C. N.
(Exposição)
Se todas as coisas
apetecem a Deus mesmo[1]
A maioria
das coisas apetece naturalmente a Deus – atenção! – implicitamente, não explicitamente. Para mostrá-lo, diga-se, com efeito,
que toda causa segunda só pode influir sobre seu efeito na medida em que recebe
da causa primeira – e Deus é a causa primeira de tudo e em todos os sentidos – a
virtude ou poder para isso. Pois bem, há quatro causas (a eficiente, a material,
a formal e a final), mas aqui não nos interessa senão duas delas (a eficiente e
a final). Desse modo, assim como para a causa eficiente (ou seja, a causa «fazedora»)
influir é agir, assim também para a causa final (ou seja, a causa das causas,
aquela em razão da qual ou em ordem à qual a causa eficiente faz algo) influir
é ser apetecida ou desejada. Por isso mesmo, assim como o agente ou causa eficiente
segunda só age graças à virtude ou poder que lhe vem do agente ou causa primeira,
assim também o fim segundo só é apetecido graças ao que lhe vem do fim primeiro
(também e mais propriamente dito último,
porque, embora seja o primeiro na intenção, é o último na consecução ou conseguimento):
porque, com efeito, de algum modo a causa segunda se assemelha à primeira. Desse
modo, assim como Deus, por ser o agente ou causa eficiente primeira, age em
todos os outros agentes (segundos), assim também Deus, por ser o fim último, é
apetecido por todos os outros fins (ou seja, todos os outros fins se ordenam a
Deus).
Mas isso,
se considerado em geral, é justo apetecer a Deus implicitamente. De fato, a virtude
ou poder da causa primeira está na causa segunda assim como os primeiros
princípios estão nas conclusões.[2] Mas reduzir analiticamente as conclusões a
princípios,[3] ou reduzir as causas segundas às primeiras, pertence
tão somente à virtude ou potência racional. Sendo assim, apenas a natureza racional
pode ordenar a Deus mesmo os fins segundos mediante certa análise ou resolução,
de maneira que apeteça a Deus explicitamente.
Desse modo, assim como nas ciências a conclusão só será correta mediante a redução
analítica aos primeiros princípios, assim também o apetite da criatura racional só será reto se apetecer explicitamente a Deus mesmo.
Acrescentem-se
as seguintes precisões.
• Deus pode
ser conhecido de dois modos: ou em si mesmo, ou em seus efeitos. Se conhecido
em si mesmo, ou seja, enquanto é por essência a própria bondade, não pode ser
amado por nós, nesta vida.[4] Nesta vida, não o podemos conhecer senão
por seus efeitos, ou seja, por sua criação, e só segundo isto, portanto, há de
ser apetecido ou amado.
• A criatura
racional é propriamente a única capaz de Deus, porque é a única que o pode amar
e conhecer explicitamente. Mas as demais criaturas participam de algum modo da
semelhança de Deus, e por isso a seu modo apetecem a Deus.
• Note-se porém
que para nós, nesta vida, a necessária
identidade entre Deus e o fim último do homem – ou seja, a felicidade ou
beatitude – não é evidente, ou seja, o homem não a reconhece necessariamente, ao contrário do que se dá, por exemplo, com o
fato de o quadrado ter lados e ângulos iguais ou com o de a soma de 1 + 1 ser
igual a 2: o reconhecimento deles pelo intelecto é de caráter necessitante. Com
efeito, diz Santo Tomás de Aquino: “Há bens particulares que não têm vinculação
necessária com a beatitude, porque se pode ser beato [bem-aventurado] sem eles.
A tais bens a vontade não adere necessariamente. Mas há outros bens que têm
vinculação necessária com a beatitude, ou seja, aqueles pelos quais o homem
adere a Deus, o único em que se encontra a verdadeira beatitude. Antes porém
que a necessidade dessa vinculação seja demonstrada pela certeza da visão da
divindade [a visão beatífica], a vontade não adere necessariamente a Deus nem
às coisas que são de Deus. Mas a vontade de quem vê a Deus por sua essência
adere necessariamente a Deus, assim como agora queremos necessariamente ser
felizes. É patente, portanto, que a vontade não quer necessariamente tudo o que
ela quer” (Suma Teológica, I, q. 82, a. 2).
Para que nesta vida se reconheça a identidade entre Deus e a felicidade do
homem, é preciso, antes de tudo, conhecer que Deus é, e, ademais, concluir por tal
identidade (o que muito ordinariamente depende da própria revelação divina);
ora, nem aquele conhecimento nem o objeto desta revelação são evidentes; logo,
nesta vida, nunca tal identidade se dará necessariamente.[5] Voltaremos
a este ponto.
