RESPOSTAS DO PROFESSOR NO CORPO DO E-MAIL
DO ALUNO
I) Primeiramente,
eu preciso confessar que ainda não compreendi de todo, esta distinção entre
essência-ser (real) e entre essência-existir (de razão), digo isso, pois as
perguntas podem ser irrelevantes.
RESPOSTA. Não, não são irrelevantes. Se o fossem, tantos tomistas
(muitos deles grandes) não teriam desatendido a tais distinções.
II) Estou
estudando estas distinções dentro do documento 31, aliás muito bem redigido
pelo colega do curso.
Bem,
vamos a elas:
1. Não há
gradações da existência, ou algo existe ou não. Poderia haver, no entanto,
modos? O existir da essência do cão e da esfinge é "igual e
indistintamente" o mesmo? O fato de um existir somente em minha
mente e outro na realidade, não distingue a existência de ambos?
RESPOSTA. A resposta a esta pergunta envolve distinções sutis. Com
efeito, não há graus de existência; ou se é existente, ou não se é existente. O
que há são graus de ser segundo a bondade
ou nobreza, e tais graus fazem parte da quarta via tomista para provar a
existência de Deus. Há, naturalmente, distintos modos de existir: fora da
mente, na imaginação, etc. Mas não se pode dizer que o cão tem grau maior de
existência que a erva, conquanto se deva dizer, sim, que o ser do cão é superior ao da erva. Em outras palavras, posso dizer
que ser cão é ser mais que ser erva; mas não posso dizer que
“existir [como] cão” é “existir” mais que “existir [como] erva”. Uma coisa,
pois, é a distinção possível entre os modos de existência, outra a distinção
entre os graus de ser. Ademais,
existência é o ser em ato, mas é do ato de ser que decorre o ser em ato (e o ato de ser é participado
por Deus a todas as coisas, incluídas as mesmas formas, que não dão o ser senão
como causas segundas). – Por fim, a existência é o que responde à pergunta an sit (“se existe”), e só se distingue
da essência segundo a razão; ao passo
que o ser é a atualidade de todos os atos e o que há de mais íntimo às coisas:
é o que há de mais próprio na Criação, e, nas criaturas, distingue-se realmente (in re) da essência (esta é uma das principais teses tomistas). Com
efeito, nas criaturas a essência não é seu mesmo ser, senão que o tem por
participação; ao passo que em Deus a Essência é o próprio Ser subsistente.
2. Caso
não haja esta distinção, não está certo Descartes ao duvidar da realidade e se
fechar no pensamento?
RESPOSTA. A loucura cartesiana deve-se talvez em parte à mesma
incapacidade de distinguir aqueles dois pares. A existência dos entes sensíveis
é evidente (não assim a dos entes
suprassensíveis: Deus, os anjos, a alma humana). Ora, o homem é sensível. Por
conseguinte, a dúvida cartesiana é uma negação do evidente, razão por que se
enquadra na fórmula segundo a qual “a filosofia moderna é um problema de
psicopatologia” (É. Gilson). – E veja-se que, se a existência dos entes
sensíveis é evidente, não assim seu ser como ato de ser e como realmente
distinto de sua essência.
3. Qual a
diferença entre substância e essência? Etienne Gilson fala que a
substância é composta de essência e existência, mas eu acho que ele está
confundindo existência com ser. Sendo assim, poderíamos dizer que
substância é essência + ser?
RESPOSTA. A substância é, antes de tudo, o que subsiste em si e não em
outro (o que só subsiste em outro são os acidentes) e, depois, o que é sujeito
ou suporte de acidentes. Toda e qualquer substância tem em si essência e ser, enquanto os acidentes só os têm em outro, ou seja, na substância. A
substância, pois, não “é” essência + ser; só em Deus se identificam substância,
essência e ser. A substância, insista-se, tem em si essência e ser, e é esta a maneira mais própria de dizê-lo. –
Por outro lado, essência = quididade, ou seja, é aquilo que responde à pergunta
“o que é”. Qual a essência ou quididade de homem? Ou seja, o que ele é? Animal racional, e esta é sua essência
ou quididade (pelo gênero, animal, a
essência do homem inclui carne e ossos [não esta carne e estes ossos], enquanto
pela diferença específica, racional,
a essência do homem inclui uma alma imaterial ou intelectiva). Vê-se assim que
substância não é o mesmo que essência (embora, como dizem Aristóteles e S.
