Carlos Nougué
Sempre foi muito
difundida entre o povo cristão, e especialmente entre seus pintores e outros
artistas, a concepção de que o pecado original foi antes de tudo um pecado de
concupiscência; sinal de tal difusão é a grande quantidade de pinturas que, retratando
a Adão e a Eva nus ou seminus, mostram esta oferecendo àquele uma suculenta e
sedutora maçã vermelha.[1]
– Em tempos recentes, por outro lado, estudiosos da gnose insistiram em que o
pecado original foi antes de tudo um pecado justamente de gnose.
Mas nenhuma dessas duas
opiniões se sustenta, especialmente porque nenhuma delas se segue do consentimento
unânime ou quase unânime dos Padres quanto a este assunto (e, como se sabe, não
é lícito contrariar tal consentimento, em especial quando se trata de exegese
bíblica); nem da doutrina de Santo Tomás de Aquino, o Doutor Comum da Igreja
por determinação do magistério eclesiástico; nem, sobretudo, deste mesmo
magistério, ao qual devemos dócil e humilde assentimento.[2]
I
Com efeito, lê-se no Catecismo da Doutrina Cristã de São Pio
X (o catecismo de 1912):
“70. Che peccato fu quello di Adamo?
II peccato di Adamo fu
un peccato grave di superbia e di disubbidienza”, ou seja:
“O pecado de Adão foi um
pecado grave de soberba e de desobediência”.
Explica-o Santo Tomás (na
Suma Teológica, I-II, q. 82, a 3): “Cada
coisa tem a espécie por sua forma. Ora, disse-se mais acima que a espécie do
pecado se toma de sua causa. Por conseguinte, é necessário que o que nele é
formal se defina por tal causa. Como todavia as coisas opostas têm causas
opostas, por isso mesmo se deve estabelecer a causa do pecado original por seu
oposto, que é a justiça original [ou seja, o estado em que foram criados Adão e
Eva]. Mas toda a ordenação da justiça original vinha de que a vontade humana estivesse
sujeita a Deus. Tal sujeição se dava, antes de tudo e sobretudo, pela vontade,
porque é à vontade que corresponde mover a seu fim todas as outras partes da
alma, como se disse mais acima. Assim, foi do afastamento da vontade [de Adão e
Eva] de Deus [o que constitui, propriamente, o pecado de soberba e de desobediência
de que fala o catecismo] que se seguiu a desordem em todas as outras potências
da alma [tanto em Adão e Eva como em sua descendência].
Desse modo, a privação
desta justiça [a original] pela qual a vontade se submetia a Deus é o formal no
pecado original: toda e qualquer outra desordem das potências da alma se tem no
pecado original como algo material. Mas o que constitui a desordem das outras
potências da alma é sobretudo que elas estejam voltadas para um bem mutável,
desordem que pode chamar-se pelo nome comum de concupiscência. E, assim, o
pecado original é materialmente a concupiscência, mas formalmente é a ausência
da justiça original”.
É verdade que, como
dizem Santo Tomás e numerosos Padres, não deixou de haver no pecado original
dupla sedução: antes de tudo, da serpente com respeito a Eva, pela promessa de
que se ela e Adão comessem da proibida árvore da ciência do bem e do mal de
modo algum morreriam, porque “Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes dele
[o fruto da árvore proibida], se abrirão vossos olhos, e sereis como deuses,
conhecendo o bem e o mal. Viu pois a mulher que (o fruto) da árvore era bom
para comer, e formoso aos olhos, e tirou do fruto dela e comeu; e deu a seu
marido, que também comeu. E os olhos de ambos se abriram; e, tendo conhecido
que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram para si cinturas” (Gn 3,
4-7). Depois, de Eva com respeito a Adão, como se vê pelas mesmas palavras do
Gênesis que se acabam de citar. Mas a sedução da mulher pela serpente, conquanto
de fato tivesse precedido a ação de pecar, foi todavia subsequente a um pecado
de soberba, interior. Com efeito, observou Santo Agostinho (citamo-lo de
memória): “A mulher não teria crido nas palavras da serpente se já não tivesse no
espírito o amor de seu próprio poder e certa presunção soberba de si mesma”. E
diga-se o mesmo com relação a Adão: não se teria deixado levar a agir contra o
formal da justiça original se já não tivesse no espírito algum amor-próprio e
certa presunção de si mesmo. Repita-se, pois, com Santo Tomás, que o pecado
original pôde envolver materialmente alguma concupiscência, mas formalmente se constituiu
em contrariedade da justiça original, ou seja, em negação da devida sujeição da
vontade a Deus.
