Carlos Nougué
1. A condenação do comunismo por
Pio XI nesta encíclica é infalível,
como se mostrará em alguma altura da série Da Necessidade de Resistir ao Magistério Conciliar (cujo próximo artigo se publicará na segunda-feira 16 de maio).
2. Mas esta mesma encíclica não
deixa de mostrar que foi o liberalismo o que preparou o terreno para o
comunismo.
3. Quão distante está desta encíclica
o magistério conciliar, que desde o Concílio Vaticano II se nega a condenar
formalmente o comunismo e que é radicalmente liberal! Em outras palavras, uma
vez que o liberalismo prepara o terreno para o comunismo, o magistério
conciliar, por liberal, também o faz.
4. Mais que isso: prepara o
advento do Anticristo.
*
* *
CARTA ENCÍCLICA
DIVINIS REDEMPTORIS
DIVINIS REDEMPTORIS
DE SUA SANTIDADE
PAPA PIO XI
PAPA PIO XI
AOS VENERÁVEIS
IRMÃOS,
PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS,
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS,
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O COMUNISMO ATEU
V - MINISTROS E
AUXILIARES DESTA OBRA SOCIAL DA IGREJA
INTRODUÇÃO
1. A promessa dum Redentor divino
ilumina a primeira página da história da humanidade; e assim a firmíssima
esperança de melhores dias, assim como suavizou a dor causada pela perda do paraíso
de delícias, assim foi acompanhando os homens através do seu caminho de
amarguras e inquietações, até que enfim, quando chegou a plenitude do tempo,
o nosso Salvador, vindo à terra, cumulou as ânsias dessa tão longa expectação
da humanidade e inaugurou para todos os povos uma nova civilização cristã, que
vence e quase imensamente supera a que algumas nações mais privilegiadas
atingiram, à custa dos maiores esforços e trabalhos.
2. Depois da miserável queda de
Adão, como conseqüência dessa mácula hereditária, começou a travar-se o duro
combate da virtude contra os estímulos dos vícios; e jamais cessou aquele
antigo e astuto tentador de enganar a sociedade com promessas falazes. É por
isso que, pelos séculos afora, as perturbações se têm sucedido umas às outras
até à revolução dos nossos dias, a qual ou já surge furiosa ou pavorosamente
ameaçada atear-se em todo o universo e parece ultrapassar em violência e
amplitude todas as perseguições que a Igreja tem padecido; a tal ponto que
povos inteiros correm perigo de recair em barbárie, muito mais horrorosa do que
aquela em que jazia a maior parte do mundo antes da vinda do divino Redentor.
3. Vós, sem dúvida, Veneráveis
Irmãos, já percebestes de que perigo ameaçador falamos: é do comunismo, denominado bolchevista e ateu, que se propõe como fim peculiar revolucionar
radicalmente a ordem social e subverter os próprios fundamentos da civilização
cristã.
I - ATITUDE DA IGREJA PERANTE O
COMUNISMO
CONDENAÇÕES ANTERIORES
4. Mas diante destas ameaçadoras
tentativas, não podia calar-se nem de fato se calou a Igreja Católica. Não se
calou esta Sé Apostólica, que muito bem conhece que tem por missão peculiar
defender a verdade, a justiça e todos os bens imortais, que o comunismo
despreza e impugna. Já desde os tempos em que certas classes de eruditos
pretenderam libertar a civilização e cultura humanística dos laços da religião
e da moral, os Nossos Predecessores julgaram que era seu dever chamar a atenção
do mundo, em termos bem explícitos, para as conseqüências da descristianização
da sociedade humana. E pelo que diz respeito aos erros dos comunistas, já em
1846, o Nosso Predecessor de feliz memória, Pio IX, os condenou solenemente, e
confirmou depois essa condenação no Sílabo. São estas as palavras que emprega
na Encíclica Qui pluribus: “Para aqui (tende) essa doutrina nefanda
do chamado comunismo, sumamente contrária ao próprio direito natural, a qual,
uma vez admitida, levaria à subversão radical dos direitos, das coisas, das
propriedades de todos e da própria sociedade humana” (Encíclica Qui
pluribus, 9 de novembro de 1846: Acta Pii IX, vol. I, pág. 13. Cf. Sílabo,
IV: A.A.S., vol. III, pág. 170). Mais tarde, outro Predecessor Nosso de imortal
memória, Leão XIII, na sua Encíclica Quod Apostolici muneris (28 de dezembro de
1878: Acta Leonis XIII, vol. I, pág. 40), assim descreveu distinta e
expressamente esses mesmos erros: “Peste mortífera, que invade a medula da
sociedade humana e a conduz a um perigo extremo”; e com a clarividência do
seu espírito luminoso demonstrou que o movimento precipitado das multidões para
a impiedade do ateísmo, numa época em que tanto se exaltavam os progressos da
técnica, tivera origem nos desvarios duma filosofia que de há muito porfia por
separar a ciência e a vida da fé da Igreja.
ATOS DO PRESENTE PONTIFICADO
5. Nós também no decurso do Nosso
Pontificado, com insistente solicitude fomos várias vezes denunciando as
correntes desta impiedade que víamos crescendo e rugindo cada vez mais
ameaçadoras. Efetivamente, quando em 1924 voltava da Rússia a Nossa missão de
socorro, numa alocução especial dirigida ao universo católico (18 de dezembro
de 1924: A.A.S., vol. XVI (1924), págs. 494-495), condenamos os erros e
processos dos comunistas. E pelas Encíclicas Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928:
A.A.S., vol. XX (1928), págs. 165-178), Quadragesimo anno (15 de maio de 1931:
A.A.S., vol. XXIII (1931), págs. 177-228), Caritate Christi (3 de maio de 1932: A.A.S.,
vol. XXIV (1932), págs. 177-194), Acerba animi (29 de setembro de 1932: A.A.S.,
vol. XXIV (1932), págs. 321-332), Dilectissima Nobis (3 de junho de 1933:
A.A.S., vol. XXV (1933), págs. 261-274), levantamos a voz em solenes protestos
contra as perseguições desencadeadas contra o nome cristão, tanto na Rússia,
como no México, como finalmente na Espanha. E estão ainda bem frescas na
memória as alocuções por Nós pronunciadas, o ano passado, quer por ocasião da
inauguração da Exposição mundial da Imprensa Católica, quer na audiência
concedida aos refugiados espanhóis, quer também em Nossa Mensagem radiofônica
pela festa do santo Natal. Até os mais encarniçados inimigos da Igreja, que
desde Moscou, sua capital, dirigem esta luta contra a civilização cristã, até
eles mesmos, com seus ataques ininterruptos, dão testemunho, não tanto por palavras
como por atos, que o Sumo Pontificado, ainda em nossos tempos, não só não
cessou de tutelar com toda a fidelidade o santuário da religião cristã, mas tem
dado voz de alarme contra o enorme perigo comunista, com mais freqüência e
maior força persuasiva que nenhum outro poder público deste mundo.
NECESSIDADE DE UM NOVO DOCUMENTO
SOLENE
6. Não obstante, posto que temos
renovado tão repetidamente estas paternais advertências, que vós, Veneráveis
Irmãos, em tantas cartas pastorais, algumas delas coletivas, diligentemente
comentastes e transmitistes aos fiéis, ainda assim este perigo, com o impulso
de hábeis agitadores, mais e mais se vai agravando de dia para dia. É por isso
que julgamos dever Nosso levantar de novo a voz; e fá-lo-emos por meio deste documento
de maior solenidade, como é costume desta Sé Apostólica, mestra da verdade; e
com tanto maior satisfação o faremos, quando é certo que assim correspondemos
aos desejos de todo o universo católico. Confiamos até que o eco da nossa voz
será acolhido de bom grado por todos aqueles que, de espírito liberto de
preconceitos, desejem sinceramente o bem da humanidade. Esta nossa confiança
vem em certo modo aumentá-la o fato de vermos estas Nossas admoestações
confirmadas pelos péssimos frutos, que Nós prevíramos e anunciáramos haviam de
brotar das idéias subversivas, e que de fato se vão pavorosamente multiplicando
nas regiões já dominadas pelo comunismo, ou ameaçam invadir rapidamente os
outros países do mundo.
7. Queremos, pois, mais uma vez
expor, como em breve síntese, os sofismas teóricos e práticos do comunismo,
como eles se manifestam principalmente nos princípios e métodos da ação do
bolchevismo: a esses sofismas, todos falsidade e ilusão, contrapor a luminosa
doutrina da Igreja; e de novo exortar a todos insistentemente a lançar mãos dos
meios, com que é possível não somente livrar e salvaguardar deste horrendo
flagelo a civilização cristã, a única em que pode subsistir uma sociedade
verdadeiramente humana, mas ainda fazê-la avançar, a passo cada dia mais
acelerado, para o genuíno progresso da humanidade.
II - DOUTRINA E FRUTOS DO
COMUNISMO
DOUTRINA
Falso ideal
8. A doutrina comunista
que em nossos dias se apregoa, de modo muito mais acentuado que outros sistemas
semelhantes do passado, apresenta-se sob a máscara de redenção dos humildes. E
um pseudo-ideal de justiça, de igualdade e de fraternidade universal no
trabalho de tal modo impregna toda a sua doutrina e toda a sua atividade dum
misticismo hipócrita, que as multidões seduzidas por promessas falazes e como
que estimuladas por um contágio violentíssimo lhes comunica um ardor e
entusiasmo irreprimível, o que é muito mais fácil em nossos dias, em que a
pouco eqüitativa repartição dos bens deste mundo dá como conseqüência a miséria
anormal de muitos. Proclamam com orgulho e exaltam até esse pseudo-ideal, como
se dele se tivesse originado o progresso econômico, o qual, quando em alguma
parte é real, tem explicação em causas muito diversas, como, por exemplo, a
intensificação da produção industrial, introduzida em regiões que antes nada
disso possuíam, a valorização de enormes riquezas naturais, exploradas com
imensos lucros, sem o menor respeito dos direitos humanos, o emprego enfim da
coação brutal que dura e cruelmente força os operários a pesadíssimos trabalhos
com um salário de miséria.
