RESPOSTAS DO PROFESSOR
NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO
NOTA PRÉVIA. Considerando que os
argumentos apresentados pelo aluno são objeções ao que se diz no corpus dos artigos de Santo Tomás dos quais
nos ocupamos no curso, e que, naturalmente, o defendo, por isso mesmo é que
responderei a eles como responde Tomás às objeções, ou seja, nos ads. Entenda-se: de forma a mais concisa
possível, isto é, sem deixar de responder de fato, mas levando em conta que a
resposta magistral já foi dada no referido corpus.
– Ademais, o escrito pelo aluno estará em outra cor que o escrito por mim, para
facilitar a distinção. – Lembre-se, por fim, que nenhuma disputa pode travar-se
indefinidamente. Postas as objeções, e dadas as respostas, ponto final, ainda
que a parte objetora não venha a assentir a tais respostas.
Em primeiro lugar, não sei se é absolutamente relacionado ao curso,
apesar de estar no primeiro artigo da segunda questão da suma. A minha pergunta
é se de fato é evidente que o que é imaterial não ocupa lugar. E isto se
pode discutir assim:
Parece que pode haver algo de imaterial que ocupe lugar.
RESPOSTA. Nada de imaterial pode
ocupar lugar, o que é doutrina certa, aliás, não só em Tomás, mas ainda em Sócrates,
em Platão, em Aristóteles. E isto é assim porque o lugar, como o tempo, é próprio
dos corpos. O ente corpóreo sempre ocupará
espaço, ainda que fosse o ente esferiforme perfeito e imóvel de Parmênides ou o
corpo infinito e imóvel defendido por hipótese pelo tomista Alamano. Como o
imaterial não é corpo, então tampouco será espacial.
Pois a matéria é o substrato que perdura durante
certo movimento, e assim não há matéria sem movimento. Ora, o que ocupa
lugar tem figura, mas não necessariamente tudo que tem figura tem de ser
móvel, uma vez que se possa imaginar uma figura esférica imaterial que
existisse desde sempre. Logo é possível que um ente ocupe lugar sendo
imaterial.
RESPOSTA. A objeção supõe que para
ser corpo é preciso ser móvel. Acabo de mostrar que não era assim para Parmênides,
nem para a hipótese de Alamano. Mas voltarei a isto.
Nem a isto se pode objetar que Santo Tomás tenha corrigido Platão quanto
a existência de figuras imateriais eternas, pois por mais que não existam por
si mesmas, ainda assim parece não repugnar à razão que Deus tivesse criado
algumas por meio da Idéia da figura na sua mente.
RESPOSTA. Há aqui certas confusões.
Todas as ideias são eternas em Deus, tanto as necessárias como as contingentes
ou as meramente possíveis. Como Deus é
a própria eternidade, nada nele pode deixar de ser eterno. – Ademais, nada do
que não é corpo pode ter figura, ou melhor, configuração
externa. Pela mesma razão por que os entes imateriais não são espaciais,
assim tampouco têm configuração externa. (Figura
diz-se antes para a configuração dos produtos artificiais: uma cadeira, uma
estátua, uma peça musical, etc.)
Nem parece ser possível objetar também que Deus poderia
criar vários entes figurados diferentes em vários lugares
diferentes e, devido a isto, estes possuiriam acidentes. Pois mesmo que
possuíssem acidentes, não segue que, uma vez que existam, possam perder seus
acidentes e adquirir outros, pois se Deus cria algo desde sempre, ainda que
pudesse ter criado de outro modo, o que existe desde sempre não pode algum dia se
mover, logo nem estes entes figurados. Muito embora ainda se pudesse dizer que
por serem compostos de essência e acidentes, seriam compostos também de
matéria e forma essencial, porém “matéria” neste sentido não se pode
entender no mesmo sentido em que se fala dos corpos, nos quais a matéria é
móvel.