II
A gnose, no sentido que nos interessa aqui, começou antes de Cristo.
Parece ter sua origem no bramanismo, e ressurgir, na antiga Grécia, no âmbito
dos mistérios órficos e da seita pitagórica (com ecos em Platão). Sua doutrina cifra-se
na crença de que a salvação do homem se dá mediante o conhecimento da divindade
alcançado por esforço ascético e intelectual próprios. Depois de Cristo, sem
deixar de cifrar-se nessa crença, a gnose adquire novos caracteres, e não raro
vem no bojo de alguma heresia cristã.
Por certo os referidos
estudiosos se fundaram nas mesmas palavras do Gênesis transcritas mais acima
para afirmar que o pecado original foi antes de tudo um pecado de gnose. Com
efeito, Adão e Eva comeram da árvore da “ciência [e gnose quer dizer
etimologicamente ‘conhecimento, ciência’] do bem e do mal”, porque se deixaram
seduzir pelas palavras da serpente: “se abrirão vossos olhos [ou seja,
conhecereis, tereis ciência] e sereis como deuses”. Trata-se, porém, de conclusão
precipitada, pelas seguintes razões.
• Em primeiro lugar e
segundo o dito mais acima, ainda que nossos primeiros pais se tenham deixado
seduzir também por uma promessa de certo conhecimento ou ciência, a apetência desta constituiu, como certa
concupiscência, parte do material do pecado original, não seu formal, que continuaria
a ser a negação soberba da devida sujeição da vontade a Deus.
• E, em segundo lugar, está
o que se lê no Catecismo Maior de São
Pio X (ao menos em sua versão brasileira, mais precisamente em sua “Breve
história da Religião”):
“19. [Deus] Havia-lhes permitido [a Adão e Eva] que comessem de
todos os frutos do Paraíso terrestre, proibindo-lhes apenas que experimentassem
o fruto de uma árvore que estava no meio do Paraíso, e que a Escritura chama árvore da ciência do bem e do mal.
Chama-se assim porque Adão e Eva, por sua obediência, teriam conhecido o bem,
isto é, haveriam tido aumento de graça e de felicidade; ou, como castigo de sua
desobediência, deveriam decair, eles e seus descendentes, daquela perfeição e
experimentar o mal, tanto espiritual como corporal.
Queria Deus que Adão e
Eva, com a homenagem dessa obediência, o reconhecessem como a seu Dono e
Senhor.
O demônio, invejoso de
sua felicidade, tentou Eva, falando-lhe por meio da serpente, e instigando-a a
desobedecer à proibição recebida. Eva, então, tomou o fruto proibido, comeu, e
induziu Adão a que também ele o comesse, e ambos pecaram”.
Pois bem, dizer bem e
mal é dizer respeito também ao agir, ao prático, e à vontade: e o conhecimento buscado tanto pela gnose pré-cristã
como pela pós-cristã é antes da ordem do estritamente especulativo, servindo-lhe a ascese de
mero meio. Ora, como acabamos de ver também pela citação do Catecismo Maior, a sujeição a Deus que constituía a justiça
original era antes de tudo da vontade, e a serpente disse a Eva que eles seriam
como deuses antes de tudo por quebrantar o formal da justiça original. É verdade
que o quebrantamento da devida sujeição a Deus e à lei natural também está
presente nas seitas gnósticas, sobretudo as pós-cristãs. Mas seu fim segue
sendo a salvação pelo conhecimento perfeito da divindade que seus sectários ou iluminados
alcançariam graças a seus próprios esforços, fosse possível tal conhecimento nesta
vida: não o é senão sob a luz da glória para os salvos pela misericórdia de
Deus. Mas os salvos por sua misericórdia não o são por terem conhecido
mais que outros a Deus, e sim sobretudo por o terem amado: porque nesta vida,
como diria Santo Tomás de Aquino, mais vale amar que conhecer a Deus, para na
outra vida amá-lo indefectivelmente justo por conhecê-lo por essência.