Materialismo evolucionista de
Marx
9. Ora, a doutrina que os comunistas
em nossos dias espalham, proposta muitas vezes sob aparências capciosas e
sedutoras, funda-se de fato nos princípios do materialismo chamado
dialético e histórico, ensinado por Karl Marx, de que os teóricos do
bolchevismo se gloriam de possuir a única interpretação genuína. Essa doutrina
proclama que não há mais que uma só realidade universal, a matéria, formada por
forças cegas e ocultas, que, através da sua evolução natural, se vai
transformando em planta, em animal, em homem. Do mesmo modo, a sociedade
humana, dizem, não é outra coisa mais do que uma aparência ou forma da matéria,
que vai evolucionando, como fica dito, e por uma necessidade inelutável e um
perpétuo conflito de forças, vai pendendo para a síntese final: uma sociedade
sem classes. É, pois, evidente que neste sistema não há lugar sequer para a
idéia de Deus; é evidente que entre espírito e matéria, entre alma e corpo não há
diferença alguma; que a alma não sobrevive depois da morte, nem há outra vida
depois desta. Além disso, os comunistas, insistindo no método dialético
do seu materialismo, pretendem que o conflito, a que acima Nos
referimos, o qual levará a natureza à síntese final, pode ser acelerado pelos
homens. É por isso que se esforçam por tornarem mais agudos os antagonismos que
surgem entre as várias classes, da sociedade, porfiando porque a luta de
classes, tão cheia, infelizmente, de ódios e de ruínas, tome o aspecto de uma
guerra santa em prol do progresso da humanidade; e até mesmo, porque todas as
barreiras que se opõem a essas sistemáticas violências, sejam completamente
destruídas, como inimigas do gênero humano.
A que se reduzem o homem e a
família
10. Além disso, o comunismo
despoja o homem da sua liberdade na qual consiste a norma da sua vida
espiritual; e ao mesmo tempo priva a pessoa humana da sua dignidade, e de todo
o freio na ordem moral, com que possa resistir aos assaltos do instinto cego.
E, como a pessoa humana, segundo os devaneios comunistas, não é mais do que,
para assim dizermos, uma roda de toda a engrenagem, segue-se que os direitos
naturais, que dela procedem, são negados ao homem indivíduo, para serem
atribuídos à coletividade. Quanto às relações entre os cidadãos, uma vez que
sustentam o princípio da igualdade absoluta, rejeitam toda a hierarquia e
autoridade, que proceda de Deus, até mesmo a dos pais; porquanto, como
asseveram, tudo quanto existe de autoridade e subordinação, tudo isso, como de
primeira e única fonte, deriva da sociedade. Nem aos indivíduos se concede
direito algum de propriedade sobre bens naturais ou sobre meios de produção;
porquanto, dando como dão origem a outros bens, a sua posse introduz
necessariamente o domínio de um sobre os outros. E é precisamente por esse
motivo que afirmam que qualquer direito de propriedade privada, por ser a fonte
principal da escravidão econômica, tem que ser radicalmente destruído.
11. Além disto, como esta
doutrina rejeita e repudia todo o caráter sagrado da vida humana, segue-se por
natural conseqüência que para ela o matrimônio e a família é apenas uma
instituição civil e artificial, fruto de um determinado sistema econômico: por
conseguinte, assim como repudia os contratos matrimoniais formados por vínculos
de natureza jurídico-moral, que não dependam da vontade dos indivíduos ou da
coletividade, assim rejeita a sua indissolúvel perpetuidade. Em particular,
para o comunismo não existe laço algum da mulher com a família e com o
lar. De fato, proclamando o princípio da emancipação completa da mulher, de tal
modo a retira da vida doméstica e do cuidado dos filhos que a atira para a
agitação da vida pública e da produção coletiva, na mesma medida que o homem.
Mais ainda: os cuidados do lar e dos filhos devolve-os à coletividade. Rouba-se
enfim aos pais o direito que lhes compete de educar os filhos, o qual se
considera como direito exclusivo da comunidade, e por conseguinte só em nome e
por delegação dela se pode exercer.
Em que se converteria a sociedade
12. Que viria a ser, então, a
sociedade humana, baseada em tais fundamentos materialistas? Viria a ser uma
coletividade, sem outra hierarquia mais do que a derivada do sistema econômico.
Teria por missão única a produção de riqueza por meio do trabalho coletivo, e
único fim o gozo dos bens da terra num paraíso ameníssimo de delícias onde cada
qual “produziria conforme as suas forças e receberia conforme as suas
necessidades”. É também de notar que o comunismo reconhece igualmente à
coletividade o direito, ou antes a arbitrariedade quase ilimitada, de sujeitar
os indivíduos ao jugo do trabalho coletivo, sem a menor consideração do seu
bem-estar pessoal; mais ainda, o direito de os forçar contra a sua vontade e
até pela violência. E nesta sociedade comunista proclamam que tanto a moral
como a ordem jurídica não brotam de outra fonte mais do que do sistema
econômico do tempo o que, por conseguinte, de sua natureza são valores
terrestres transitórios e mudáveis. Em suma, para resumirmos tudo em poucas
palavras, pretendem introduzir uma nova ordem de coisas e inaugurar uma era
nova de mais alta civilização, produto unicamente duma cega evolução da
natureza: “uma humanidade que tenha expulsado a Deus da terra”.
13. E, quando as qualidades e
disposições de espírito, que se requerem para realizar semelhante sociedade,
tiverem sido alcançadas por todos em tal grau, que por fim tenha surgido aquele
ideal utópico de sociedade, que eles sonham, sem distinção de classes então o
Estado político, que ao presente unicamente se organiza como instrumento de
domínio dos capitalistas sobre os proletários, perderá totalmente a razão de
ser e, por necessidade natural, se dissolverá! Todavia, enquanto se não tiver
chegado a essa idade de ouro, os comunistas empregam o governo e o poder
público como o mais eficaz e universal instrumento, para atingirem o seu fim.
14. Aqui tendes, Veneráveis
Irmãos, diante dos olhos do espírito, a doutrina que os comunistas bolchevistas
e ateus pregam à humanidade como novo evangelho, e mensagem salvadora de
redenção! Sistema cheio de erros e sofismas, igualmente oposto à revelação
divina e à razão humana; sistema que, por destruir os fundamentos da sociedade,
subverte a ordem social, que não reconhece a verdadeira origem, natureza e fim
do Estado; que rejeita enfim e nega os direitos, a dignidade e a liberdade da
pessoa humana.
DIFUSÃO
Promessas fascinadoras
15. Mas donde vem que tal
sistema, que a ciência já há muito ultrapassou e a realidade dos fatos vai cada
dia refutando, possa difundir-se tão rapidamente por todas as partes do mundo?
Facilmente poderemos compreender esse fenômeno, se refletirmos que são muito
poucas as pessoas que têm penetrado a fundo a verdadeira natureza e fim do comunismo;
ao passo que são muitíssimos os que cedem facilmente à tentação, habilmente
apresentada sob as promessas mais deslumbrantes. É que os propagandistas deste
sistema afivelam esta máscara de verdade, a saber: que não querem outra coisa
mais que melhorar a sorte das classes trabalhadoras; que pretendem não somente
dar remédio oportuno aos abusos provocados pela economia liberal, mas
também conseguir uma distribuição mais eqüitativa dos bens terrenos: objetivos
estes que certamente ninguém nega se possam atingir por meios legítimos.
Contudo os comunistas, por esses processos, explorando sobretudo a crise
econômica, que em toda a parte se sente, conseguem atrair ao seu partido
aqueles mesmos que, em virtude da doutrina que professam, abominam os
princípios do materialismo e os monstruosos crimes que não raro se
perpetram. E, como em qualquer erro há sempre qualquer centelha de verdade,
como acima vimos que sucedia até mesmo nesta questão, este aspecto de verdade
põem-no em relevo com requintada habilidade, com o fim de dissimularem e
ocultarem, quanto convém, aquela odiosa e desumana brutalidade dos princípios e
dos métodos de comunismo; e desse modo conseguem seduzir até espíritos
nada vulgares, os quais muitas vezes a tal ponto se deixam entusiasmar que eles
próprios se tornam uma espécie de apóstolos, que vão extraviar com esses erros
sobretudo os jovens, facilmente expostos a se deixarem enredar por esses
sofismas. Além disso, os arautos do comunismo não ignoram que podem
tirar partido, tanto dos antagonismos de raça como das dissensões e lutas em
que se entrechocam as diferentes facções políticas, como enfim daquela
desorientação que lavra no campo da ciência, onde a própria idéia de Deus
emudece, para se infiltrarem nas Universidades e corroborarem os princípios da
sua doutrina com argumentos pseudocientíficos.
O liberalismo preparou o caminho
ao comunismo
16. Mas, para mais facilmente se
compreender como é que puderam conseguir que tantos operários tenham abraçado,
sem o menor exame, os seus sofismas, será conveniente recordar que os mesmos
operários, em virtude dos princípios do liberalismo econômico, tinham sido
lamentavelmente reduzidos ao abandono da religião e da moral cristã. Muitas
vezes o trabalho por turnos impediu até que eles observassem os mais graves
deveres religiosos dos dias festivos; não houve o cuidado de construir igrejas
nas proximidades das fábricas, nem de facilitar a missão do sacerdote; antes
pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada dia mais e mais se foram
favorecendo as manobras do chamado laicismo. Aí estão, agora, os frutos
amargosíssimos dos erros que os Nossos Predecessores e Nós mesmo mais de uma
vez temos preanunciado. E assim, por que nos havemos de admirar, ao vermos que
tantos povos, largamente descristianizados, vão sendo já pavorosamente
inundados e quase submergidos pela vaga comunista?
Propaganda astuta e vastíssima
17. Além disso, a difusão tão
rápida das idéias comunistas que se vão sorrateiramente infiltrando por países
grandes ou pequenos, cultos ou menos civilizados, e até nas partes mais remotas
do globo, tem sem dúvida por causa esse fanatismo de propaganda encarniçada,
como talvez nunca se viu no mundo. E essa propaganda, emanada duma fonte única,
adapta-se astutamente às condições particulares dos povos; dispõe de grandes meios
financeiros, de inúmeras organizações, de congressos internacionais
concorridíssimos, de forças compactas e bem disciplinadas; propaganda quer por
jornais, revistas e folhas volantes, pelo cinema, pelo teatro, pela radiofonia,
pelas escolas enfim e pelas Universidades, pouco a pouco vai invadindo todos os
meios ainda os melhores, sem darem talvez pelo veneno, que cada vez mais vai
infeccionando os espíritos e os corações.