Tomás, por vezes se use substância por essência e vice-versa).
4. Na
tradução da Suma, publicada pela Loyola, está se confundindo ser com
existência, ou eu entendi errado?
RESPOSTA. Às vezes sim, às vezes não. Este é o maior problema da
tradução de obras como a Suma: feita
por diversas mãos, quase nunca conta com alguém que unifique o resultado final.
E veja que a da Loyola é muito melhor que a da BAC. Mas ainda assim fica para
algum herói uma tradução mais definitiva desta obra suma. (Quantas vezes sonhei com empreendê-la eu mesmo! Mas nunca
tive condições ou força para tal.) – Atenção, porém: Santo Tomás quase sempre
usa o verbo
esse (literalmente, “ser”) também com
o sentido puro e simples de “existir”. Quando o nosso Doutor escreve utrum Deus sit, pode traduzir-se por “se
Deus existe”. Veja-se a diferença, em português, entre o homem existe e o homem é
animal racional; mas no latim de S. Tomás (o que também é possível em
português), ainda que com sentido distinto, se usa em ambos os casos est (literalmente, “é”). Atente-se,
ademais, a esta peculiaridade: antes de S. Tomás sempre se usara existere para “existir”; e creio que, se
ainda para o sentido existencial o nosso Doutor usava o verbo esse, não é senão porque via a existentia justo como intimamente decorrente
do esse ou actus essendi. – Note-se por fim que na pergunta tomista utrum Deus sit (em Suma Teológica, I, q. 2,
a. 3) não se pergunta pelo modo do ser de Deus nem por seu grau, senão que simplesmente
se pergunta se se pode afirmar a existência de Deus ou seu, digamos, “fato de
ser” (se assim não fosse, não diria S. Tomás que o argumento idealista de S.
Anselmo para provar a existência de Deus não explica o ateísmo).
APÊNDICE
Traduzo a seguir algumas páginas preciosas do Padre Cornelio Fabro (em Participación y causalidad según Tomás de
Aquino, Pamplona, EUNSA, 2009, pp. 250-258). Como sempre digo, o Padre
italiano deixou-se levar, por um lado, por demasiada rigidez terminológica e,
por outro lado, por demasiado ecletismo, o que por fim o fez incorrer em algo
perfeitamente antitomista: a hipertrofia da vontade em detrimento do intelecto.
Mas as páginas fabrianas traduzidas abaixo são de fato preciosas, e com elas melhor
se há de entender todo o dito neste documento.
«O obscurecimento do esse na escola tomista
[...] A obnubilação da verdadeira noção tomista do esse que se pode observar no desenvolvimento da escola é
acompanhada (como signo e causa ao mesmo tempo) do abandono da terminologia
primeira própria do Santo Doutor, e da adoção por parte dos tomistas da
terminologia dos adversários [do tomismo e em especial da distinção real entre essentia e esse ou actus essendi].
Dito com uma fórmula drástica mas irrecusável: os tomistas deixaram naufragar
no esquecimento a terminologia de Santo Tomás, para receber a de seu adversário
Henrique de Gante. Assim, defendem a tese tomista, mas num clima doutrinal que
já não é o clima original. [...]
* * *
A importância da noção tomista de esse
abarca – é ocioso dizê-lo – todos os problemas de estrutura que concernem tanto
a Deus como à criatura; têm seu eixo, dito em termos tomistas, na distinção
real de essência e ato de ser [esse].
