Capítulo 186
Dos preceitos dados ao primeiro homem, e de
sua perfeição no primeiro estado
Como se disse acima [c. 152], o
homem foi instituído por Deus em sua condição de modo que o corpo fosse de todo
sujeito à alma: e que, ademais, entre as partes da alma, as virtudes inferiores
se submetessem sem repugnância à razão, e a mesma razão do homem fosse sujeita
a Deus. Porque porém o corpo era sujeito à alma, sucedia que não podia dar-se
nenhuma paixão no corpo que repugnasse ao domínio da alma sobre o corpo, razão
por que não havia lugar para a morte nem para a enfermidade no homem. Mas pela
sujeição das virtudes inferiores à razão havia no homem uma onímoda
tranquilidade da mente, porque a razão humana não era turbada por nenhuma
paixão desordenada. E, porque a vontade do homem era sujeita a Deus, o homem
referia tudo a Deus como ao último fim, e nisto consistia sua justiça e sua
inocência. Mas destas três coisas a última era a causa das outras. Com efeito,
se se consideram seus componentes, não decorria da natureza do corpo que não
houvesse lugar nele para dissolução nem para nenhuma paixão que repugna à vida,
porque era composto de elementos contrários. Semelhantemente, tampouco decorria
da natureza da alma que também as virtudes sensíveis se submetessem sem
repugnância à razão, porque as virtudes sensíveis naturalmente se movem às
coisas que são deleitáveis segundo o sentido, as quais muitas vezes repugnam à
reta razão. Era pois por uma virtude superior, ou seja, a de Deus, que, assim
como uniu ao corpo uma alma racional, que transcende toda a proporção do corpo
e das virtudes corporais, como as virtudes sensíveis, assim também deu à alma
racional a virtude de sobre a condição do corpo poder contê-lo e às virtudes
sensíveis, segundo o que competia à alma racional. A fim pois de que a razão
contivesse firmemente sob si as coisas inferiores, era necessário que ela mesma
se contivesse firmemente sob Deus, do qual tinha a referida virtude sobre a
condição da natureza.
Portanto, o homem foi instituído
de modo que, se sua razão se submetesse a Deus, nem seu corpo podia furtar-se ao
império da alma, nem as virtudes sensíveis à retidão da alma: daí que sua vida
fosse de certo modo imortal e impassível, porque, com efeito, não podia morrer
nem padecer, se não pecasse. Mas podia pecar por sua vontade, ainda não
confirmada pela aquisição do fim último, e sob este evento podia morrer e
padecer. E nisto diferem a impassibilidade e a imortalidade que o primeiro homem
teve e a que na ressurreição terão os santos, que nunca poderão padecer nem
morrer porquanto sua vontade estará de todo confirmada em Deus, como acima se
disse [c. 166]. Diferia também da outra porque após a ressurreição os homens não
usarão de alimentos nem das coisas venéreas, enquanto o primeiro homem foi
formado de modo que necessariamente tivesse de sustentar a vida por alimentos,
e se encarregasse de dar a obra da geração, para que o gênero humano se
multiplicasse a partir de um.
Por isso recebeu dois preceitos em sua
condição. Ao primeiro pertence o que lhe foi dito [Gn 2, 16]: “Come de todas as
árvores que há no Paraíso”; ao segundo, o que [também] lhe foi dito [Gn 1, 28]:
“Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra”.
Capítulo
187
Este estado perfeito se chamava justiça original,
e do lugar em que o homem foi posto
Mas este tão ordenado estado do
homem se chama justiça original, pela qual ele estava submetido a seu superior,
e a ele mesmo se sujeitavam todas as coisas inferiores, segundo o que dele se
disse [Gn 1, 16]: “e presida aos peixes do mar, e às aves do céu”: e, entre
suas partes, também a inferior se submetia à superior sem repugnância. Em
verdade, este estado foi concedido ao primeiro homem não como a determinada
pessoa singular, mas como ao primeiro princípio da natureza humana, de modo que
por ele fosse transmitido junto com a natureza humana aos pósteros. E, porque a
cada um se deve um lugar segundo a conveniência de suas condições, o homem
assim ordenadamente instituído foi posto num lugar temperadíssimo e delicioso,
para que se lhe suprimisse toda e qualquer vexação não só das moléstias
interiores, mas ainda das exteriores.