Conspiração do silêncio na
imprensa
18. Outro auxiliar poderoso, que
contribui para a avançada do comunismo, é sem dúvida a conspiração do silêncio
na maior parte da imprensa mundial, que não se conforma com os princípios
católicos. Conspiração dizemos: porque aliás, não se explica facilmente como é
que uma imprensa, tão ávida de esquadrinhar e publicar até os mínimos
incidentes da vida cotidiana, sobre os horrores perpetrados na Rússia, no
México e numa grande parte de Espanha pode guardar, há tanto tempo, absoluto
silêncio; e da seita comunista, que domina em Moscou e tão largamente se
estende pelo universo em poderosas organizações, fala tão pouco. Mas todos
sabem que esse silêncio é em grande parte devido a exigências duma política,
que não segue inteiramente os ditames da prudência civil; e é aconselhável e
favorecido por diversas forças ocultas que já há muito porfiam por destruir a
ordem social cristã.
DEPLORÁVEIS CONSEQÜÊNCIAS
Rússia e México
19. Entretanto, aí estão à vista
os deploráveis frutos dessa propaganda fanática. Porque, onde quer que os
comunistas conseguiram radicar-se e dominar, - e aqui pensamos com particular
afeto paterno nos povos da Rússia e do México, - aí, como eles próprios
abertamente o proclamam, por todos os meios se esforçaram por destruir
radicalmente os fundamentos da religião e da civilização cristãs, e extinguir
completamente a sua memória no coração dos homens, especialmente da juventude.
Bispos e sacerdotes foram desterrados, condenados a trabalhos forçados,
fuzilados, ou trucidados de modo desumano; simples leigos, tornados suspeitos
por terem defendido a religião, foram vexados, tratados como inimigos, e
arrastados aos tribunais e às prisões.
Horrores do comunismo em Espanha
20. Até em países onde - como
sucede na Nossa amadíssima Espanha - não conseguiu ainda a peste e o flagelo
comunista produzir todas as calamidades dos seus erros, desencadeou contudo,
infelizmente, uma violência furibunda e irrompeu em funestíssimos atentados.
Não é esta ou aquela igreja destruída, este ou aquele convento arruinado; mas,
onde quer que lhes foi possível, todos os templos, todos os claustros
religiosos, e ainda quaisquer vestígios da religião cristã, posto que fossem
monumentos insignes de arte e de ciência, tudo foi destruído até os
fundamentos! E não se limitou o furor comunista a trucidar bispos e muitos milhares
de sacerdotes, religiosos e religiosas, alvejando dum modo particular aqueles e
aquelas que se ocupavam dos operários e dos pobres; mas fez um número muito
maior de vítimas em leigos de todas as classes, que ainda agora vão sendo
imolados em carnificinas coletivas, unicamente por professarem a fé cristã, ou
ao menos por serem contrários ao ateísmo comunista. E esta horripilante
mortandade é perpetrada com tal ódio e tais requintes de crueldade e
selvajaria, que não se julgariam possíveis em nosso século.
Ninguém de são critério, quer
seja simples particular, quer homem de Estado, cônscio da sua responsabilidade,
ninguém absolutamente, repetimos, pode deixar de estremecer de sumo horror, se
refletir que tudo quanto hoje está sucedendo na Espanha, pode amanhã repetir-se
também em outras nações civilizadas.
Frutos naturais do sistema
21. Nem se pode asseverar que
semelhantes atrocidades são conseqüências fatais de todas as grandes
revoluções, como excessos esporádicos de exasperação, comuns a qualquer guerra:
não, são frutos naturais do sistema, cuja estrutura não obedece a freio algum
interno. Um freio é necessário ao homem, tanto individualmente como socialmente
considerado; e é por isso que até os povos bárbaros reconheceram o vínculo da
lei natural, esculpida por Deus na alma de cada homem. E, quando a observância
dessa lei foi tida por todos como um dever sagrado, viram-se nações antigas
atingir um tal esplendor de grandeza, que espanta, ainda mais até do que é
razão, aqueles que só superficialmente compunham os documentos da história
humana. Mas quando se arranca das mentes dos cidadãos a própria idéia de Deus,
necessariamente os veremos precipitar-se na crueldade mais selvagem, e na
ferocidade dos costumes. Luta contra tudo o que é divino
Luta contra tudo o que se chama
Deus
22. É este o espetáculo que
atualmente com suma dor contemplamos: pela primeira vez na história estamos
assistindo a uma insurreição, cuidadosamente preparada e calculadamente
dirigida contra “tudo o que se chama Deus” (cfr. 2 Tess 1, 4).
Efetivamente, o comunismo por sua natureza opõe-se a qualquer religião, e a
razão por que a considera como o “ópio do povo”, é porque os seus dogmas
e preceitos, pregando a vida eterna depois desta vida mortal, apartam os homens
da realização daquele futuro paraíso, que são obrigados a conseguir na terra.
O terrorismo
23. Mas não é impunemente que se
despreza a lei natural e o seu autor, Deus; a conseqüência é que os esforços
dos comunistas, assim como nem sequer no campo econômico puderam até hoje
realizar o seu desígnio, assim também no futuro jamais o poderão conseguir. Não
negamos que esses esforços na Rússia contribuíram não pouco para sacudir os
homens e as suas instituições, daquela longa e secular inércia em que jaziam, e
que puderam, empregando todos os meios e processos; ainda mesmo ilegitimamente,
fazer alguma coisa para promover o progresso material; mas sabemos por
testemunhos absolutamente insuspeitos, e alguns bem recentes ainda, que de fato
nem sequer neste ponto se conseguiu o que tanto se prometera. E não se esqueça,
que aquela ditadura, toda terrorismo e crueldade, impôs a inumeráveis cidadãos
o jugo da escravidão. Porque é de notar que também no terreno econômico é
imprescindível alguma norma de probidade a que se conforme, por dever de
consciência, quem exerce algum cargo; ora isso é indiscutível que o não podem
dar os princípios comunistas, nascidos dos sofismas do materialismo. Por
conseguinte, nada mais resta do que aquele pavoroso terrorismo que se está
vendo na Rússia, onde os antigos camaradas de conspiração e de luta se vão
dando a morte uns aos outros; mas esse terrorismo criminoso, longe de conseguir
pôr um dique à corrupção dos costumes, nem sequer pode evitar a dissolução da estrutura
social. Um pensamento paternal para os povos oprimidos da Rússia
UM PENSAMENTO PATERNAL AOS POVOS
OPRIMIDOS, NA RÚSSIA
24. Com isto, porém, não é nossa
intenção condenar em massa os povos da União Soviética, aos quais, pelo
contrário, consagramos o mais vivo afeto paterno. É que, de fato, sabemos que
muitos deles gemem sob o jugo da mais iníqua escravidão, que lhes foi imposta
por homens, pela maior parte estranhos aos verdadeiros interesses daquele povo;
e que muitos outros foram enganados por promessas e esperanças falazes. O que
Nós condenamos é o sistema e seus autores e fautores que consideraram aquela
nação como o terreno mais apto para lançarem a semente do seu sistema, há muito
tempo preparada, e de lá a disseminarem por todas as regiões do globo.
III - LUMINOSA DOUTRINA DA
IGREJA, OPOSTA AO COMUNISMO
25. Depois de termos focado os
erros e os processos sedutores e violentos do comunismo bolchevista e ateu, é
já tempo, Veneráveis Irmãos, de opor-lhe sumariamente a verdadeira noção da
“Cidade humana”, que é tal como perfeitamente sabeis, qual no-la ensinam a
razão humana e a revelação Divina, por intermédio da Igreja, Mestra dos
povos.
SUPREMA REALIDADE: DEUS!
26. E antes de mais nada importa
observar que acima de todas as demais realidades, está o sumo, único e supremo
Espírito, Deus, Criador onipotente de todo o universo, Juiz sapientíssimo e
justíssimo de todos os homens. Este Ser supremo, que é Deus, é a refutação e
condenação mais absoluta das impudentes e mentirosas falsidades do comunismo. E
na verdade, não é porque os homens crêem em Deus, que Deus existe; mas porque
Deus existe realmente, por isso crêem nele e lhe dirigem as suas súplicas todos
quantos não cerram pertinazmente os olhos do espírito à luz da verdade.
QUE SÃO O HOMEM E A FAMÍLIA,
SEGUNDO A RAZÃO E A FÉ
27. Quanto ao homem, o que a fé
católica e a nossa razão ensinam, já Nós, ao explanarmos os pontos fundamentais
desta doutrina, o propusemos na Encíclica sobre a educação cristã da juventude
(Encíclica Divini illius Magistri, 31 de dezembro de
1929: A.A.S., vol. XXII (1930), págs. 49-86). O homem tem uma alma espiritual e
imortal; e, assim como é uma pessoa, dotada pelo supremo Criador de admiráveis
dons de corpo e de espírito assim se pode chamar, como diziam os antigos, um
verdadeiro “microcosmo”, isto é, um pequeno mundo, por isso que de muito
longe transcende e supera a imensidade dos seres do mundo inanimado. Não
somente nesta vida mortal, mas também na que há de permanecer eternamente, o
seu fim supremo é unicamente Deus; e, tendo sido elevado pela graça
santificante à dignidade de filho de Deus, é incorporado no Reino de Deus, no
corpo místico de Jesus Cristo. Conseqüentemente, dotou-o Deus de múltiplas e
variadas prerrogativas, tais como: direito à vida, à integridade do corpo, aos
meios necessários à existência; direito de tender ao seu último fim, pelo
caminho traçado por Deus; direito enfim de associação, de propriedade
particular, e de usar dessa propriedade.
28. Além disso, assim como o
matrimônio e o direito ao seu uso natural são de origem divina, assim também a
constituição e as prerrogativas fundamentais da família derivam, não do arbítrio
humano, nem de fatores econômicos, senão do próprio Criador supremo de todas as
coisas. Este assunto tratamo-lo já com suficiente desenvolvimento na Encíclica
sobre a santidade do matrimônio (Encíclica Casti Connubii, 31 de dezembro de 1930:
A.A.S., vol. XXII (1930), págs. 539-582), e na Encíclica acima citada sobre a
educação.