RESPOSTA. Outra vez, algumas
confusões. Antes de tudo, acidentes têm-nos todas as criaturas: tanto as
corpóreas como as incorpóreas, como os anjos e a alma humana. Só Deus é ato
puro e, portanto, destituído de acidentes. Todos os entes criados são compostos,
ademais, de essência e de ato de ser (participado por Deus). Só a essência de
Deus é Ser, enquanto as criaturas têm ser. Ademais, não há algo como
“forma essencial”; há a forma substancial, que todos os entes têm, sejam os
imateriais, sejam os materiais: com a diferença de que os anjos são formas
puras ou substâncias separadas. Por fim, se deixarmos de lado a tese de
Parmênides e a hipótese de Alamano, todos os entes corpóreos têm, sim,
movimento; e lembre-se que há quatro espécies de movimento: segundo o lugar, segundo a alteração,
segundo a quantidade (aumento e diminuição), e segundo a geração e a corrupção. (Não repugna à razão que os astros não sofressem corrupção, como afirmavam Aristóteles, S. Tomás e todos os clássicos e medievais. Mas esta tese caducou já há muito tempo.)
Em suma, o que se move quanto à moção local ou aumento e diminuição deve
ser figurado, mas nem tudo quanto é figurado deve ser móvel. Por onde nem
material, ao menos no sentido em que se disse.
RESPOSTA. Como já disse, há a
hipótese (do tomista Alamano) de um corpo imóvel, o que se pode perfeitamente
disputar. – Mas parece que a objeção insiste em que algo imaterial pode ser
“figurado”. Não o pode, se se entende por isso a configuração externa. Ademais,
que Deus “figure” a ideia de um ente imaterial não quer dizer, de modo algum, que este tenha figura.
Em segundo lugar, apesar de a existência de Deus não ser por si mesmo
conhecida, parece que se pode prova-lá sem que seja a partir dos efeitos de Deus
no mundo:
RESPOSTA. A existência de Deus é
maximamente cognoscível de si, como dito na Suma e em uma aula nossa, ainda que
não seja evidente quoad nos, para
nós, assim como o sol é maximamente visível e, no entanto, nem os morcegos nem
as corujas o podem ver. Por isso, se não é evidente para nós, tal se deve a
defeito ou limitação do intelecto humano. Para os anjos, a existência de Deus é
evidente. – Mas a essência de Deus, ainda que maximamente cognoscível de si,
não pode ser conhecida por nenhuma criatura: nem pelos anjos. Tal só é possível
por um milagre: a chamada deiformação
dos anjos e da alma humana. Mas este é assunto antes da Teologia Sagrada.
1. Pois, como diz Santo Tomás, ao não conhecermos
a quididade de Deus, temos que tomar como termo médio da demonstração o
significado do termo. Mas pelo nome de Deus se intelige o Ente necessário por
si mesmo, cujo ser se identifica com a essência, segundo aquilo da escritura: “Deus respondeu a Moisés: “EU SOU AQUELE QUE SOU.”(Ex
3,14). Ora, não se pode negar a existência do ente necessário, pois se se afirma que o ente necessário não existe, afirma-se a necessidade de que o
ente necessário não exista, e desta necessidade advém um ente necessário por si
mesmo, pois não é possível que da verdade necessária por si mesma não siga o
ente necessário por si mesmo, uma vez que a verdade deve seguir o ser das
coisas. Mas nem é o caso que esta demonstração necessite da experiência; logo,
se pode provar a existência de Deus sem partir do efeito.
RESPOSTA. Antes de tudo, insista-se
em que quididade e essência são o mesmo, ainda que tomado por ângulos
distintos. – Ademais, o dizer se se afirma que o ente necessário não existe, afirma-se a necessidade
de que o ente necessário não exista, e desta necessidade advém um ente
necessário por si mesmo jamais responderia a um ateu: justo porque este considera que o ente
necessário é o próprio mundo. Atrás de um ateu há sempre um panteísta. E
não só não responderia a um ateu, mas não prova a existência de Deus, porque,
se esta não se prova pelos efeitos e, como diz a objeção, pela “experiência”,
haverá duas possibilidades: ou o mesmo ateísmo-panteísmo, ou não o alcançamento
da existência de Deus pelas luzes da razão, mas apenas a crença nele por fé. Tratamo-lo
em alguma aula.