Capítulo
188
Da árvore da ciência do bem e do mal, e do
primeiro preceito dado ao homem
Porque porém o referido estado do
homem dependia de que a vontade humana se sujeitasse a Deus, para que desde o
princípio se acostumasse a seguir a vontade de Deus, Deus propôs ao homem
alguns preceitos, a saber, que comesse de todas as árvores do Paraíso,
proibindo-lhe todavia com ameaça de morte que comesse da árvore da ciência do
bem e do mal; e sem dúvida se proibiu que comesse desta árvore não porque fosse
de si má, mas para que o homem ao menos nesta pequena coisa observasse algo pela
simples razão de que era preceituado por Deus: daí que comer desta árvore se
tenha tornado mau, porque proibido.
Mas tal árvore se dizia da
ciência do bem e do mal não porque tivesse virtude causativa da ciência, mas
pelo evento sequente, ou seja, porque o homem por ter comido dela aprendeu por
experiência a distância que medeia entre o bem da obediência e o mal da
desobediência.
Capítulo
189
Da sedução de Eva pelo Diabo
Por conseguinte, o Diabo, que já
pecara, vendo o homem de tal modo instituído para a felicidade perpétua de que
ele caíra, e que [aquele] igualmente poderia pecar, empreendeu desviá-lo da
retidão da justiça atacando o homem pela parte mais fraca, ou seja, tentando à
mulher, na qual menos vigia o dom ou a luz da sabedoria: e, a fim de incliná-la
de modo mais fácil à transgressão do preceito, excluiu mendazmente o medo da
morte, e prometeu-lhe o que o homem naturalmente apetece, isto é, a evitação da
ignorância, dizendo [Gn 3, 5]: “se abrirão vossos olhos”; e a excelência da
dignidade: [“sereis como deuses”; e a perfeição da ciência:] “conhecendo o bem
e o mal”. O homem, com efeito, da parte do intelecto naturalmente foge à
ignorância, e apetece a ciência; mas da parte da vontade, que é naturalmente
livre, apetece a excelsitude e a perfeição para não estar submetido a ninguém,
ou ao menor número possível.
Capítulo
190
O que induziu a mulher [a pecar]
A mulher, portanto, cobiçou a
excelsitude prometida e ao mesmo tempo a perfeição da ciência. Para isso
concorreram também a beleza e a suavidade do fruto, o que incitava a comê-lo, e
assim, desprezando o medo da morte, transgrediu o preceito de Deus de não comer
da árvore proibida: e assim seu pecado se encontra multiplicado. Em primeiro
lugar, sem dúvida, [é] de soberba, porque apeteceu desordenadamente a
excelência. Em segundo, de curiosidade, porque cobiçou uma ciência para além
dos limites prefixados. Em terceiro, de gula, porque a suavidade do alimento a
excitou a comê-lo. Em quarto, de infidelidade, pela falsa estimação de Deus,
enquanto creu nas palavras do Diabo contra o que dissera Deus. Em quinto, de
desobediência, por transgredir o preceito de Deus.
Capítulo
191
De que modo chegou ao homem o pecado
Mas por persuasão da mulher o
pecado logo chegou ao homem, que, todavia, como diz o Apóstolo [1 Tim 2, 14],
não foi seduzido como a mulher, quer dizer, não creu nas palavras do Diabo
contra o que dissera Deus. Com efeito, não podia entrar em sua mente que Deus
tivesse podido cominar algo mendazmente, nem proibir inutilmente uma coisa
útil. Foi induzido, contudo, pela promessa do Diabo, apetecendo indevidamente a
excelência e a ciência. Com isso sua vontade se desviava da retidão da justiça,
e, querendo atender ao capricho da mulher, secundou-a na transgressão do divino
preceito, comendo do fruto da árvore proibida.