QUE É A SOCIEDADE
Mútuos direitos e deveres entre o
homem e a sociedade
29. Mas Deus destinou igualmente
o homem para a sociedade civil, que a sua mesma natureza reclama. É que, no
plano do Criador, a sociedade é um meio natural, de que todo o cidadão pode e
deve servir-se para a consecução do fim que lhe é proposto, pois a sociedade
civil existe para o homem e não o homem para a sociedade. Isto, porém, não se
deve entender no sentido do liberalismo individualista, que subordina a
sociedade à utilidade egoísta do indivíduo, mas sim no sentido que, mediante a
união orgânica com a sociedade, todos possam, pela mútua colaboração, alcançar
a verdadeira felicidade terrestre; e que, por meio da sociedade, floresçam e
prosperem todas as aptidões individuais e sociais, dadas ao homem pela
natureza, aptidões que transcendem o imediato interesse do momento, e refletem
na sociedade a perfeição divina: o que no homem isolado de modo nenhum se pode
verificar. Mas até este último objetivo da sociedade é, em última análise,
ordenado ao homem, para que reconheça este reflexo da perfeição divina, e o
desenvolva assim em louvor e adoração ao Criador. É que só o homem, e não
qualquer sociedade humana por si, é dotado de razão e de vontade moralmente
livre.
30. Portanto, assim como o homem
não pode furtar-se aos deveres que por vontade de Deus o ligam à sociedade
civil, e é por isso que os representantes da autoridade têm direito de o forçar
ao cumprimento do próprio dever, caso ele se recusasse ilegitimamente; assim
também não pode a sociedade privar o cidadão dos direitos pessoais que o
Criador lhe concedeu (os mais importantes apontamo-los acima sumariamente) nem
tornar-lhe impossível o seu uso. É, pois, conforme à razão e às suas exigências
naturais, que todas as coisas terrenas sejam para serviço e utilidade do homem,
e assim, por meio dele, voltem ao Criador. Aqui se aplica perfeitamente o que o
Apóstolo das Gentes escreve aos coríntios sobre a economia da salvação cristã:
“Tudo... é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor
3, 23). E assim, enquanto a doutrina comunista de tal maneira diminui a pessoa
humana, que inverte os termos das relações entre o homem e a sociedade, a
razão, pelo contrário, e a revelação divina elevam-na a tão sublimes alturas.
A ordem econômico-social
31. Sobre a ordem
econômico-social e sobre a questão operária já o Nosso Predecessor, de feliz
memória, Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum (15 de maio de 1891: Acta Leonis
XIII, vol. XI, págs. 97-144) deu normas eficazes: normas que Nós adotamos às
condições e exigências dos tempos presentes pela nossa Encíclica sobre a
restauração cristã da ordem social (Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931:
A.A.S., vol. XXIII (1931), págs. 177-228). Nessa Encíclica, insistindo de novo
com toda a força na secular doutrina da Igreja acerca da natureza peculiar da
propriedade privada no seu aspecto individual e social, assinalamos com toda a
clareza e precisão os direitos e a dignidade do trabalho humano, as relações do
mútuo apoio e auxílio que devem existir entre o capital e o trabalho, e o
salário, indispensável ao operário e a sua família, que por justiça lhe é
devido.
32. Nessa mesma Encíclica
mostramos também que a sociedade humana só então, poderá ser salva da
funestíssima ruína, a que é arrastada pelos princípios do liberalismo, alheios
a toda a moralidade, quando os preceitos da justiça social e da caridade cristã
impregnarem e penetrarem a ordem econômica e a organização civil; o que
indubitavelmente não podem conseguir nem a luta de classes, nem os atentados do
terror, nem o abuso ilimitado e tirânico do poder do Estado. Advertimos
outrossim, que a verdadeira prosperidade do povo se deve procurar segundo os
princípios dum são corporativismo, que reconheça e respeite os vários graus da
hierarquia social; e que é igualmente necessário que todas as corporações
operárias se organizem em harmônica unidade para poderem tender ao bem comum da
sociedade; e que, por conseguinte, a função genuína e peculiar do poder público
consiste em promover, quanto lhe seja possível, esta harmonia e coordenação de
todas as forças sociais.
Hierarquia social e prerrogativas
do Estado
33. Para assegurar esta tranqüila
harmonia pela colaboração orgânica de todos, a doutrina católica confere aos
governantes tanta dignidade e autoridade, quanta é necessária para que eles com
vigilante e previdente solicitude salvaguardem os direitos divinos e humanos,
que as Sagradas Escrituras e os Padres da Igreja tanto inculcam. E neste passo
é necessário observar que erram vergonhosamente os que sem consideração
atribuem a todos os homens direitos iguais na sociedade civil e asseveram que
não existe legítima hierarquia. Sobre este ponto baste-Nos recordar as
Encíclicas do Nosso Predecessor Leão XIII, acima mencionadas, especialmente a
que trata do poder do Estado (Encíclica Diuturnum illud, 29 de junho de 1881: Acta
Leonis XIII, vol. II, págs. 269-287) e a outra que versa sobre a
constituição cristã do Estado (Encíclica Immortale Dei, 1 de novembro de 1885: Acta
Leonis XIII, vol. V, págs. 118-150). Nelas encontram os católicos
luminosamente expostos os princípios da razão e da fé, que os tornarão aptos
para as premunirem contra os erros e perigos da concepção comunista acerca do
Estado. A espoliação dos direitos e a escravização do homem, a negação da
origem primária e transcendente do Estado e do poder do Estado, o abuso
horrível do poder público ao serviço do terrorismo coletivista, são
precisamente o contrário do que é conforme à ética natural e à vontade do
Criador. Tanto o homem como a sociedade civil têm origem no Criador, e foram
por Ele mutuamente ordenados um para a outra; por isso nenhum dos dois pode
furtar-se a cumprir os deveres correlativos, nem recusar ou reduzir os
direitos. O próprio Criador regulou esta mútua relação nas suas linhas
fundamentais, e é injusta a usurpação, que o comunismo se arroga, de impor, em
lugar da lei divina baseada nos imutáveis princípios da verdade e da caridade,
um programa político de partido, que promana do capricho humano e ressuma ódio.
BELEZA DESTA DOUTRINA DA IGREJA
34. A Igreja ao ensinar esta
luminosa doutrina, não tem outro fim mais que realizar o venturoso anúncio
cantado pelos Anjos sobre a gruta de Belém, no nascimento Redentor: “Glória
a Deus e... paz aos homens” (Lc 2, 14): paz verdadeira e verdadeira
felicidade, até mesmo na terra, quanto é possível, encaminhada a preparar a
felicidade eterna, mas paz reservada aos homens de boa vontade. Esta doutrina é
igualmente distante de todos os extremos do erro como de todas as exagerações
dos partidos ou sistemas que a eles aderem, conserva sempre o equilíbrio da
verdade e da justiça; reivindica-o na teoria, aplica-o e promove-o na prática,
conciliando os direitos e os deveres de um com os dos outros, como a autoridade
com a liberdade, a dignidade do indivíduo com a do Estado, a personalidade
humana no súdito com a representação divina no superior, e, por conseguinte, a
sujeição devida e o amor ordenado de si mesmo, da família e da pátria, com o
amor das outras famílias e dos outros povos, fundado no amor de Deus, pai de
todos, primeiro princípio e último fim. Nem separa a justa preocupação dos bens
temporais a palavra de seu divino Fundador: “Buscai primeiro o reino de Deus
e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,
33), está longe de se desinteressar das coisas humanas, de prejudicar os
progressos da sociedade e de impedir os adiantamentos materiais, que pelo
contrário sustenta e promove da maneira mais razoável e eficaz. E assim, até
mesmo no campo econômico-social, a Igreja, muito embora não tenha jamais
apresentado como seu um determinado sistema técnico, por não ser essa a sua
missão, fixou contudo claramente princípios e diretivas que, prestando-se a
diversas aplicações concretas segundo as várias condições dos tempos, dos
lugares e dos povos, assinalam o caminho seguro para obter o feliz progresso da
sociedade.
35. A sabedoria e suma utilidade
desta doutrina é admitida por quantos verdadeiramente a conhecem. Com
justificada razão puderam afirmar eminentes Estadistas que, depois de terem
estudado os diversos sistemas sociais, nada haviam encontrado mais sábio que os
princípios expostos nas Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo anno. Até em países não
católicos, e nem sequer cristãos, se reconhece quão vantajosas são para a
sociedade humana as doutrinas sociais da Igreja; e assim, há apenas um mês, um
eminente homem político, não cristão, do Extremo Oriente, não duvidou proclamar
que a Igreja com a sua doutrina de paz e fraternidade cristã traz uma altíssima
contribuição para o estabelecimento e conservação da paz construtiva entre as
nações. Mas ainda: até os próprios comunistas, como sabemos por autênticas
relações que afluem de toda a parte a este Centro de Cristandade, se não estão
ainda de todo corrompidos, quando se lhes expõe a doutrina social da Igreja,
reconhecem a sua superioridade sobre as doutrinas dos seus caudilhos e mestres.
Somente os obcecados pela paixão e pelo ódio fecham os olhos à luz da verdade e
a combatem obstinadamente.
SERÁ VERDADE QUE A IGREJA NÃO
PROCEDEU SEGUNDO A SUA DOUTRINA?
36. Mas os inimigos da Igreja,
constrangidos embora a reconhecer a sabedoria da sua doutrina, assacam-lhe o
não ter sabido conformar os seus atos com aqueles princípios, e afirmam por
isso a necessidade de provocar outros caminhos. Quão falsa e injusta seja esta
acusação, demonstra-o toda a história do cristianismo. Para não Nos referirmos
senão a um ou outro ponto característico, foi o cristianismo o primeiro a
propagar, por uma forma e com uma amplitude e convicção desconhecidas nos
séculos precedentes, a verdadeira e universal fraternidade de todos os homens
de qualquer condição ou raça, contribuindo assim poderosamente para a abolição
da escravatura, não com revoltas sangrentas, senão pela força interna da sua
doutrina, que à orgulhosa patrícia romana fazia ver na sua escrava uma irmã em Cristo.
Foi o cristianismo, que adora o Filho de Deus feito homem por amor dos homens e
convertido em “Filho do carpinteiro”, mais ainda, “carpinteiro”
ele próprio (cfr. Mt 13, 55; Mc 6, 3), foi o cristianismo que
sublimou à sua verdadeira dignidade o trabalho manual: aquele trabalho manual,
antes tão desprezado que até o discreto Marco Túlio Cícero, resumindo a opinião
geral do seu tempo, não receou escrever estas palavras, de que hoje se
envergonharia qualquer sociólogo: “Todos os operários se ocupam em misteres
desprezíveis, pois a oficina nada pode ter de nobre” (M.T. Cícero, De
officiis, L. I, c. 42).