2.Demais — Pois o não-ser absoluto é impossível. Ora, se a
totalidade das coisas fosse contingente seria possível o não-ser absoluto de
todas as coisas, uma vez que o contingente pode não ser, por onde têm se que
admitir que haja ao menos um ente necessário. Mas nem esta demonstração depende
da experiência, uma vez que ainda que nenhum dado de experiência se tivesse
manifestado pelos sentidos, se teria que conceder ser o não-ser absurdo, por
onde se teria que conceder que alguma coisa existisse, e igualmente, pelo que
foi dito, se teria uma razão a priori para afirmar que há o ente
necessário. Logo, se pode provar a existência de Deus sem partir do
efeito.
RESPOSTA. Esta objeção constitui
falácia ou sofisma: porque, com efeito, só os anjos conheceriam a existência de Deus sem nenhum
dado da experiência manifestado pelos sentidos. O intelecto humano conhece
antes de tudo os entes sensíveis, ainda que abstraindo das imagens sensíveis a essência de tais entes. Como pois é tal a hipótese apresentada pela objeção, ela
não se segue.
3. Demais — Pois é possível que o ente necessário exista. Mas,
como diria Leibnitz, se algo é possível existe em algum mundo possível; se
porém o ente necessário existe em algum mundo possível, deve existir em
todos os mundos possíveis, uma vez que é “definido” exatamente como
aquele que, se existe, existe em todos os mundos possíveis, de modo que seria
impossível que não existisse. Ora, se o ente necessário existe em todos os
mundos possíveis então existe neste mundo, por onde Deus existe neste mundo.
Mas “possível” e “necessário” são noções que independem da
experiência; logo, se pode provar a existência de Deus sem partir do
efeito.(Sobre este argumento ver, por exemplo: http://www.reasonablefaith.org/misunderstanding-the-ontological-argument)
RESPOSTA. Justamente, Leibniz está
nos antípodas de S. Tomás. Para este, não há senão um mundo, um só: o criado
por Deus, e isto seria verdadeiro ainda que se concedesse a existência de
coisas que não pudéssemos conhecer: isto não constituiria outro mundo, mas
parte do único mundo, ainda que não cognoscível para nós. Ou seja, mundo = o
criado, o conjunto do criado. – Ademais, Tomás é realista, ao contrário de
Leibniz: porque o homem é animal, seu conhecimento tem de começar pelo
sensível, pela “experiência”. Ao contrário dos anjos, não tem espécies infusas
por Deus: tem de alcançar seu conhecimento por abstração do mundo sensível. Mas
Leibniz, na companhia de Descartes, Berkeley, Malebranche, Lavelle e outros,
angeliza o homem. É uma forma de gnosticismo.
4.Demais —Pois tudo que existe tem uma razão suficiente para a sua
existência. Mas se a razão suficiente para a existência de algum ente é algum
outro, e a razão para a existência deste outro é ainda um terceiro, não se pode
assim remontar ao infinito, de modo que em algum momento se deve chegar a um
primeiro ente, que seja a razão suficiente de sua própria existência. Ora, se
existe um ente que seja a razão suficiente de sua própria existência, então
este ente é necessário, uma vez que um ente que tenha a própria razão
suficiente para ser, é um ente que é por essência, de modo que se possa dizer
que a razão de por que existe é que seja tal que necessariamente exista, do
mesmo modo que a razão de por que o homem é racional se deva ao fato de que é
homem. Mas a idéia de razão suficiente independe da experiência, assim como
idéia de que alguma coisa existe, como se mostrou na objeção 2; e também
independe da experiência a idéia de que um regresso infinito é impossível, por
onde esta demonstração também independe da experiência. Logo, se pode
provar a existência de Deus sem partir do efeito.
