece uma separação total entre religião e estado, vê-se agora
obrigada, pelas palavras do primeiro-ministro Manuel Valls, a promover o estudo
da religião islâmica sob a supervisão da República Francesa, a fim de impedir
que entre em seu território uma teologia islâmica incompatível com os “valores”
da sociedade secular.
Como se pode ver pela notícia acima, o Estado laico será destruído pelas
suas próprias mentiras e irresponsabilidades. A Bélgica promove, suavemente,
sua própria islamização; dentro de alguns anos deixará de ser um reino laico ao
gosto dos católicos adeptos da Dignitatis Humanae do Vaticano II
para transformar-se em república islâmica, talvez teocrática. A França, mais
pretensiosa em sua temeridade maçônica, tenta influenciar os estudos teológicos
corânicos como o fez com a teologia católica na época da Revolução.
Tudo indica, porém, que a Bélgica e a França, como de resto toda a União
Européia, morrerão pela força do veneno que engoliram. Merecido castigo.
Conta-se que o príncipe Filipe Von Hessen fez mais pela causa
protestante que milhares de livros do doutor Martinho Lutero. Hoje, os
católicos da declaração Dignitatis Humanae, os católicos
da frente ampla das religiões, fazem muito mais pela causa secularista do
que todos os escritores e panfletários da ideologia do gênero. Fazem mais do
que todos os imãs pelo avanço do Crescente sobre toda a antiga cristandade.
Anápolis, 25 de agosto de 2016.
Festa de São Luís Rei de França
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