37. Fiel a estes princípios, a
Igreja regenerou a sociedade humana; sob a sua influência surgiram admiráveis
obras de caridade, poderosas corporações de artistas e trabalhadores de todas
as categorias. O liberalismo do século passado zombou delas, é certo,
como de velharias da Idade Média; elas, porém, impõem-se hoje à admiração dos
nossos contemporâneos que em muitos países procuram fazer reviver de algum modo
a sua idéia fundamental. E quando outras correntes entravavam a obra e punham
obstáculos ao influxo salutar da Igreja, esta até nossos dias não cessou nunca
de admoestar os extraviados. Basta recordar com que firmeza, energia e
constância o Nosso Predecessor Leão XIII reivindicou para o operário o direito
de associação, que o liberalismo dominante nos Estados mais poderosos se
obstinava em negar-lhe. E esta influência da doutrina da Igreja ainda
atualmente é maior do que parece, porque é grande e certo, posto que invisível
e difícil de medir, o predomínio das idéias sobre os fatos.
38. Pode bem dizer-se com toda a
verdade que a Igreja à semelhança de Cristo, passa através dos séculos, fazendo
bem a todos. Não haveria nem socialismo nem comunismo, se os que governam
os povos não tivessem desprezado os ensinamentos e as maternais advertências da
Igreja; eles, porém, quiseram, sobre as bases do liberalismo e do laicismo,
levantar outros edifícios sociais que à primeira vista pareciam poderosas e
magníficas construções, mas bem depressa se viu que careciam de sólidos
fundamentos, e se vão miseravelmente desmoronando, um após outro, como tem que
desmoronar-se tudo quanto não se apoia sobre a única pedra angular, que é Jesus
Cristo.
IV - REMÉDIOS E MEIOS
NECESSIDADE DE RECORRER A MEIOS
DE DEFESA
39. Tal é, Veneráveis Irmãos, a
doutrina da Igreja, a única que, como em qualquer outro campo, assim também no
campo social, pode projetar verdadeira luz, a única doutrina de salvação em
face da ideologia comunista. Mas é necessário que esta doutrina se realize cada
vez mais na prática da vida, conforme o aviso do Apóstolo São Tiago: “Sede...
cumpridores da palavra e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos”
(Tg 1, 22), porquanto, o que na hora atual há de mais urgente é aplicar
com energia os remédios oportunos, para opor-se eficazmente à revolução
ameaçadora que se vai preparando. Alimentamos a firme confiança de que ao menos
a paixão com que dia e noite trabalham os filhos das trevas na sua propaganda
materialista e atéia, logre estimular santamente os filhos da luz a um zelo
igual, se não maior, da honra da Majestade divina. 40. Que é, pois, necessário
fazer, que remédios empregar, para defender a Cristo e a civilização cristã
contra aquele pernicioso inimigo? Como um pai no seio da família, Nós
quiséramos conversar, quase na intimidade, sobre os deveres que a grande luta
de nossos dias impõe a todos os filhos da Igreja, dirigindo também a Nossa
paternal advertência aos filhos que dela se afastaram.
RENOVAÇÃO DA VIDA CRISTÃ
Remédio Fundamental
41. Como em todos os períodos
mais tormentosos da história da Igreja, assim hoje também o remédio fundamental
é uma sincera renovação da vida privada e pública, segundo os princípios do
Evangelho em todos aqueles que se gloriam de pertencer ao Rebanho de Cristo, a
fim de serem verdadeiramente o sal da terra, que preserve a sociedade humana de
tal corrupção.
42. Com sentimentos de profunda
gratidão para com o Pai das luzes, de quem desce “toda a dádiva excelente e
todo o dom perfeito” (Tg 1, 17), vemos por toda a parte sinais
consoladores dessa renovação espiritual, não só em tantas almas singularmente
escolhidas, que nestes últimos anos se têm elevado ao cume da mais sublime santidade,
e em tantas outras, cada vez mais numerosa, que generosamente caminham para a
mesma luminosa meta, mas também no reflorescimento de uma piedade sentida e
vivida, em todas as classes da sociedade, até nas mais cultas, como pusemos em
relevo no Nosso recente Motu proprio In multis solaciis, de 28 do passado outubro,
por ocasião da reorganização da Pontifícia Academia das Ciências (A.A.S., vol.
XXVIII (1936), págs. 421-424).
43. Não podemos, contudo, negar
que muito resta ainda por fazer neste caminho da renovação espiritual. Até
mesmo em países católicos, demasiados são os que são católicos quase só de
nome; demasiados, aqueles que, seguindo embora mais ou menos fielmente as
práticas mais essenciais da religião que se ufanam de professar, não se
preocupam de melhor a conhecer, nem de adquirir convicções, mais íntimas e
profundas, e menos ainda de fazer que ao verniz exterior corresponda o interno
esplendor de uma consciência reta e pura, que sente e cumpre todos os seus
deveres sob o olhar de Deus. Sabemos quanto o Divino Salvador aborrece esta vã
e falaz exterioridade, Ele que queria que todos adorassem o Pai “em espírito
e verdade” (Jo 4, 23). Quem não vive verdadeira e sinceramente
segundo a fé que professa, não poderá hoje, que tão violento sopra o vento da
luta e da perseguição, resistir por muito tempo, mas será miseravelmente
submergido por este novo dilúvio que ameaça o mundo; e assim, enquanto se
prepara por si mesmo a própria ruína, exporá também ao ludibrio o nome cristão.
Desapego dos bens terrenos
44. E neste passo queremos,
Veneráveis Irmãos, insistir mais particularmente sobre dois ensinamentos do
Senhor, que têm especial conexão com as atuais condições do gênero humano: o
desapego dos bens terrenos e o preceito da caridade. “Bem-aventurados os
pobres de espírito” foram as primeiras palavras que saíram dos lábios do
Divino Mestre no sermão da Montanha (Mt 5, 3). E esta lição é mais que
nunca necessária, nestes tempos de materialismo sedento de bens e prazeres da
terra. Todos os cristãos, ricos ou pobres, devem ter sempre fixo o olhar no
céu, recordando que “não temos aqui cidade permanente, mas vamos buscando a
futura” (Hbr 13, 14). Os ricos não devem pôr nas coisas da terra a
sua felicidade, nem dirigir à conquista desses bens os seus melhores esforços;
mas, considerando-se apenas como administradores que sabem terão de dar contas
ao supremo Senhor, sirvam-se deles como de meios preciosos que Deus lhes
concede para fazerem bem; e não deixem de distribuir aos pobres o supérfluo,
segundo o preceito evangélico (cfr. Lc 11, 41). Doutra forma
verificar-se-á neles e em suas riquezas a severa sentença de São Tiago
Apóstolo: “Eia, pois, ó ricos, chorai, soltai gritos por causa das misérias
que virão sobre vós. As vossas riquezas apodreceram, e os vossos vestidos foram
comidos pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua
ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como um fogo.
Juntastes para vós um tesouro de ira para os últimos dias...” (Tg 5,
1-3).
45. Mas os pobres, por sua vez,
esforçando-se muito embora, segundo as leis da caridade e da justiça, por se
proverem do necessário e até mesmo por melhorarem de condição, devem também
permanecer sempre “pobres de espírito” (Mt 5, 3), estimando mais
os bens espirituais que os bens e gozos terrenos. Recordem-se, além disso, que
jamais se logrará fazer desaparecer do mundo as misérias, as dores, as
tribulações, a que estão sujeitos ainda aqueles que exteriormente parecem mais
felizes. E assim, a todos é necessária a paciência, aquela paciência cristã que
eleva o coração às divinas promessas de uma felicidade eterna. “Sede, pois,
pacientes, irmãos”, vos diremos ainda com São Tiago, “até à vinda do
Senhor. Vede como o lavrador espera o precioso fruto da terra, tendo paciência,
até que receba o (fruto) temporão e o serôdio. Sede, pois, pacientes também
vós, e fortalecei os vossos corações; porque a vinda do Senhor está próxima”
(Tg 5, 7-8). Só assim se cumprirá a consoladora promessa do Senhor: “Bem-aventurados
os pobres”. E não é esta uma consolação e promessa vã, como são as
promessas dos comunistas; mas são palavras de vida, que encerram uma realidade
suprema, palavras que se verificam plenamente aqui na terra e depois na
eternidade. E na verdade, quantos pobres, nestas palavras e na esperança do
reino dos céus, proclamando já propriedade sua: “porque vosso é o reino de
Deus” (Lc 6, 20), encontram uma felicidade, que tantos ricos não
logram em suas riquezas, sempre inquietos e sempre torturados como andam pela
sede de possuir ainda mais.
Caridade cristã
46. Muito mais importante ainda,
como remédio do mal de que tratamos, ou pelo menos mais diretamente ordenado a
curá-lo, é o preceito da caridade. Queremos referir-Nos àquela caridade cristã
“paciente e benigna” (1 Cor 13, 4), que evita todos os ares de
proteção humilhante e qualquer aparência de ostentação; aquela caridade, que
desde os inícios do cristianismo ganhou para Cristo os mais pobres dentre os
pobres, os escravos; e testemunhamos o Nosso reconhecimento a todos quantos nas
obras de beneficência, desde as conferências de São Vicente de Paulo até às
grandes organizações recentes de assistência social, têm exercido e exercem as
obras de misericórdia corporal e espiritual. Quanto mais experimentarem em si
mesmos os operários e os pobres o que o espírito de amor, animado pela virtude
de Cristo, faz por eles, tanto mais se despojarão do preconceito de que o
cristianismo perdeu a sua eficácia e a Igreja está da parte daqueles que
exploram o seu trabalho.
47. Mas, quando vemos dum lado
uma multidão de indigentes que, por várias causas alheias à sua vontade, estão
verdadeiramente oprimidos pela miséria, e do outro lado, junto deles, tantos
que se divertem inconsideradamente e esbanjam enormes somas em futilidades, não
podemos deixar de reconhecer com dor que não é bem observada a justiça, mas que
nem sempre se aprofundou suficientemente o preceito da caridade cristã nem se
vive conforme a ele na prática cotidiana. Desejamos, portanto, Veneráveis
Irmãos, que seja mais e mais explicado por palavra e por escrito este divino
preceito, precioso distintivo deixado por Cristo a seus verdadeiros discípulos,
este preceito, que nos ensina a ver nos que sofrem a Jesus em pessoa e nos
impõe o dever de amar os nossos irmãos, como o divino Salvador nos amou a nós,
isto é, até ao sacrifício de nós mesmos e, se necessário for, até da própria vida.
