PERGUNTA DO ALUNO
Já
terminado o curso, me surgiu por ocasião de uma outra leitura uma dúvida que
concerne à criação do mundo.
Apresenta
Santo Tomás na Suma Teológica, I Q.19 a.4, no corpus, as razões por que Deus
criou o mundo por sua vontade e não por sua natureza. A primeira delas consiste em que tudo o que obra
por natureza pressupõe um agente intelectual, e portanto voluntário, que lhe dê
o fim a ser alcançado e os meios para tal.
Sobre
isto, é correto dizer que todo agente natural, na medida em que possui em si
certa ordenação a um fim, possui algo em si que, ainda que o seja por sua mesma
natureza, não está nele constituindo seu supósito segundo sua mesma razão, mas
que tende a algo exterior, ou pelo menos tende a um novo acidente distinto destes
que possui agora se o objeto da ação permanecerá no agente, e por isto mesmo só
o poderia possuir intelectualmente, apreendendo a razão disto, ou então
recebendo de outro (de Deus mesmo, autor de toda natureza)?
Por exemplo, um vegetal que naturalmente vá
gerar outro, não possui em sua quididade a razão deste fim a ser obtido do
mesmo modo como possui nela o que propriamente o constitui neste supósito, mas
a possui como uma inclinação a algo exterior que, se dependesse apenas daquilo
necessário para ser este mesmo supósito, não possuiria. Daí ser necessário que,
uma vez desprovido de intelecto pelo qual assimile as quididades de outras
coisas e de vontade pela qual se incline a elas, receba de um agente
intelectual tais razões do fim e de seus respectivos meios de ser obtido bem
como a inclinação.
Ainda, mesmo que a potência de geração seja uma propriedade da substância vegetativa, não está nela como aquilo por cuja razão se realiza em dado supósito, mas como algo a mais dado por Deus à mesma natureza para a propagação da criação. Do contrário, o agente natural não pressuporia um agente intelectual quanto à ordenação a seu fim.
Ainda, mesmo que a potência de geração seja uma propriedade da substância vegetativa, não está nela como aquilo por cuja razão se realiza em dado supósito, mas como algo a mais dado por Deus à mesma natureza para a propagação da criação. Do contrário, o agente natural não pressuporia um agente intelectual quanto à ordenação a seu fim.
É
esta a razão pela qual um agente natural pressupõe outro intelectual, ou me
equivoco?
RESPOSTA DO PROFESSOR
Todo e qualquer agente natural é como um instrumento
do Agente primeiro – intelectual e voluntário – justamente porque todo ente
destituído de intelecto e de vontade não pode ordenar-se por si mesmo a um fim.
Mas não é que Deus leve diretamente cada
ente natural a seu fim, como se fora um instrumento artificial, assim como
nenhuma serra alcançará o fim para a qual foi feita se não a empunhar para tal
alguma mão humana. Como diz S. Tomás no Comentário
à Física de Aristóteles, a natureza é
a razão de certa arte divina intrínseca aos entes e que os faz mover-se por si
mesmos a seu fim. Em outras palavras, ao criar os entes naturais, Deus lhes
deu como parte de sua natureza o mover-se naturalmente por si mesmos a seu fim.
Naturalmente, tudo quanto os entes naturais façam estará sujeito a
contingência, mas Deus não lha suprime, senão que o universo inteiro está feito
de modo tal, que as ações do entes concorrem para a mesma ordem do universo e
pois para o proveito do homem, o qual, por sua vez, se ordena à fruição
intelectual de Deus.
Ademais, como diz ainda o nosso Doutor, a
pedra imita a Deus em ser; o vegetal, em ser e em viver; o animal, em ser, em
viver e em conhecer (sensitivamente); o homem, em ser, em viver e em conhecer
(racionalmente, incluindo a Deus); e o anjo, em ser, em viver e em conhecer
(intuitivamente, incluindo a Deus) – e imitar a Deus por certa semelhança é já
atingir o fim último do universo. Mas é preciso saber se todos os entes convêm igualmente neste último fim, e há que
responder que não. Com efeito, pode falar-se do fim segundo se trate da própria
coisa em que se encontra a razão de bem (finis cuius, ou
fim simpliciter) ou segundo seu uso ou fruição (finis quo, ou fim secundum quid). Assim, o fim de
quem tem ambição política é, pelo ângulo da própria coisa apetecida, o poder;
mas, pelo outro ângulo, é sua posse ou usufruto. Ora, se se trata do fim último
do homem enquanto é a coisa mesma que é fim, então todas as demais criaturas convêm
com ele: porque, com efeito, com dito, é Deus mesmo o fim último não só do
homem, mas de todos os entes, visíveis como invisíveis. Se todavia se
trata do último fim do homem enquanto consecução ou fruição deste fim, então é
patente que as criaturas irracionais não têm em comum com o homem o fim último
deste, porque o homem, como as outras criaturas intelectuais, atinge seu último
fim inteligindo e amando este mesmo fim último, que é Deus, enquanto as
criaturas irracionais não o podem inteligir nem amar.