Em torno desta tese giram, na metafísica de Santo Tomás, especialmente os
problemas da estrutura e da causalidade do finito (criação, conservação, moção
divina...), e, na teologia, particularmente o problema da união hipostática,
partindo do esquema legado por Pedro Lombardo (III Sententiarum, d. 6: Três opiniões...), e que Santo Tomás, desde
o começo de sua carreira, havia formulado nestes termos: Utrum in Christo sit tantum unum esse [ou seja, se em Cristo há apenas um ser] [nota].
Em torno desta dupla série de problemas, desencadeia-se, desde a morte
de Santo Tomás, a ofensiva do antitomismo, especialmente por instigação de
Henrique de Gante. Este fornece os termos precisos da controvérsia, impõe a terminologia
a seu adversário direto, Gil de Roma, e aos tomistas, enquanto adversários que
participam, por sua vez, deste debate apaixonado. Assistimos a uma complicação
de termos capaz de dar vertigem, e que ainda espera um estudo analítico
preciso.[1]
Quanto a nós, bastar-nos-á seguir as principais etapas do que poderíamos
chamar “a flexão tomista” do ato de ser [esse]
na escola tomista. Essas etapas podem, ao que parece, reduzir-se às seguintes:
1. Essentia – esse: é a
terminologia autêntica de Santo Tomás, em quem não conheço nenhum texto que
ponha existentia em lugar e com o
significado de esse (como ato
intensivo), e jamais emprega o Doutor
Angélico a terminologia distinctio (ou
compositio) inter essentiam et existentiam [terminologia que, porém, como dito
numa das respostas acima e especialmente numa aula de nosso curso, é forçoso
adotar em português ou em espanhol para a distinção de razão entre existência e
essência no campo da Física e outros]. Em sua época, seu confrade e
contemporâneo Pedro de Tarentaise (Inocêncio V) emprega o já ambíguo termo actus existendi [“ato de existir”],[nota]
enquanto Santo Tomás sempre diz esse
e actus essendi. Na exposição de
Pedro de Tarentaise, os termos esse, esse actuale [“ser atual”] e actus existendi são empregados
indiferentemente. A indeterminação doutrinal desta posição manifesta-se também
no fato de que Pedro de Tarentaise, diferentemente de Santo Tomás, une num só
bloco a doutrina da distinção real de essência e esse nas criaturas e a da composição hilemórfica [ou seja, de
matéria e forma] nas substâncias espirituais (própria da velha escola
agostiniana),[nota] e contra a qual o Doutor Angélico havia
elaborado precisamente sua distinção [real de essência e esse].[2]
2. Esse essentiae – esse (actualis) existentiae: é a terminologia (de inspiração aviceniana?)[nota]
em que esse significa “realidade” no
sentido mais vago [esse essentiae, esse existentiae, esse generis, esse speciei...
(ou seja, ser da essência, ser da existência, ser do gênero, ser da espécie)],
onde já aparece o equívoco que faz considerar o esse essentiae como a “essência em si mesma” (a essência possível
ou então a essência fazendo abstração tanto de sua possibilidade como de sua
atualização), de modo que a essência não é considerada o quid creatum ut potentia [ou seja, o criado como potência], atualizado
pelo quid creatum ut actus [ou seja, o
criado como ato], que é o esse-actus
essendi participado. Em outras palavras, a tensão metafísica desloca-se do
par tomista original esse per essentiam
[“ser por essência”] e ens per
participationem [“ente por participação”] para o par aviceniano ens necessarium per se ([“ente
necessário por si”, ou seja] Deus) e ens
per aliud possibile [“ente possível por outro”], que é a criatura. Então, a
divergência entre defensores e adversários da distinção real [de essência e esse] atenua-se em seu momento crucial,
e já não é assombroso que esta distinção desapareça ou ao menos se atenue
notavelmente em alguns insignes representantes da escola tomista (Hervé de
Nédellec, P. Niger, Báñez. D. Soto...). Esta terminologia invade logo a escola
tomista e nela domina até o século XVI.