Meditem, pois, todos e muitas vezes aquelas palavras consoladoras, por um lado,
mas temerosas por outro, da sentença final que pronunciará o Juiz supremo no
último dia: “Vinde benditos de meu Pai...; porque tive fome, e me destes de
comer, tive sede e me destes de beber... Em verdade vos digo que todas as vezes
que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o
fizestes” (Mt 25, 34-40). E pelo contrário: “Apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno... porque tive fome, e não me destes de comer;
tive sede, e não me destes de beber... Na verdade vos digo: todas as vezes que
o não fizestes a um destes mais pequeninos, foi a mim que o não fizestes” (Mt
25, 41-45).
48. Para assegurar, pois, a vida
eterna, e poder eficaz mente socorrer os necessitados, é necessário voltar a
uma vida mais modesta; renunciar aos prazeres, muitas vezes até pecaminosos,
que o mundo hoje em dia oferece em tanta abundância; esquecer-se a si mesmo por
amor do próximo. Virtude divina de regeneração se encontra neste “mandamento
novo” (como lhe chamava Jesus) da caridade cristã (Jo 13, 34), cuja
fiel observância infundirá nos corações uma paz interna desconhecida do mundo,
e remediará eficazmente os males que afligem a humanidade.
Deveres de estrita justiça
49. Mas a caridade jamais será
verdadeira caridade, se não tiver sempre em conta a justiça. O Apóstolo ensina
que “quem ama o próximo cumpre a lei”; e dá a razão: “por quanto não
cometerás adultério, não matarás, não furtarás... e qualquer outro preceito se resume
nesta fórmula: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Rom 13, 8-9).
Se, pois, segundo o Apóstolo, todos os deveres se reduzem ao único preceito da
verdadeira caridade, ainda aqueles que são de estrita justiça, como não matar,
não roubar; uma caridade que prive o operário do salário a que tem estrito
direito, não é caridade mas um nome vão e uma vã aparência de caridade. Nem o
operário precisa de receber como esmola o que lhe pertence por justiça; nem
pode ninguém pretender eximir-se dos grandes deveres impostos pela justiça com
pequeninas dádivas de misericórdia. A caridade e a justiça impõem deveres,
muitas vezes acerca do mesmo objeto, mas sob aspectos diversos; e os operários,
a estes deveres que lhes dizem respeito, são juntamente muito sensíveis, em
razão da sua própria dignidade.
50. É por isso que de modo
especial Nos dirigimos a vós, patrões e industriais cristãos, cuja missão é
muitas vezes tão difícil, por carregardes com a herança dos erros de um regime
econômico iníquo que exerceu a sua ruinosa influência durante muitas gerações.
Lembrai-vos da vossa responsabilidade. Triste é dizê-lo, mas é muito verdade
que o modo de proceder de certos meios católicos contribui para abalar a
confiança dos trabalhadores na religião de Jesus Cristo. Não queriam eles
compreender que a caridade cristã exige o reconhecimento de certos direitos
devidos ao operário, e que Igreja explicitamente lhe reconheceu. Como julgar do
proceder de patrões católicos, que em algumas partes conseguiram impedir a
leitura da Nossa Encíclica Quadragesimo anno em suas igrejas patronais?
ou daqueles industriais católicos que até hoje se têm mostrado adversários dum
movimento que o direito de propriedade, reconhecido pela Igreja, tenha sido por
vezes empregado para defraudar o operário do seu justo salário e dos seus
direitos sociais?
Justiça Social
51. Efetivamente, além da justiça
comutativa, há a justiça social que impõe, também, deveres a que nem patrões
nem operários se podem furtar. E é precisamente próprio da justiça social
exigir dos indivíduos quanto é necessário ao bem comum. Mas, assim como no
organismo vivo não se provê ao todo, se não se dá a cada parte e a cada membro
tudo quanto necessitam para exercerem as suas funções; assim também se não pode
prover ao organismo social e ao bem de toda a sociedade, se não se dá a cada
parte e a cada membro, isto é, aos homens dotados da dignidade de pessoa, tudo
quanto necessitam para desempenharem as suas funções sociais. O cumprimento dos
deveres da justiça social terá como fruto uma intensa atividade de toda a vida
econômica, desenvolvida na tranqüilidade e na ordem, e se mostrará assim a
saúde do corpo social, do mesmo modo que a saúde do corpo humano se reconhece
pela atividade inalterada, e ao mesmo tempo plena e frutuosa, de todo o
organismo.
52. Não se pode, porém, dizer que
se satisfez à justiça social, se os operários não têm assegurada a sua própria
sustentação e a de suas famílias com um salário proporcionado a este fim; se
não se lhes facilita o ensejo de adquirir uma modesta fortuna, prevenindo assim
a praga do pauperismo universal; se não se tomam providências a seu favor, com
seguros públicos e privados, para o tempo da velhice, da doença ou do
desemprego. Numa palavra, para repetirmos o que dissemos na Nossa Encíclica Quadragesimo anno: “A economia social
estará solidamente constituída e obterá seus fins, só quando a todos e a cada
um forem subministrados todos os bens que se podem conseguir com as forças e
subsídios naturais, com a técnica, com a organização social do fator econômico.
Esses bens devem ser em tanta quantidade, quanta é necessária, assim para
satisfazer às necessidades e honestas comodidades, como para elevar os homens
àquela condição de vida mais feliz, que, obtida e gozada de modo regrado e
prudente, não só não é de obstáculo à virtude, mas até a favorece poderosamente”
(Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931:
A.A.S., vol. XXIII (1931), pág. 202).
53. Se, pois, como sucede cada
vez mais freqüentemente no salariado, a justiça não pode ser observada pelos
particulares, a não ser que todos concordem em praticá-la conjuntamente,
mediante instituições que unam entre si os patrões, para evitar entre eles uma
concorrência incompatível com a justiça devida aos trabalhadores, o dever dos
empresários e patrões é sustentar e promover essas instituições necessárias,
que se tornam o meio normal para se poderem cumprir os deveres de justiça. Mas
lembrem-se também os trabalhadores dos seus deveres de caridade e justiça para
com os patrões e estejam persuadidos que assim salvaguardarão melhor até os
próprios interesses. 54. Assim, pois, se se considera o conjunto da vida
econômica, - como já notamos na Nossa Encíclica Quadragesimo anno - não se conseguirá que nas
relações econômico-sociais reine a mútua colaboração da justiça e da caridade,
senão por meio dum corpo de instituições profissionais e interprofissionais
sobre bases solidamente cristãs, coligadas entre si e que constituam, sob
formas diversas e adaptadas aos lugares e circunstâncias, o que se chamava a
Corporação.
ESTUDO E DIFUSÃO DA DOUTRINA
SOCIAL
55. Para dar a esta ação social
mais eficácia, é muito necessário promover o estudo dos problemas sociais à luz
da doutrina da Igreja e difundir os seus ensinamentos sob a égide da autoridade
de Deus, constituída na mesma Igreja. Se o modo de proceder de alguns católicos
deixou a desejar no campo econômico-social, isso aconteceu muitas vezes por não
conhecerem suficientemente nem meditarem o ensino dos Sumos Pontífices sobre o
assunto. Por isso, é sumamente necessário que em todas as classes da sociedade
se promova mais intensa formação social, correspondente ao diverso grau de
cultura intelectual, e se procure com toda a solicitude e empenho a mais ampla
difusão dos ensinamentos da Igreja também entre a classe operária. Iluminem-se
as mentes com a luz segura da doutrina católica e inclinem-se as vontades a
segui-la e a aplicá-la como norma reta de vida, pelo cumprimento consciencioso
dos múltiplos deveres sociais. Combata-se desse modo aquela incoerência e
descontinuidade na vida cristã, por Nós várias vezes deplorada, pela qual
alguns, enquanto aparentemente são fiéis no cumprimento dos seus deveres
religiosos, no campo do trabalho ou da indústria ou da profissão, ou no comércio,
ou no emprego, por um deplorável desdobramento de consciência, levam uma vida
muito em desarmonia com as normas tão claras da justiça e da caridade cristã,
dando assim grave escândalo aos fracos e oferecendo aos maus fácil pretexto
para desacreditarem a própria Igreja.
56. Grandemente pode contribuir
para esta renovação a imprensa católica, que pode e deve, de modo variado e
atraente, procurar dar a conhecer cada vez melhor a doutrina social, informar
com exatidão, mas também com a devida amplidão, acerca da atividade dos
inimigos, referir os meios de combate que se mostraram os mais eficazes em
diversas regiões, propor idéias úteis e gritar alerta contra as astúcias e
enganos com que os comunistas procuram, e com resultado, atrair a si até homens
de boa-fé.
PREMUNIR-SE CONTRA AS CILADAS DO
COMUNISMO
57. Sobre este ponto insistimos
na Nossa Alocução, de 12 de maio do ano passado, mas julgamos necessário,
Veneráveis Irmãos, chamar de novo sobre ele, de modo particular, a vossa
atenção. Ao princípio, o comunismo mostrou-se tal qual era em toda a sua
perversidade; mas bem depressa se capacitou de que desse modo afastava de si os
povos; e por isso mudou de tática e procura atrair as multidões com vários
enganos, ocultando os seus desígnios sob a máscara de ideais, em si bons e
atraentes. Assim, vendo o desejo geral de paz, os chefes do comunismo fingem
ser os mais zelosos fautores e propagandistas do movimento a favor da paz
mundial; mas ao mesmo tempo excitam a uma luta de classes que faz correr rios
de sangue, e, sentindo que não têm garantias internas de paz, recorrem a
armamentos ilimitados. Assim, sob vários nomes que nem por sombras aludem ao
comunismo, fundam associações e periódicos que servem depois unicamente para
fazerem penetrar as suas idéias em meios, que doutra forma lhe não seriam
facilmente acessíveis, procuram até com perfídia infiltrar-se em associações
católicas e religiosas. Assim, em outras partes, sem renunciarem um ponto a
seus perversos princípios, convidam os católicos a colaborar com eles no campo
chamado humanitário e caritativo, propondo às vezes, até coisas completamente
conformes ao espírito cristão e à doutrina da Igreja. Em outras partes levam a
hipocrisia até fazer crer que o comunismo, em países de maior fé e de maior
cultura, tomará outro aspecto mais brando, não impedirá o culto religioso e
respeitará a liberdade das consciências. Há até quem, reportando-se a certas
alterações recentemente introduzidas na legislação soviética, deduz que o
comunismo está em vésperas de abandonar o seu programa de luta contra Deus.