RESPOSTA. Alguns tomistas de fato
incorporaram a noção de “razão suficiente”. Equivocadamente, a meu ver. É noção
outra vez leibniziana. Mas nenhum ente criado tem por si “razão suficiente”:
sua razão e seu ser provêm de Deus. – Se porém nos remontamos a um ente que seja
razão suficiente de si, Deus, não fazemos senão seguir a terceira via de S.
Tomás. Mas não podemos conceber tal ente sem que vejamos, no mundo sensível, a contingência ou possibilidade de ser ou não ser, justo porque, insista-se, todo o
nosso conhecimento tem de principiar pelos sentidos porque o objeto próprio de
nosso intelecto são as espécies inteligíveis,
ou seja, as formas abstraídas das imagens sensíveis. Por isso é que só
podemos conhecer os entes espirituais por seus efeitos, em raciocínio quia ou a posteriori. Não obstante, a objeção continua a pressupor a angelização
leibniziana do homem. O homem todavia não é anjo. Por conseguinte, esta objeção
tampouco se segue.
Quanto à terceira objeção também é proveitoso notar que ela torna as
provas da existência de Deus ainda mais fortes; no sentido de que as premissas
dos argumentos não precisam ser assumidas, mas apenas a sua possibilidade.
Assim se poderia dizer que se é possível que tudo tenha uma
razão suficiente, então é possível que Deus exista, e a partir
daí, como mostra a terceira objeção, se conclui pela existência de Deus neste
mundo. Semelhantemente, se existe um mundo possível onde:
1.Alguma coisa se move.
2.Tudo o que algum dia se moveu foi movido por outro.
3. Não há(neste mundo) um regresso infinito de motores.
Então, Há um Motor Imóvel neste mundo. Mas o que é absolutamente imóvel
é também necessário, por onde há um ente necessário neste mundo. Mas se existe
em um mundo possível têm de existir neste mundo, como se disse. Logo Deus
existe.
RESPOSTA. Há diversas impropriedades
na objeção. Primeiríssima: não há motor imóvel neste mundo, mas ACIMA do
mundo. Sem este passo importante da analogia para o conhecimento de Deus,
cai-se no antropomorfismo. Deus não só é o primeiro de todas as séries, senão
que está acima de todas. (Isto se verá melhor em nossa última resposta.) Só por
isso já não se seguiria a objeção. Ademais, no entanto, a objeção não se dá
conta de que, ao pôr como premissa o movimento e os móveis, é caudatária ela
mesma da “experiência”.
Assim, para o ateu, não basta negar as premissas dos argumentos (em si
mesmas evidentes e necessárias), mas também a sua mera possibilidade. E, no
entanto, também se deve dizer que, apesar de a primeira via de algum modo
depender da experiência, ao menos no tocante a ter de assumir que alguma coisa
se move realmente neste mundo, dependendo assim também dos efeitos de Deus, o
argumento que propus não depende disto, por onde é também uma prova a priori.
Daí fica claro que para qualquer prova a posteriori que se fizer, haverá também
uma respectiva prova “ontológica” ou “ideológica” a priori.
RESPOSTA. Para um ateu, como aliás
para qualquer, se se prova a necessidade de algo, prova-se sua possibilidade;
mas o inverso absolutamente não é verdadeiro. Assim, é possível que eu morra
enquanto escrevo estas linhas; mas isto não é necessário. – Quanto a que as
objeções constituam prova a priori,
não faz senão ressaltar seu caráter, digamos, “hiper-realista”, porque, com
efeito, e com isso voltamos de cheio a S. Tomás, se fosse possível conhecer a priori a existência de Deus não haveria ateus. Conhecimento a priori, se não incorremos na confusão
kantiana, quer dizer conhecimento pela
causa. Ora, se muitos vemos um homem matar a outro, nenhum de nós duvidará quanto
à causa da morte deste; poder-se-ão discutir os motivos de quem o matou, mas
não que o matou. Se porém há ateus, é justamente porque a causa do mundo, Deus,
não é evidente; se o fosse, não haveria ateus. É pois preciso demonstrar sua
existência por seus efeitos.
