quarta-feira, 17 de junho de 2015

Tomismo, S. Tomás, Maritain, etc. (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


PERGUNTAS DO ALUNO

Se bem entendi, o professor sustenta que, de forma geral, as principais causas dos erros dos discípulos de Sto. Tomás são os ataques de um ambiente hostil conjugados com certa condescendência, ou recuo, dos próprios tomista, provavelmente, dada falta de uma relação vital e real com o tomismo. Sem querer iniciar uma regressão ad infinitum: por que falta essa relação vital e real? Seria isso obra do ambiente, ie, das condições existenciais? Se o é, pode-se reduzir a segunda causa à primeira? Ou seja, pode-se dizer que não se tem uma relação vital e real com o tomismo devido aos ataques intelectuais que ele sofre? Assim não me parece... Qual seria, pois, a causa?
Uma segunda questão: o professor também menciona a confusão entre essência e existência, que parece ser reiterada entre alguns discípulos de Sto. Tomás. Há alguma causa específica para esse equívoco? Me parece ser uma distinção um tanto quanto intuitiva, por que erram? E em que medida confundir essência e existência implica em confundir ser e ente?
Mudando ligeiramente a temática (nem tanto quanto parece, acredito), o senhor menciona que Garrigou-Lagrange erra em filosofia, mas não em teologia. Mas se a filosofia está ordenada à teologia, sendo como que um preâmbulo desta, como é possível errar na filosofia e, não obstante, acertar na teologia? Nesse caso, a teologia não seria “postiça”? Ou será possível que o erro (na filosofia) conduza ao acerto (na teologia)? Terceira hipótese, acaso o(s) erro(s) filosófico(s) de Lagrange seriam não-essenciais, por assim dizer?
Então, basicamente, com sua licença, para praticar a forma mentis tomista, minhas questões se reduziriam a 3:
1) Se a causa dos erros dos tomistas pode ser reduzida a uma única?
2) Se há causa específica para a confusão entre essência e existência?
3) Se é possível errar na filosofia enquanto se acerta na teologia e em que medida?
Duas questões mais “mundanas”: (1) Se o senhor fosse fazer uma crítica quanto a Santo Tomas, qual seria? (2) Fez-se menção a que Maritain está errado, aparentemente em relação à lógica (não sei se entendi bem). Que erro seria? O livro “Lógica Menor” é seguro? Estou ciente das críticas a Maritain em âmbitos outros que não a lógica.


