quarta-feira, 17 de junho de 2015

Sexo masculino e sexo feminino (em resposta a pergunta de aluna do curso Por uma Filosofia Tomista)


PERGUNTA DA ALUNA

O senhor explicou muito bem a questão da essência e dos acidentes. Não sei se o que perguntarei é respondido nas aulas posteriores à quinta, na qual estou (se sim, basta me indicar onde que fico grata). Vou tentar me explicar sem confusão. Algumas vezes quando se fala do "homem", ou do "cão", ou do "gato" etc., eu os compreendo Homem, Cão e Gato, não "entes particulares" (não sei se se fala assim). Ao tentar distinguir em alguns entes sua essência e seus acidentes, esbarrei em uma dúvida: em essência, eu sou uma substância, vivente, animal, racional. Mas, além disso, sou do gênero feminino. Há homens (seres humanos) do gênero masculino. Ser do gênero feminino (ou masculino) é essência quando se trata de um ente individual e não do Homem em geral (nem que eu queira serei masculina em essência um dia)? Ou é acidente? Se for acidente, é passível de mudança?

  
RESPOSTA DO PROFESSOR

Muito boa a pergunta. Para responder a ela, vou por partes.
1) Sim, ao falarmos de homem e não deste ou daquele homem, ao falarmos de cão e não deste ou daquele cão, ao falarmos de gato e não deste ou daquele gato, falamos da essência (naturalmente universal), respectivamente, de todos os indivíduos humanos, de todos os indivíduos caninos, de todos os indivíduos “gatunos”. O indivíduo enquanto indivíduo não tem essência, lembre-se sempre disto; enquanto é tal, enquanto é indivíduo, tem apenas uma quididade: diferença numérica.
2) Sim, a definição de homem é: substância, vivente, animal/sensível, racional, embora seja suficiente e conveniente defini-lo pelo gênero próximo (animal) e pela diferença específica (racional): animal racional. – A definição é sempre a definição da essência.
3) Mas ser masculino ou feminino não é parte da definição da essência, senão que se vincula a um acidente. Mas que tipo de acidente?
a) Antes de tudo, é um acidente material, ou seja, está entre os acidentes que derivam da matéria.
b) Os acidentes materiais, todavia, também se dividem (e vou seguir de perto aqui o opúsculo – um dos primeiros escritos de S. Tomás – De ente et essentia, c. VI, § 4):
• Alguns acidentes seguem a matéria segundo a ordem que ela tem a uma forma especial, tal como se dá com o sexo masculino e o sexo feminino nos animais. Sem dúvida a diversidade entre os dois sexos assenta na matéria, mas segundo a ordem referida, razão por que, quando desaparece a forma animal, tais acidentes (sexo masculino e sexo feminino) não se mantêm (a não ser de maneira equívoca, assim como só equivocamente uma mão decepada pode dizer-se mão).
• Outros acidentes, porém, seguem a matéria segundo sua ordem a uma forma genérica. Por isso, ainda que tenha desaparecido a forma especial, estes acidentes ainda se mantêm na matéria. É o que se dá, por exemplo, com a cor da pele, que, por provir da combinação de elementos materiais e não da constituição da alma, se mantém (por um tempo, é óbvio) depois da morte.
4) Naturalmente, os dois sexos não são passíveis de mudança. Você está pensando em acidentes como, por exemplo, ser alto ou baixo, estar pálido ou bronzeado, etc. Há porém outro tipo de acidentes – os chamados acidentes próprios, ou propriedades – que não podem não dar-se nos indivíduos  de determinada espécie, ou, se não se dão em determinado indivíduo, sentimos que falta algo para que se dê nele a perfeição específica. Pois bem, ter sexo (ser sexuado) é acidente próprio da espécie homem, mas o é de tal modo, que não pode dar-se senão dividindo-se em masculino e feminino, exatamente porque o fim de ter sexo é a procriação da espécie. E esta divisão em masculino e feminino é tal, pela própria natureza humana, que não são alteráveis ou intercambiáveis. – Mas atenção: nem sempre é assim entre os animais, e há por exemplo peixes que mudam de sexo, como o peixe-palhaço; entre esta espécie, o macho só o é por tempo limitado. É parte de sua enteléquia crescer e tornar-se fêmea. E, ao que parece, cerca de 10% das espécies de peixes mudam de sexo uma vez na vida, passando de macho a fêmea ou vice-versa. Mas por que é assim, e não é assim nos animais superiores, entre os quais o homem? Porque assim está inscrito em seus respectivos genes, responderá a Biologia, e porque assim determinam suas respectivas formas substanciais, dirá a Física Geral – respostas que, longe de contradizer-se uma à outra, se completam, mas com uma diferença: a primeira é subalternada à segunda.

Observação: Resta dizer uma palavra sobre o hermafroditismo, que sem dúvida alguma se deve a um defeito da parte da matéria: em termos médico-biológicos, deve-se a um problema teratológico, a uma má-formação embrionária. Há três tipos de hermafroditismo: o hermafroditismo verdadeiro, o pseudo-hermafroditismo masculino e o pseudo-hermafroditismo feminino; e naturalmente é o primeiro o mais assombroso. Como quer que seja, todavia, ao considerarmos o hermafroditismo, incluímo-lo entre aqueles defeitos que fazem pensar que falta algo – no caso, a nítida separação entre os sexos – para a perfeição da natureza. – Não se conclua daí, no entanto, que nos hermafroditas esteja ausente a natureza da espécie ou a alma humana; apenas padecem eles precisamente, repita-se, de uma falta ou defeito (< lat. defectus, us, “falta, diminuição” < particípio passado defectum, do verbo deficĕre, “faltar”).