Em terceiro lugar, eu questionaria a idéia de que não se pode provar a
finitude e o início do mundo, e para isto estou preparando seis possíveis
provas em outro artigo, mas que ainda não estão prontas. Quando ficarem
prontas enviarei-as ao senhor, para que possa objetar, mas acredito que
desde já se torna claro que, se aceita-se a terceira objeção, havendo um mundo
possível em que o universo seja finito, já daí se pode tirar todas as
conclusões relevantes para a apologética, ainda que se dissesse que este
mundo fosse eterno. Afinal o próprio Santo Tomás afirma, no capítulo 13 da
Summa Contra Gentiles:
“Et ad hoc dicendum quod via efficacissima ad probandum Deum esse est ex
suppositione aeternitatis mundi, qua posita, minus videtur esse manifestum quod
Deus sit. Nam si mundus et motus de novo incoepit, planum est quod oportet poni
aliquam causam quae de novo producat mundum et motum: quia omne quod de novo
fit, ab aliquo innovatore oportet sumere originem; cum nihil educat se de
potentia in actum vel de non esse in esse."
RESPOSTA. Quanto a esta última
objeção, e para poupar-me algum trabalho, permito-me transcrever aqui, na totalidade, um escrito meu.
«Se se contradiz
Santo Tomás ao afirmar que uma
Criação
ab aeterno não repugna à razão
Não raramente se vê voltar contra Santo Tomás a seguinte objeção:
• Em suas provas da existência de Deus, o Aquinate diz que é impossível
remontar ao infinito na série de causas, sob pena de tornar impossível esta
mesma série – razão por que é preciso reconhecer a existência de um primeiro
motor (1ª. via) que seja a causa das causas eficientes dos entes (2ª. via) e
seja, pois, não só o ente absolutamente necessário (3ª. via), mas também a
causa do ser dos demais (4ª. via) e a causa que os conduz a seu fim (5ª. via).
• Ora, se assim é, como pode Santo Tomás (em diferentes lugares, e
especialmente no opúsculo Sobre a Eternidade do Mundo contra Murmurantes)
afirmar que não repugna à razão que o mundo existisse coeternamente a Deus, ou
seja, desde todo o sempre, desde toda a eternidade? Se tal fosse possível, Deus
não seria o primeiro da série de causas motoras, nem a primeira causa eficiente
dos entes, nem a fonte de todas as perfeições destes, etc.
• Por conseguinte, contradiz-se gravemente Santo Tomás, e, quanto à
criação do mundo, ou estarão certos os que, negando as Escrituras, negam a
possibilidade da criação no tempo, ou o estarão os que pretendem demonstrar
racionalmente que a criação não podia ter-se dado senão no tempo.
Mas tal objeção é equivocada, e tem origem dupla:
• de modo geral, o ater-se a um passo da doutrina do Aquinate sem
relacioná-lo “organicamente” com os demais;
• e, de modo particular, o desconhecer que, se o ponto de partida da
especulação metafísica deve ser sempre de ordem sensível, seu termo haverá de
ser sempre, todavia, de ordem estritamente analógica.[1] Explique-se.
1) Por que na Suma Teológica, imediatamente após as “cinco vias”,
Santo Tomás parece retroceder ao perguntar se Deus é corpóreo? Justamente
porque nas “cinco vias” ele não se pergunta antes de tudo se as noções e os
conceitos nelas utilizados são unívocos ou análogos, ao passo que na terceira
questão já os toma inteiramente em seu termo, ou seja, como se disse
acima, já se encontra em plena analogia. As cinco vias estabelecem antes de tudo
que Deus é, que Deus existe, e não especialmente como Ele é (conhecimento este
que, para nós, para o intelecto humano nesta vida, tem de partir do
que Ele não é). Elas respondem antes de tudo, pois, ao an sit a
respeito de Deus, mas requerem necessariamente desdobrar-se numa segunda etapa.