58. Procurai, Veneráveis Irmãos,
que os fiéis não se deixem enganar! O comunismo é intrinsecamente perverso e
não se pode admitir em campo nenhum a colaboração com ele, da parte de quem
quer que deseje salvar a civilização cristã. E, se alguns, induzidos em erro,
cooperassem para a vitória do comunismo no seu país, seriam os primeiros a cair
como vítimas do seu erro; e quanto mais se distinguem pela antiguidade e
grandeza da sua civilização cristã as regiões aonde o comunismo consegue
penetrar, tanto mais devastador lá se manifesta o ódio dos “sem-Deus”.
ORAÇÃO E PENITÊNCIA
59. Mas, “se o Senhor não
guarda a caridade, em vão vigiam aqueles que a guardam” (Sl 126, 1).
Por isso, como último e poderosíssimo remédio vos recomendamos, Veneráveis
Irmãos, que em vossas dioceses promovais e intensifiqueis, do modo mais eficaz,
o espírito de oração unido à penitência cristã. Quando os Apóstolos perguntaram
ao Salvador por que é que não tinham podido libertar do espírito maligno a um
endemoninhado, respondeu o Senhor: “Demônios desta raça não se expulsam
senão com a oração e com o jejum” (Mt 17, 20). Também o mal que hoje
atormenta a humanidade não poderá ser vencido senão com uma santa cruzada
universal de oração e penitência: e recomendamos singularmente às Ordens
contemplativas, masculinas e femininas, que redobrem as suas súplicas e
sacrifícios, para 8impetrarem do céu para a Igreja um válido socorro nas lutas
presentes, com a poderosa intercessão da Virgem Imaculada, a qual, assim como
um dia esmagou a cabeça da antiga serpente, assim também é hoje e sempre segura
defesa e invencível “Auxílio dos Cristãos”.
V - MINISTROS E AUXILIARES DESTA
OBRA SOCIAL DA IGREJA
OS SACERDOTES
60. Para a obra mundial de salvação
que temos vindo traçando, e para a aplicação dos remédios que ficam brevemente
apontados, ministros e obreiros evangélicos designados pelo divino Rei Jesus
Cristo são em primeira linha os sacerdotes. A eles, por vocação especial, sob a
guia dos sagrados Pastores e em união de filial obediência com o Vigário de
Cristo na terra, foi confiada a missão de conservar aceso no mundo o facho da
fé e de infundir nos fiéis aquela sobrenatural confiança com que a Igreja, em
nome de Cristo, tem combatido e vencido tantas outras batalhas: “Esta é a
vitória que vence o mundo, a nossa fé” (1 Jo 5, 4).
61. De modo particular recordamos
aos sacerdotes a exortação de Nosso Predecessor, Leão XIII, tantas vezes
repetida, de ir ao operário; exortação que Nós fazemos Nossa e completamos: “Ide
ao operário, especialmente ao operário pobre, e em geral, ide aos pobres”,
seguindo nisto os ensinamentos de Jesus Cristo e da sua Igreja. Os pobres,
efetivamente são os que se acham mais expostos às ciladas dos agitadores, que
exploram a sua mísera condição, para lhes atear no peito a inveja contra os
ricos e excitá-los a tomarem pela força o que lhes parece que a fortuna lhes
negou injustamente; e, se o Sacerdote não vai aos operários, aos pobres, para
os prevenir ou desenganar dos preconceitos e das falsas teorias, chegarão a ser
fácil presa dos apóstolos, do comunismo.
62. Não podemos negar que muito
se tem feito já neste sentido, especialmente depois das Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo anno; e com paterna complacência
saudamos o industrioso zelo pastoral de tantos bispos e sacerdotes, que vão
excogitando e ensaiando, embora com a devida prudência e cautela, novos métodos
de apostolado que melhor correspondam às exigências modernas. Mas tudo isto é
ainda muito pouco para as presentes necessidades. Assim como, quando a pátria
está em perigo, tudo quanto não é estritamente necessário ou não é diretamente
ordenado à urgente necessidade da defesa comum, passa a segunda linha; assim
também em nosso caso, qualquer outra obra, por mais bela e boa que seja, deve
ceder o passo à vital necessidade de salvar as próprias bases da fé e da
civilização cristã. E assim, nas paróquias os sacerdotes, dando embora
materialmente o que é necessário à cura ordinária dos fiéis, reservem o mais e
o melhor das suas forças e da sua atividade à reconquista das massas
trabalhadoras para Cristo e para a Igreja e a fazer penetrar o espírito cristão
nos meios que lhe são mais refratários. Nas massas populares, encontrarão uma
correspondência e uma abundância de frutos inesperada, que os compensará do
duro trabalho do primeiro arroteamento; como temos visto e vemos em Roma e em
muitas outras metrópoles, onde, à sombra das novas igrejas, que vão surgindo
nos bairros periféricos, se vão organizando fervorosas comunidades paroquiais e
se operam verdadeiros milagres de conversão entre populações que eram hostis à
religião, só porque a não conheciam.
63. Mas o meio mais eficaz de
apostolado entre as multidões dos pobres e dos humildes é o exemplo do
sacerdote, o exemplo de todas as virtudes sacerdotais quais as descrevemos em
Nossa Encíclica Ad Catholici Sacerdotii (20
de dezembro de 1935: A.A.S., vol. XXVIII (1936), págs. 5-53); no presente caso,
porém, de modo especial, é necessário um luminoso exemplo de vida humilde,
pobre, desinteressada, cópia fiel do Divino Mestre que podia proclamar com
divina franqueza: “As raposas têm os seus covis e as aves do céu os seus
ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,
20). Um sacerdote verdadeira e evangelicamente pobre e desinteressado faz
milagres de bem no meio do povo, como um São Vicente de Paulo, um Cura d’Ars,
um Cottolengo, um Dom Bosco e tantos outros; ao passo que um sacerdote avaro e
interesseiro, como recordamos na citada Encíclica, ainda quando se não
precipite, como judas, no abismo da traição, será pelo menos um oco “bronze
a ressoar” e um inútil “címbalo a retinir” (1 Cor 13, 1), e
muitas vezes antes obstáculo que instrumento de graça no meio do povo. E, se o
sacerdote secular ou regular, por dever de ofício, tem que administrar bens
temporais, lembre-se que não somente terá obrigação de observar
escrupulosamente tudo quanto prescrevem a caridade e a justiça, senão que de
modo particularmente deve mostrar-se verdadeiro pai dos pobres.
A AÇÃO CATÓLICA
64. Depois do clero dirigimos o
Nosso paternal convite aos nossos queridíssimos filhos leigos, que militam nas
fileiras da Ação Católica, que nos é tão cara e que, como já declaramos em
outra ocasião (13 de maio de 1936, A.A.S., vol. XXIX (1937), págs. 139-144), é
um “auxílio particularmente providencial”, para a obra da Igreja nestas
circunstâncias tão difíceis. De fato, a Ação Católica é também apostolado
social, enquanto tende a difundir o Reinado de Jesus Cristo não só nos
indivíduos mas também na família e na sociedade. Por isso deve, antes de tudo,
atender a formar com especial cuidado os seus membros e a prepará-los, para as
santas batalhas do Senhor. A este trabalho formativo, mais que nunca urgente e
necessário, que deve preceder a ação direta e efetiva, servirão certamente os
círculos de estudos, as semanas sociais, os cursos orgânicos de conferências e
todas as demais iniciativas aptas para dar a conhecer a solução dos problemas
sociais em sentido cristão.
65. Soldados da Ação Católica tão
bem preparados e adestrados serão os primeiros e imediatos apóstolos dos seus
companheiros de trabalho e tornar-se-ão os preciosos auxiliares do Sacerdote,
para levarem a luz da verdade e aliviarem as graves misérias materiais e
espirituais, em inumeráveis zonas refratárias à ação do ministro de Deus, ou
por inveterados preconceitos contra o clero ou por deplorável apatia religiosa.
Cooperar-se-á desse modo, sob a direção de Sacerdotes particularmente
experimentados, naquela assistência religiosa às classes trabalhadoras, que
temos tanto a peito, por ser o meio mais apto para preservar aqueles Nossos
amados filhos da cilada comunista.
66. Além deste apostolado
individual, muitas vezes oculto, mas sobremaneira útil e eficaz, é função da
Ação Católica disseminar amplamente, por meio da propaganda oral e escrita, os
princípios fundamentais que hão de servir para a construção de uma ordem social
cristã, como se depreendem dos documentos pontifícios.
ORGANIZAÇÕES AUXILIARES
67. Em torno da Ação Católica
cerram fileiras as organizações que Nós saudamos já como auxiliares da mesma.
Com paternal afeto exortamos também estas organizações tão prestimosas a
consagrarem-se à grande missão de que tratamos, que atualmente supera a todas
as outras pela sua vital importância.
ORGANIZAÇÕES DE CLASSE
68. Pensamos também nas
organizações de classe: de operários, de agricultores, de engenheiros, de médicos,
de patrões, de homens de estudo e outras semelhantes; homens e mulheres, que
vivem nas mesmas condições culturais e quase naturalmente se reuniram em
agrupamentos homogêneos. São precisamente estes grupos e estas organizações que
estão destinadas a introduzir na sociedade aquela ordem, que tínhamos na mente
na Nossa Encíclica Quadragesimo anno, e a difundir assim o
reconhecimento da realeza de Cristo nos diversos campos da cultura e do
trabalho.
69. E se, pela transformação das
condições da vida econômica e social, o Estado julgou dever intervir até o
ponto de assistir e regular diretamente tais instituições com particulares disposições
legislativas, salvo o respeito devido à liberdade e às iniciativas
particulares; também não pode nessas circunstâncias a Ação Católica manter-se
estranha à realidade, antes deve com prudência prestar a sua contribuição de
pensamento, com o estudo dos novos problemas à luz da doutrina católica, e da
atividade, com a participação leal e voluntária dos seus membros nas novas
formas e instituições, levando-lhes o espírito cristão, que é sempre princípio
de ordem e de mútua e fraterna colaboração.
