Carlos Nougué
I
Como o mostra Santo
Tomás de Aquino (cf. Suma Teológica I,
q. 1, a. 10, c.), o autor das Escrituras é Deus mesmo, e,
para significar algo, ele pode empregar não somente palavras – o que também o homem faz –, mas as coisas mesmas. Só as Escrituras têm como próprio que as próprias coisas
significadas pelas palavras também possam significar algo. A primeira significação,
ou seja, aquela segunda a qual as palavras significam algo, constitui o sentido literal ou histórico das
Escrituras, enquanto a significação pela qual as próprias coisas significadas
pelas palavras designam, por sua vez, outras coisas é o sentido chamado espiritual.
Este segundo sentido, todavia, se funda no sentido literal ou o pressupõe.
II
Mas o sentido espiritual
subdivide-se por sua vez. Com efeito, diz o Apóstolo (cf. Epístola aos Hebreus)
que a lei antiga é figura da lei nova, enquanto a lei nova, como diz Dionísio Areopagita,
é figura da glória futura. Na lei nova, ademais, o que se cumpriu na cabeça é
figura do que devemos fazer.
1. Assim, quando nas
Escrituras as coisas da lei antiga significam as da lei nova, tem-se o sentido alegórico;
2. Quando, por outro
lado, as coisas sucedidas em Cristo, ou no que Cristo representa, são sinal do
que havemos de fazer, tem-se então o sentido
moral.
3. Quando, enfim, estas
mesmas coisas significam as coisas da glória eterna, então se tem o sentido anagógico.
III
Como, todavia, o sentido literal é justamente o que o
autor quer significar, e como, repita-se, o autor mesmo das Escrituras é Deus,
que intelige simultaneamente todas as coisas, não há inconveniente algum em
que, como o diz Santo Agostinho, em um mesmo texto das Escrituras se encontrem
vários sentidos, sempre, insista-se, segundo o sentido literal ou histórico ou
em ordem a este.
IV
Há que entender
adequadamente, no entanto, o que aqui se chama literal. Literal tem aqui
exatamente o sentido de à letra (ad litteram), ou seja, segundo a letra.
Mas a letra pode ser também de alguma analogia
de proporcionalidade imprópria, ou seja, de alguma metáfora, ou de alguma figura aparentada à metáfora: símile, metonímia, sinédoque, hipérbole, etc. É o que se chama sentido parabólico,
que, di-lo Santo Tomás de Aquino (Suma
Teológica I, q. 1, a. 10, ad 3), “está contido sob o sentido literal:
porque pelas palavras podemos significar algo em sentido próprio ou em sentido figurado
[ou seja, por analogia de
proporcionalidade imprópria, como dito]; neste último caso, o sentido
literal não designa a própria figura, mas o que ela figura [ou representa]. Com
efeito, quando as Escrituras falam do braço de Deus, o sentido literal não
indica que haja um membro corporal em Deus, senão que indica o que é
significado por esse membro, no caso a virtude operativa [divina]. Isso patenteia que o sentido literal das
Sagradas Escrituras não pode nunca padecer nada falso” (destaque nosso).
V
E, com efeito, afora
casos eventuais de defeito de cópia, as Sagradas Escrituras não podem conter
erro algum: justamente porque Deus, seu autor, é inerrante, enquanto o
hagiógrafo ou escritor sagrado não é senão o instrumento de que se vale Deus de
modo, insista-se, inerrante.* Mas o
dito mais acima há de prevenir-nos contra um exagero interpretativo, no qual
nunca incorrem os Padres, nem Santo Tomás, nem, muito menos, o magistério da
Igreja: o de considerar que o sentido literal nunca pode ser metafórico, e
assim julgar que as palavras das Escrituras têm caráter de um como tratado
científico. Não o têm. Vejamos alguns exemplos.
• Conquanto o Gênesis encerre
todos os principais caracteres metafísicos da criação do mundo (criação no
tempo e de nada [ex nihilo], ordem da
criação, culminação no homem, etc.), nele Deus, por intermédio do instrumento Moisés,
se vale de imagens sensíveis, e isso é assim porque, como dizem, entre outros,
São João Crisóstomo, Santo Tomás de Aquino e Leão XIII (este na encíclica Providentissimus Deus), o Gênesis foi
escrito para “um povo rude” que, no entanto, precisava educar-se na fé em ordem
a ser aquele de onde nasceria o Messias. É por essa razão, aliás, que Santo
Tomás de Aquino, ao tratar na Suma
Teológica dos Dias da Criação, suspende o juízo quanto ao número destes e
apenas expõe as diversas interpretações dos Padres (ou sete dias exatos, ou,
para Santo Agostinho, incontáveis “anos” angélicos, etc.).**
• Não há erro algum no
dito em Jó 20, 26, ou seja, que a víbora mata pela língua: trata-se de perfeita
metáfora; assim como não há erro algum em dizer que o grão ou semente de mostarda
é a menor de todas: trata-se de hipérbole (ou talvez se diga segundo a agricultura de então).
Mas, insista-se, que não
haja nem possa haver erro algum nas Escrituras não implica que estas se componham
de tratados científicos. – Consigne-se, aliás, o ridículo de certos
tradicionalistas atuais segundo os quais a terra está imóvel no centro do
universo (pode até, com efeito – o que é opinável –, ocupar o centro geométrico do universo; mas já temos
certeza de que se move com movimento de rotação e de translação) ou, pior, é
chata, suspensa por umas sortes de colunas e coberta por uma redoma
transparente... Isso, como diriam Santo Tomás de Aquino e Leão XIII, é lançar a
fé ao escárnio dos ímpios.
VI
Que todo o dito
contribua para que os católicos bem-intencionados não se deixem
pegar nas armadilhas de interpretações arbitrárias ou caprichosas, como a que com assombro
vemos fazer-se agora mesmo com respeito à passagem evangélica das árvores e dos
frutos sem levar em conta o estabelecido verdadeiramente pelos Padres e pelo magistério
da Igreja (cf. Simples perguntas a um sofista: e Decretos dogmáticos sobre a interpretação das Escrituras).
* Se o hagiógrafo,
enquanto instrumento de Deus, é absolutamente inerrante, o papa, enquanto
assistido pelo Espírito, é infalível. Por um ângulo, ser inerrante é mais que
ser infalível; mas, por outro ângulo, como o magistério do papa enquanto
assistido pelo Espírito é a regra próxima da fé (ao passo que as Escrituras são
a regra remota da fé), este magistério está de certa forma acima da mesma fé e
é o intérprete infalível e último das mesmas Escrituras.
** E, com efeito, nunca o
magistério definiu a questão. Como, ademais, os Padres não chegaram quanto a
este ponto a consentimento unânime, então nos é lícito adotar esta ou aquela
posição a este respeito, ou suspender o juízo como Santo Tomás de Aquino –
desde que não se neguem os referidos caracteres metafísicos, e muito
especialmente o relato de Adão e Eva, o qual, como sempre disse o magistério,
há de tomar-se de todo historicamente.