Em verdade, como diz o Padre Penido, “entre as duas [etapas] não há separação,
visto que uma fundamenta a outra, e como que a principia”.[2]
2) Se nos limitamos, como o antropomorfismo, a entender do seguinte modo
as “cinco vias”: se há movimento universal, é porque há um Motor primeiro; se
coisas são causas eficientes de outras, é porque há uma Causa de todas; se há
entes contingentes, é porque há o Necessário; se os entes têm suas
respectivas perfeições, é porque há uma Maximidade de que elas são efeito;
se existe finalidade nas e para as coisas destituídas de inteligência, é porque
há um Intelecto que as conduz a seu fim; etc.; se pois nos limitamos a
entendê-las assim, afirmamos consequentemente que aquele Ente encontrado ao
termo de todas as séries – das quais é motor, eficiente, necessário, dador e
condutor – é de algum modo homogêneo a todas elas. Com tal limitação, de fulcro
antropomorfizante, não se escapa à crítica de Kant e similares.
3) Ora – insista-se –, para dar a razão dos motores causados, da
eficiência causada, da necessidade causada, das perfeições causadas e do fim
causado, é preciso encontrar a Causa de tudo isso; se porém esta Causa está ela
própria sujeita à mesma deficiência (ser causado), então teremos de
recomeçar e procederemos, assim, exatamente, ao infinito. Para não se estar
preso no círculo de tal deficiência, é preciso um Ente que não
só seja causa dessas coisas deficientes, senão que saia delas,
escape a elas. O termo, portanto, daquelas séries, o termo que as termina
enquanto primeiríssimo, não pode ser-lhes homogêneo, o que implica dizer que está fora ou acima
delas.[3]
4) Naturalmente, tal conclusão já se encontra de modo inicial nas “cinco
vias”, porque nelas o Aquinate não se limita a dizer: se há movimento, há o
Motor; se há eficiências, há o Eficiente; se há contingentes,
há o Necessário; se há perfeições, há o Perfeito; se há
fim, há o Condutor a ele. Se o fizesse, insista-se, não sairia do
círculo do antropomorfismo. Mas ele vai além, e as “cinco vias” já afirmam,
entre outras coisas, algo positivo-negativo: motor, sim, mas imóvel;
causa, sim, mas incausada; ente necessário, sim, mas cuja necessi-dade não provenha
de outro.
5) Dirá o pensamento de tendência antropomórfica: não só todos os
motores, causas, fins, etc., dados pela experiência sensível são necessários
para alçarmo-nos ao Motor, Causa, Fim, etc., mas também este mesmo Motor,
Causa, Fim, etc., tem de ter alguma homogeneidade com aqueles sob pena de
mergulharmos no incognoscível ou no nada. Por isso mesmo, aliás, prossegue tal
pensamento, é que é preciso aplicar a Deus o conceito de motor, o de causa, o
de fim, etc., tomados todos da ordem do sensível. Sucede, todavia, repliquemos
nós, que tais conceitos, aplicados a Deus, já não podem tomar-se de maneira
unívoca, mas analógica.
6) Ora, como se disse, tal já se dá nas mesmas “cinco vias”. Já nelas se
repudia a univocidade e se evita, assim, todo e qualquer vestígio de antropomorfismo.
Seria possível demonstrá-lo a partir de qualquer das cinco, mas limitemo-nos a
transcrever in extenso a argumentação do Padre Penido respeitante à
quarta via.
“Seja a noção de ‘ciência’. Tenho dela, ao iniciar minhas pesquisas
metafísicas, um conceito perfeitamente unívoco (Caetano, de Nom. An. c.