RESPOSTAS DO PROFESSOR

1) Quanto à primeira pergunta, não posso dar resposta precisa. Lembre-se de que, quanto aos singulares ou eventos singulares, não há propriamente ciência, como dizia Aristóteles. (Por isso, aliás, dizia ele que em certo sentido a Poesia é superior à História.) Pode-se apenas constatar o que citei: a hostilidade ambiente, certa tibieza na defesa da doutrina de Tomás, o não deixar-se formar mentalmente de todo por sua doutrina... ou ainda a pura e simples incompreensão.
2) Veja um caso típico de assunção das teses adversárias por parte de quase todos os tomistas– ou de mera, digamos, “preguiça intelectual”, porque com efeito se trata de distinções metafísicas e nada evidentes quoad omnes, mas tão só para os que penetraram a doutrina do Mestre. Resumamos ambas as distinções (e trata-se apenas de um resumo porque tratarei delas nas próprias aulas); mas diga-se que a confusão em cada distinção não tem influência direta sobre a outra.
a) Ente criado é não só o que é, mas o que tem ser, ao passo que Ser é tão somente Deus, que, ademais, é quem dá o ser aos entes. Repita-se: a concepção de ente criado implica certa composição (ter ser), enquanto o ser não implica nenhuma. E seria impossível um “ser” ter ser – razão por que Deus não o tem, senão que é O Próprio Ser Subsistente Por Si Mesmo (já se lia no Êxodo: “Eu sou Aquele que É”), ao passo que os entes criados, cada ente o tem por participação de Deus.
b) A distinção entre essência e existência é evidente quod omnes (para todos), mas é distinção de razão com fundamento in re (na coisa, na coisa real); ao passo que a distinção entre essência e ser (ou ato de ser, actus essendi) é real mas só acessível aos sapientíssimos. O ser ou ato de ser é um constitutivo metafísico de todo e qualquer ente, em par de opostos com a essência. É o ato dos atos, e é por ele que se atualiza tudo: essência, forma, etc. O único destituído de tal composição é ainda Deus: não há nele oposição nem distinção real entre essência e ser ou ato de ser, senão que sua essência é ser. – Em resumo: a existência é o fato de ser, enquanto o ser é o ato de ser. – É talvez a mais propriamente tomista de todas as teses, e eludi-la ou confundi-la – ao confundir existência e ser – sempre foi um dos maiores pecados do tomistas.   
 3) Esta é a mais profunda de suas perguntas, uma verdadeira objeção no sentido tomista. Pois bem, vamos por partes.
a) Antes de tudo, como se fala em alguma aula e se voltará a falar em outra, há sempre dois tipos de ordenações: a per se ou essencial (como a do corpo à alma no composto humano e a da razão à fé na Teologia Sagrada [não confundir esta com a Teologia Filosófica = Metafísica ou Filosofia Primeira]); e a per accidens ou acidental. É deste último tipo a ordenação da Filosofia à Teologia Sagrada (até porque lembre-se de que, como o diz S. Tomás, stricto sensu esta não necessita daquela).
b) Mas mesmo numa ordenação essencial nem sempre o que se ordena se ordena perfeitamente àquilo a que se ordena: por exemplo, conquanto o corpo se ordene essencialmente à alma no composto humano, não raro ele falha – e, quando falha, ou não impede a operação própria da alma (assim, um velho com o corpo decrépito pode porém pensar como se fosse um jovem), ou a estorva (em algumas doenças psicossomáticas, por exemplo) ou até a impede (nos casos de anencefalia, por exemplo).
c) Pois bem, subdividamos ainda:
• Uma má filosofia, como a cartesiana ou a malebranchiana ou, em geral, toda a filosofia pós-tomista, pode até impedir de todo que se dê uma boa teologia sagrada;
• Quando porém se trata de uma boa filosofia com falhas (como a de Garrigou-Lagrange), podem ainda dar-se duas coisas. Mas para entendê-lo é preciso saber, antes, que toda e qualquer ciência não o é senão mediante argumentos ou silogismos. Ora, na Teologia Sagrada se dão dois tipos de raciocínios: ou o raciocínio em que há uma premissa teológica (sagrada) e outra filosófica; ou o argumento em que ambas as premissas são teológicas (sagradas). Pois bem, referia-me na aula à parte da teologia sagrada de Garrigou-Lagrange que envolve apenas o segundo tipo de raciocínios (ou seja, os raciocínios com duas premissas teológicas sagradas).
4) Quanto à quarta questão. Naturalmente, S. Tomás não era dotado de inerrância. Mas quão poucos “erros” cometeu (e se pus a palavra entre aspas é porque efetivamente não se trata propriamente de erros, mas de imprecisões, de vacilações, ou de teses caudatárias de teses científicas empíricas hoje superadas, decorrentes da falta de meios ou instrumentos científicos superiores). São eles:
a) O primeiro, que não vem ao caso num curso de Filosofia e que só tem lugar em ambiente católico: a hesitação sua quanto à Imaculada Conceição de Maria.
b) O reproduzir o esquema cosmológico de Aristóteles (as esferas celestes, a incorruptibilidade dos astros, etc.).
c) Por fim, o seguir o esquema ainda de Aristóteles quando à constituição da alma humana: por gerações e corrupções sucessivas até a infusão da alma superior por Deus.
5) Quanto à ultima questão. Maritain peca em diversos âmbitos:
a) Na Lógica, por ser nisto inteiramente caudatário de João de Santo Tomás. De fato, sua Lógica Menor (falo dela em algumas aulas) não é confiável em muitos aspectos e partes. Tratarei o assunto na Introdução à Lógica.
b) Na Física, por ceder à pressão das chamadas “ciências modernas”. Tratarei o assunto na Introdução à Física.
c) Na Política, por ser nisto grandemente caudatário de Dante, Francisco de Vitória, Suárez e outros, mas com uma ressalva: com grande contribuição de sua própria lavra para o erro. E é o de consequências mais nefastas. Tratarei o assunto no apêndice “A Política e sua Ordem ao Fim Último do Homem”.