APELO AOS OPERÁRIOS CATÓLICOS
70. Uma palavra particularmente
paterna quiséramos dirigir aos Nossos queridos operários católicos, jovens e
adultos, os quais, talvez em prêmio da sua fidelidade por vezes heróica nestes
tempos tão difíceis, receberam missão muito nobre e árdua. Sob a direção dos
seus Bispos e Sacerdotes, é a eles que cumpre reconduzir à Igreja e a Deus
aquelas imensas multidões de irmãos seus de trabalho, os quais, exacerbados por
não haverem sido compreendidos nem tratados com a dignidade a que tinham
direito, se afastaram de Deus. Demonstrem os operários católicos com seu
exemplo, com suas palavras, a esses seus irmãos transviados que a Igreja é Mãe
cheia de ternura para todos os que trabalham e sofrem, e que jamais faltou nem
faltará a seu sagrado dever materno de defender seus filhos. Se esta missão,
que eles devem cumprir nas minas, nas fábricas, nos estaleiros, onde quer que
se trabalha, reclama por vezes grandes sacrifícios, lembrem-se que o Salvador
do mundo deu não só exemplo do trabalho, senão também o do sacrifício.
NECESSIDADE DE CONCÓRDIA ENTRE OS
CATÓLICOS
71. Assim, pois, a todos os
Nossos filhos, de todas as classes sociais, de todas as nações, de todos os
grupos religiosos e leigos da Igreja, quiséramos dirigir um novo e mais urgente
apelo à concórdia. Muitas vezes Nosso coração paterno se tem afligido com as
divisões, fúteis muitas vezes em suas causas, mas sempre trágicas em suas
conseqüências, que põem em luta os filhos duma mesma Mãe, a Igreja. Assim se vê
que os agentes da desordem, que não são tão numerosos, aproveitando-se destas
discórdias, lhes exasperam o azedume, e acabam por lançar os mesmos católicos
uns contra os outros. Depois dos acontecimentos destes últimos meses, deveria
parecer supérfluo o Nosso aviso. Repetimo-lo, porém, uma vez mais para aqueles
que o não compreenderam, ou talvez não o querem compreender. Os que trabalham
por aumentar as distensões entre católicos, tomam sobre si uma tremenda
responsabilidade diante de Deus e da Igreja.
APELO A TODOS OS QUE CRÊEM EM
DEUS
72. Mas a esta luta, empenhada
pelo poder das trevas contra própria idéia da Divindade, é-Nos grato esperar
que, além de todos aqueles que se gloriam do nome de Cristo, se oponham também
denodadamente todos quantos crêem em Deus e o adoram, que são ainda a imensa
maioria da humanidade. Renovamos, por isso, o apelo que já, há cinco anos,
lançamos em Nossa Encíclica Caritate Christi, para que também eles leal
e cordialmente concorram de sua parte “para afastar da humanidade o grande
perigo que a todos ameaça”. Porquanto, - como então dizíamos -, se “a
crença em Deus é o fundamento inabalável de toda a ordem social e de toda a
responsabilidade na terra, todos os que não querem a anarquia e o terror devem
trabalhar energicamente para que os inimigos da religião não alcancem o fim que
tão abertamente proclamam” (Encíclica Caritate Christi, 3 de maio de 1932: A.A.S.,
vol. XXIX (1932), pág. 184).
DEVERES DO ESTADO CRISTÃO
Ajudar a Igreja
73. Temos exposto, Veneráveis
Irmãos, a função positiva, de ordem, a um tempo, doutrinal e prática, que a
Igreja assume em virtude da mesma missão, que Jesus Cristo lhe confiou, de
edificar a sociedade cristã e, em nossos tempos, de combater e desbaratar os
esforços do comunismo; e fizemos apelo a todas e a cada uma das classes da
sociedade. Para esta mesma empresa espiritual da Igreja deve também concorrer
positivamente o Estado cristão, ajudando em seu empenho a Igreja com os meios
que lhes são próprios, os quais, embora externos, dizem também respeito, em
primeiro lugar, ao bem das almas.
74. Por isso os Estados porão
todo o cuidado em impedir que a propaganda atéia, que destrói todos os
fundamentos da ordem, faça estragos em seus territórios, porque não poderá
haver autoridade na terra, se não se reconhece a autoridade da Majestade
divina, nem será firme o juramento, que não se faça em nome do Deus vivo.
Repetimos o que tantas vezes e com tanta insistência temos dito, nomeadamente
na Nossa Encíclica Caritate Christi: “Como pode sustentar-se um
contrato qualquer, e que valor pode ter um tratado, onde falte toda a garantia
de consciência? E como pode falar-se de garantia de consciência, onde falte
toda a fé em Deus, todo o temor de Deus? Destruída esta base, desmorona-se com
ela toda a lei moral, e não haverá já remédio nenhum que possa impedir a
gradual, mas inevitável ruína dos povos, da família, do Estado, da própria
civilização humana” (Encíclica Caritate Christi, 3 de maio de 1932: A.A.S.,
vol. XXIV (1932), pág. 190).
Providências do bem comum
75. Além disso, deve o Estado pôr
todo o cuidado em criar aquelas condições materiais de vida, sem as quais não
pode subsistir uma sociedade ordenada, e em procurar trabalho especialmente aos
pais de família e à juventude. Para esse fim induzam-se as classes ricas a que,
pela urgente necessidade do bem comum, tomem sobre si aqueles encargos, sem os
quais a sociedade humana não pode salvar-se, nem elas próprias poderiam
encontrar salvação. Mas as providências, que o Estado toma para esse fim, devem
ser tais que atinjam efetivamente os que de fato têm nas mãos os maiores
capitais e continuamente os vão aumentando com grave prejuízo dos outros.
Prudente e sóbria administração
76. O próprio Estado,
lembrando-se de suas responsabilidades diante de Deus e da sociedade, sirva de
exemplo a todos os demais com uma prudente e sóbria administração. Hoje mais
que nunca a gravíssima crise mundial exige que aqueles que dispõem de fundos
enormes, fruto do trabalho e do suor de milhões de cidadãos, tenham sempre
diante dos olhos unicamente o bem comum e procurem promovê-lo o mais possível.
Os funcionários do Estado e todos os empregados cumpram também, por dever de
consciência os seus deveres com fidelidade e desinteresse, seguindo os
luminosos exemplos antigos e recentes de homens insignes, que num trabalho sem
descanso sacrificaram toda a sua vida pelo bem da pátria. E no comércio dos
povos entre si, procure-se solicitamente remover aqueles obstáculos artificiais
da vida econômica, que brotam do sentimento da desconfiança e do ódio,
recordando que todos os povos da terra formam uma única família de Deus.
Deixar liberdade à Igreja
77. Mas, ao mesmo tempo, deve o
Estado deixar à Igreja plena liberdade de cumprir a sua missão divina e
espiritual, para contribuir assim poderosamente para salvar os povos da
terrível tormenta da hora presente. Por toda a parte se faz hoje um angustioso
apelo às forças morais e espirituais; e com toda a razão, porque o mal que se
deve combater é antes de tudo, considerado em sua primeira origem, um mal de
natureza espiritual, e desta fonte é que brotam, por uma lógica diabólica,
todas as monstruosidades do comunismo. Ora, entre as forças morais e
religiosas, sobressai incontestavelmente a Igreja Católica; e por isso o mesmo
bem da humanidade exige que não se ponham obstáculos à sua atividade.
78. Proceder de outro modo e
pretender ao mesmo tempo alcançar o fim com meios puramente econômicos e
políticos, é ficar à mercê de um erro perigoso. E quando se exclui a religião
da escola, da educação, da vida pública, e se expõem ao ludíbrio os
representantes do Cristianismo e seus sagrados ritos, não se promove porventura
aquele materialismo, donde germina o comunismo? Nem a força, ainda a mais bem
organizada, nem os ideais terrenos, por mais grandiosos e nobres que sejam,
podem dominar um movimento, que tem suas raízes precisamente na demasiada
estima dos bens da terra.
79. Confiamos que aqueles que
dirigem os destinos das nações, por pouco que sintam o perigo extremo que
ameaça hoje os povos, compreenderão cada vez melhor o supremo dever de não
impedir à Igreja o cumprimento da sua missão; tanto mais que, ao cumpri-la,
enquanto procura a felicidade eterna do homem trabalha também inseparavelmente
pela verdadeira felicidade temporal.
APELO PATERNO AOS TRANSVIADOS
80. Mas não podemos pôr termo a
esta Carta Encíclica, sem dirigir uma palavra àqueles mesmos filhos Nossos que
estão já contagiados ou tocados do mal comunista. Exortamo-los vivamente a que
ouçam a voz do Pai que os ama; e rogamos ao Senhor que os ilumine, para que
deixem o caminho que os despenha a todos numa imensa e catastrófica ruína, e
reconheçam também eles que o único Salvador é Jesus Cristo Senhor Nosso: “porque
não há sob o céu nenhum outro nome dado aos homens, pelo qual possamos esperar
ser salvos” (At 4, 12).
CONCLUSÃO
SÃO JOSÉ, MODELO E PATRONO
81. E, para apressar a “Paz de
Cristo no Reino de Cristo” (Encíclica Ubi Arcano, 23 de dezembro de 1922: A.A.S.,
vol. XIV (1922), pág. 619), por todos tão desejada, pomos a grande ação da
Igreja Católica contra o comunismo ateu mundial sob a égide do poderoso
Protetor da Igreja, São José. Ele pertence à classe operária e experimentou o
peso da pobreza, em si e na Sagrada Família, de que era chefe vigilante e
afetuoso; a ele foi confiado o Deus Menino, quando Herodes mandou contra ele os
seus sicários. Com uma vida de fidelíssimo cumprimento do dever cotidiano,
deixou um exemplo de vida a todos os que têm de ganhar o pão com o trabalho de
suas mãos e mereceu ser chamado o Justo, exemplo vivo daquela justiça cristã,
que deve reinar na vida social.
82. Com os olhos no alto, a nossa
fé vê os novos céus e a nova terra; de que fala o Nosso primeiro
Antecessor, São Pedro (2 Pdr 3, 13; cf. Is 66, 22; Apc 21,
1). Enquanto as promessas dos falsos profetas da terra se desvanecem em sangue
e lágrimas, brilha com celeste beleza a grande profecia apocalíptica do
Redentor do mundo: “Eis que Eu renovo todas as coisas” (Apc 21,
5).
Não Nos resta, Veneráveis Irmãos,
senão elevar as mãos paternas e fazer descer sobre Vós, sobre o vosso Clero e
povo, sobre toda a grande Família Católica, a Bênção Apostólica.
Dada em Roma, junto de São Pedro,
na festa de São José, Padroeiro da Igreja Universal, no dia 19 de março de
1937, ano XVI do Nosso Pontificado.
PIO XI PP.