3. Essentia – existentia: é a
simplificação semântica e lógica da fórmula precedente, com a qual coexiste.[3] Mas
especialmente desde o século XVII, e como que por sistema, se transforma na
fórmula do racionalismo ilustrado, que, à sua maneira, se apropriava do
formalismo da segunda escolástica e o transmitia à neoescolástica. Nesta
fórmula, em virtude de uma evolução lógica, o esse, que a fórmula precedente havia volatizado no significado vago
de entitas ou realidade em geral, foi
eliminado. A consequência lógica desta eliminação do esse como actus essendi
intensivo havia de ser a negação da distinção real de essência e esse, ou ao menos sua redução a uma
distinção modal (possibilidade/realidade). Suárez, e com razão [segundo o seu
mesmo fundamento doutrinal], avançou muito fortemente nesta direção, e sua obra
não deixou de influir em alguns tomistas. Os [tomistas] que, contrariamente,
entendem que com esta terminologia mantêm a distinção real não fazem nada mais
que tomar a existência pelo esse, dando assim nascimento a uma
ambiguidade de termos e de problemas que se prolonga até nossos dias.
[...]
Se, depois de meio século de renovação da neoescolástica e do
neotomismo, damos uma olhada na literatura mais recente, encontramos doutrinas
completamente parecidas que nos preocupam.
[...]
Parece-me instrutivo, para esclarecer o ponto crucial de toda a controvérsia
– que certamente não é fácil de alcançar –, trazer à colação uma [...] citação
de Jacques Maritain, introduzida com este propósito pelo autor, na qual é
exaltada a necessidade da experiência sensível em metafísica:
“Não só
porque as ideias vêm dos sentidos, mas porque os sentidos [...] são
indispensáveis para a ciência, e para a ciência mais elevada, a mais livre e
imaterial [a Metafísica], para voltar à existência
atual, que ela não pode ignorar nem desatender; é uma existência
corruptível: só a alcança indiretamente, saindo de seu âmbito próprio, e pelo
ministério dos sentidos”.[4]
Aqui, evidentemente, a existência é
só o fato [imediato, experimental] de ser, que se pode assinalar com o dedo,
não o esse de Santo Tomás, que é id quod profundius inest [“aquilo que
mais profundamente se encontra”]» – ou seja, aqui existência é só o ser em ato ou “fato de ser”, de que há de partir a Física, mas não
o tomista esse ou actus essendi, que é o de que se ocupa,
ao contrário do que diz Maritain, a Metafísica (além da Teologia Sagrada).
Em tempo. A
distinção real entre essência e esse
(= ser ou ato de ser) relaciona-se estreitamente com a doutrina da criação (ex nihilo). A primeira é da lavra de
Santo Tomás, enquanto a segunda é patrimônio cristão, mas foi grandemente
aperfeiçoada por S. Tomás a partir daquela mesma distinção. Platão e
Aristóteles, porém, não conheceram nenhuma das duas.
[1] Cf. a valiosa antologia de E. Hocedez, Quaestio de unico esse in Christo a
doctoribus saeculo XIII disputata, Textus et documenta: Series theologica
14, Roma, 1933.
[2] A verdadeira terminologia de Santo Tomás
aparece em alguns testemunhos isolados nos séculos posteriores: cf. o tomista
independente J. Versor (Letourneur), In
Metaphysicam, XII, q. 12, concl. III, Colonia, Quentell, 1493, fol. 106 vb:
“In substantiis intellectualibus est compositio ex natura [= essentia] et esse
ita quod non sunt suum esse”.
[3] A fórmula encontra-se já, no final do
século XIII, por exemplo, no tomista R. de Primadizzi († 1303), Apologeticum veritatis contra corruptorium,
J. P. Muller (ed.), Cidade do Vaticano, 1953, p. 155: “Quamvis nulla essentia
creata habeat rationem subsistentes...., nec per se ipsam possit coniungi actui existendi, et sint duo quaedam in
supposito essentia et existentia”
[negritos nossos].
[4] [Negrito nosso.] Cf. F. X. Maquart, Elementa philosophiae, p. 12, n. 1;
citando a Jacques Maritain, Sept leçons
sur l’être et les premiers principes de la raison speculative, Paris,
Téqui, s.d., pp. 29 ss.