(Continua.)
[1] Vide Santo Tomás de Aquino, De Verit. q. 22, a. 2; Super Sent. I,
d. 3, q. 1, a. 1, ad 2 e II, d. 1, q. 2, a. 1-2 ;
Cont. Gent. III, cap. 17-18;
Sum. Th. I, q. 6,
a. 1, ad 2 e q. 44, a. 4; Comp. Theol., cap. 100-101.
[2] Por exemplo, muitas conclusões da geometria se seguem
do princípio de que o todo é maior que a parte. Se pois se seguem deste
princípio, é porque este mesmo princípio se encontra nelas, assim como a causa
primeira se encontra na causa segunda.
[3] Ou seja, falando tecnicamente, resolvê-las em
princípios.
[4] Por isso, todavia, é amado em si mesmo pelos
que o veem por essência, ou seja, os homens e os anjos bem-aventurados. E, com
efeito, tanto mais se ama a Deus quanto mais se conhece a Deus mesmo. (Como se
verá, ademais, contra a equivocada opinião de Duns Scot, o bem-aventurado já
não pode pecar, porque seu intelecto já descansa na Verdade, e sua vontade já
está definitivamente fixada por uma caridade perfeita. Nesse sentido, o
bem-aventurado não apetece propriamente a Deus, senão que propriamente o ama.)
Por outro lado, nesta vida mais vale amar a Deus que conhecê-lo, e é justamente
segundo o grau deste amor que, na beatitude eterna, os bem-aventurados veem
mais ou menos perfeitamente a Deus. Nossa Senhora, por conseguinte, é o beato
humano que mais perfeitamente vê a Deus por essência.
[5] Cf. ainda para o tema, Santo
Tomás de Aquino, De veritate, X, 12, especialmente ad 5; XXII, 7; Suma contra os Gentios, I, I, 6 e 11; Suma Teológica, I, q. 2, a. 1, ad 1; I, q. 82, a. 1-2; etc. Em sentido
contrário, cf. por exemplo R. Garrigou-Lagrange, El realismo del principio de finalidad, op. cit., pp. 201-219; e Dios. I. Su
existencia, Madri, Ediciones Palabra, 1976, p. 240-270.
[1] Vide Santo Tomás de Aquino, De Verit. q. 22, a. 2; Super Sent. I,
d. 3, q. 1, a. 1, ad 2 e II, d. 1, q. 2, a. 1-2 ;
Cont. Gent. III, cap. 17-18;
Sum. Th. I, q. 6,
a. 1, ad 2 e q. 44, a. 4; Comp. Theol., cap. 100-101.
[2] Por exemplo, muitas conclusões da geometria se seguem
do princípio de que o todo é maior que a parte. Se pois se seguem deste
princípio, é porque este mesmo princípio se encontra nelas, assim como a causa
primeira se encontra na causa segunda.
[3] Ou seja, falando tecnicamente, resolvê-las em
princípios.
[4] Por isso, todavia, é amado em si mesmo pelos
que o veem por essência, ou seja, os homens e os anjos bem-aventurados. E, com
efeito, tanto mais se ama a Deus quanto mais se conhece a Deus mesmo. (Como se
verá, ademais, contra a equivocada opinião de Duns Scot, o bem-aventurado já
não pode pecar, porque seu intelecto já descansa na Verdade, e sua vontade já
está definitivamente fixada por uma caridade perfeita. Nesse sentido, o
bem-aventurado não apetece propriamente a Deus, senão que propriamente o ama.)
Por outro lado, nesta vida mais vale amar a Deus que conhecê-lo, e é justamente
segundo o grau deste amor que, na beatitude eterna, os bem-aventurados veem
mais ou menos perfeitamente a Deus. Nossa Senhora, por conseguinte, é o beato
humano que mais perfeitamente vê a Deus por essência.
[5] Cf. ainda para o tema, Santo
Tomás de Aquino, De veritate, X, 12, especialmente ad 5; XXII, 7; Suma contra os Gentios, I, I, 6 e 11; Suma Teológica, I, q. 2, a. 1, ad 1; I, q. 82, a. 1-2; etc. Em sentido
contrário, cf. por exemplo R. Garrigou-Lagrange, El realismo del principio de finalidad, op. cit., pp. 201-219; e Dios. I. Su
existencia, Madri, Ediciones Palabra, 1976, p. 240-270.