XI, p. 278), que aplico a todos os homens, indiferentemente. Observando,
todavia, que na ciência há graus infinitos, alargo em analogia de desigualdade
esta univocidade algo amesquinhada. É ainda univocidade, não o esqueçamos,
embora mais maleável. Chego assim a estabelecer uma escala de intensidades
variadas; mas o conceito permanece fundamentalmente o mesmo; as variações são
apenas acidentais. Posso enfim imaginar uma ciência a crescer constantemente; no
extremo limite creio descobrir a superciência, a ciência divina. Se assim fora,
nada se explicaria, e fora inútil entregar-se a um tal trabalho de dilatação,
pois esta nova perfeição não é a ciência subsistente, senão a simples
amplificação da minha, e, como esta é participada, sê-lo-á também aquela. Não
foi para encontrar, no fim de meu raciocínio, a mesma indigência inicial que me
aventurei pela quarta via. Cumpre, portanto, abandonar a ‘via augmenti’ e
enveredar pela ‘via essendi’; importa encontrar ao termo desta um ‘maxime
tale’, que não seja unívoco, uma ciência primeira, isto é, por essência
imparticipada, razão de ser das outras: somente o que é por essência pode
explicar o que é por participação. Se retomo agora meu conceito inicial,
percebo que ele se alterou, pois desde este instante deve moldar-se a duas
realidades essencialmente diversas: em um caso, temos uma ciência não
participada; no outro, seja qual for sua perfeição, uma ciência participada.
[Isso quer] dizer que Tomás de Aquino não é sua ciência, que a inteligência
humana de Cristo não é sua ciência, ao passo que Deus é, por identidade,
sua ciência. Entre ser a própria ciência e não [sê-lo], a diferença não é de
grau como entre superlativo e comparativo, mas é uma diferença que atinge o mesmo
ser. Deus não é ‘sapientissimus’; ele é ‘super-sapiens’: ‘Há uma primazia que
se mantém dentro do mesmo gênero e que se exprime pelo comparativo ou pelo
superlativo; outra há que ultrapassa o próprio gênero e que se exprime mercê da
partícula super’ (Div. Nom., c. 4 1. 5, Vivès, p. 411; cf. De Pot., q.
7 a. 7 ad 2-3; Ia. P. q. 4 a. 3 ad 1). Começara por
afirmar que a ciência de Deus era a minha elevada ao superlativo, mas
imediatamente, vistas as diferenças, fui forçado a corrigir o que acabava de
adiantar: é a minha, mas não participada; o que equivale à negativa: não é a
minha (simpliciter diversa). E, entretanto, Deus é Ciência! Também,
apenas eliminei o que minha ciência implicava de imperfeito, tive de afirmar a
‘superciência’; por outras palavras: ao cabo da pesquisa, devo renunciar a meu
conceito unívoco por um outro, muito mais flexível, [que não representa] minha
ciência, mas uma ciência analógica, que é, diversamente, a minha e a de Deus[nota]”.
7) “É pois”, prossegue o Padre Penido, “a uma série complexa de
operações que se deve entregar penosamente a inteligência humana, para pensar –
grosseiramente ainda, mas com certa verdade – cada perfeição divina. É mister
primeiro afirmá-la, depois negá-la, depois ainda sobre-elevá-la, e por fim
unir-lhe a noção participada (cf. Ia. P. q. 12 a. 12)”. Trata-se, em suma,
esquemática mas precisamente, do seguinte:
• há uma causa (afirmação):
– incausada (negação);
– supercausa (sublimação); e
– causante (relação).
Trata-se, em outras palavras, de quatro estágios da analogia.
Pois bem, pode-se agora mostrar com toda a certeza:
a) que as “cinco vias” de Santo Tomás absolutamente não contradizem sua
afirmação de que não repugna à razão que a Criação se tivesse dado ab
aeterno;
b) e que, suposto tudo quanto se disse mais acima, não estão no certo os
que, negando as Escrituras, negam a possibilidade da criação no tempo, nem os
que pretendem demonstrar racionalmente que a criação não pode ter-se dado senão
no tempo.
Com efeito, as mesmas razões militam para negar tanto que é necessário
racionalmente o mundo ter existido desde sempre como que é necessário
racionalmente ele não ter existido desde sempre. Enquanto tal (ou
seja, não enquanto esta ou aquela), a causa eficiente só exige prioridade
ou anterioridade de natureza, não prioridade ou anterioridade de
duração (“Nec oportet omnem causam effectum duratione praecedere, sed natura
tantum, sicut patet in sole et splendor”, diz o Aquinate em De Pot. q.
3, a. 13 ad 5), razão por que pode agir desde que existe. Enquanto tal, o ente
contingente tampouco requer que sua existência seja posterior à da causa. Por
conseguinte, não há impossibilidade alguma em que o mundo pudesse ter existido
por criação (ex nihilo) desde sempre, ab aeterno. Se não
se podem admitir as consequências que resultariam da criação ab aeterno
de alguns entes (os corruptíveis), isso, porém, prova apenas que estes entes
não poderiam ter sido criados desde sempre, mas não que outros entes (os anjos,
ponha-se) e, em especial, o mundo em conjunto não o pudessem.
Ora, com respeito a séries como a do ovo e da galinha, pode-se até
afirmar que nenhum dos dois exige ser o primeiro, pois antes de um sempre
se pode supor o outro, motivo por que não aparece onde começou a série.[4] O
que não se pode esquecer é que o essencial, aqui, é investigar não a origem
temporal, mas a origem entitativa do mundo como um todo, de cada série dele e
de cada ente – o que só é possível se se seguem os quatro passos
analógicos expostos mais acima.
Por esta razão, aliás, porque o essencial, aqui, é investigar não a
origem temporal mas a origem entitativa do mundo como um todo e de cada série
dele e de cada ente, é que “considerar a origem das coisas não compete à
filosofia da natureza, mas à filosofia primeira, que considera o ente em geral
e o que transcende o movimento” (Santo Tomás, II Contra Gentes, c. 37).
O mundo, então, poderia ter sido criado coeternamente a Deus assim como
uma pegada é coetânea de um pé permanentemente pousado na terra – sem deixar a
pegada de ser efeito do mesmo pé e este causa não só primeira mas permanente de
tal efeito.
E termine-se esta refutação com as seguintes palavras, ainda, do Padre
Penido: “Uma dependência ontológica nada tem que ver com o tempo, pois consiste
apenas numa relação; que esta relação tenha começado a existir em um momento
dado, ou não, pouco importa, contanto que haja uma Fonte e um [ente] que da
Fonte receba” (cf. De Pot. q. 3, a. 14 c. e ad 8).[5]
Observação final 1: Embora não repugne à razão uma Criação ab aeterno, é de fé, como sempre o lembra Santo Tomás, que o mundo foi criado no tempo.
Observação final 2: Afirmou-se mais acima: “é preciso um Ente que não
só seja causa dessas coisas deficientes, senão que saia delas,
escape a elas”. Sucede porém que, quando se encontra, assim, analogicamente,
tal Ente que está acima ou fora da série das coisas deficientes, ele já
não poderá dizer-se tão somente Ente, porque, com efeito, tal Ente acima
da série das coisas deficientes é seu mesmo ser e, pois, é o
Ser. É o próprio Ser subsistente por
si mesmo.»
[1] “As argumentações metafísicas”, diz Caetano,
“empregam a princípio noções estritamente unas; ao termo, porém, utilizam
noções unas apenas proporcionalmente ou por analogia” (In Iam. q. 13, a.
5; cf. também Ferrar. In I C.G, c. 34, n. IX; apud Padre Penido, A
Função da Analogia em Teologia Dogmática, Petrópolis, Vozes, 1946, p. 92).
[5] Em outro artigo, estudaremos o caráter desta relação. Mais precisamente:
se há em Deus relação às criaturas.