PERGUNTA DO ALUNO
O senhor
recomendou que não lêssemos o De Principiis Naturae agora. Pois bem, eu não
resisti. Por isso a pergunta:
S. Tomás
- caput 3, no final - citando o livro da Metafísica de Aristóteles diz que
"elementum est id ex quo componitur res primo, est in ea, et non dividitur
secundum formam.
Ao
explicar esta última característica ele diz:
"Tertia
particula, scilicet et non dividitur secundum formam, ponitur ad differentiam
eorum quae habent partes diversas in forma, idest in specie, sicut manus,
cuius partes sunt caro et ossa, quae differunt secundum speciem. Sed
elementum non dividitur secundum speciem, sicut aqua, cuius quaelibet pars est
aqua."
A
definição de elemento eu entendi. Só não entendi o que está destacado. Parece
que a carne e os ossos diferem segundo a espécie e portanto têm cada um a sua
forma. Assim, os entes naturais teriam além de sua forma substancial uma
pluralidade de formas acidentais - a forma da mão, do pé, do olho etc.?
RESPOSTA DO PROFESSOR
Por partes, e dando primeiramente a tradução do trecho:
“A terceira parte [da definição aristotélica de elemento], a saber, ‘e
não se divide segundo a forma’, põe-se para diferenciá-lo [ao elemento] do que
tem partes diversas na forma, isto é, na espécie, como a mão, cujas partes são
carne e ossos, que diferem segundo a espécie. Mas o elemento não se divide [em
partes diversas] segundo a espécie, como a água, qualquer de cujas partes é
água.”
1) Antes de tudo, diga-se que a teoria dos elementos (água, terra, fogo
e ar), muito importante na Química aristotélica (cf. Da Geração e da Corrupção, especialmente I, 10 [327 b 29-31]),
caducou grandemente (vide o que digo,
em alguma aula do Curso, das teses hoje caducas das partes subjetivas da Física
aristotélica, como a Cosmologia e a Química). [Ademais e a título de
curiosidade, não só em Aristóteles, mas também em Santo Tomás, a tese dos
elementos tinha grande relação com a Medicina, que então via a saúde como uma
mistura harmônica dos humores, ou seja, das qualidades dos elementos. Para
entendê-lo, cf. o pequeno opúsculo tomista De
mixtione elementorum (Sobre a Mistura dos Elementos), dedicado ao Mestre
Felipe de Castro Celi, que foi professor de Medicina primeiro em Bolonha e
depois em Nápoles.]
2) A sua pergunta, caro aluno, indica que encontrou na citada passagem
tomista alguma semelhança com a tese scotista da multiplicidade das formas em
cada ente, absolutamente contrária à essencial tese aristotélico-tomista da
unidade da forma substancial: em outras palavras, cada ente (mais precisamente,
cada substância) tem uma única forma substancial, que nas substâncias
sensíveis, e como causa segunda, é o que dá o ser à matéria e o que dá ao ente
o ser segundo sua essência ou natureza. (Digo-a causa segunda porque a própria
forma, como toda a essência, está em potência para o esse ou ato de ser.)
3) Uma primeira indicação interpretativa: se se sabe, por exemplo e como
é o caso aqui, que a doutrina de Scot e a de Santo Tomás se opõem
diametralmente a respeito de algo, é de pensar antes de tudo que nunca nenhum
dos dois incorreria na tese adversária, até porque, se tal tivesse sucedido
alguma vez, algum comentarista de ambas as escolas o teria assinalado. – Donde,
se temos alguma suspeita assim, é de concluir que se trata de engano
interpretativo nosso.
4) Mas o problema central é que você identifica, sin más, forma e espécie. Ora, cada espécie, no caso dos entes
sensíveis, tem uma essência em cuja definição entra sempre a matéria e a forma.
Por aí já se vê que não se identificam sin
más.
5) Depois, nem sempre a matéria entra na essência da espécie. Assim, por
exemplo, não entra a matéria nas substâncias separadas, nas espécies
inteligíveis de nosso intelecto, etc.
6) Por outro lado, dizer matéria prima (em si), obviamente, é excluir a
forma.
7) Agora um exemplo que ilumina ainda mais a questão. A primeira das
quatro espécies do acidente qualidade se divide, por sua vez, em duas
subespécies:* disposição e habitus, cujas respectivas diferenças
específicas são facilmente removível
e dificilmente removível. Ou seja,
trata-se, sim, de espécies, mas são subespécies de espécies de um acidente; e,
como dito no curso, nenhum acidente tem quididade senão em abstrato e secundum quid, e nenhum pode ser senão forma
acidental. Por aqui se torna ainda
mais patente o dito acima.
8) Mas, enfim, a distinção entre o tomismo e o scotismo neste assunto é
mais precisamente a seguinte: para Santo Tomás, cada ente tem uma única forma substancial e tem, ademais, diversas
formas acidentais e/ou diversas partes, enquanto para Scot o ente tem diversas
formas substanciais. Ora, com Aristóteles, Santo Tomás quer mostrar no referido
trecho, antes de tudo, que os elementos não se dividem em partes de espécies
diferentes,** porque, com efeito,
cada parte da água é água, cada parte do ar é ar, cada parte da terra é terra,
cada parte do fogo é fogo.
9) Já não assim com o que não é elemento. A mão, por exemplo, que já é
parte, divide-se em partes diversas segundo a espécie: a carne e os ossos são
de espécie diversa, além de ela mesma, a mão, distinguir-se do pé, do estômago,
do cérebro, etc., todos os quais são partes diversas, segundo a espécie, do
corpo humano organizado. Mas trata-se de partes e de partes de partes de um
todo substancial, e não é da razão de parte de um todo substancial ter forma
substancial – razão por que uma mão amputada do corpo só muito impropriamente se pode dizer mão. (Sobre os diversos modos de todo e de parte, ver nosso próprio curso,
o Pe. Calderón [Umbrales de la Filosofía,
pp. 163-166 e outras], e, sobretudo e exaustivamente, o tomo II do De analogie de Santiago Ramírez O.P, n.
525-539.)
10) Por tudo isso se vê, claramente, que Santo Tomás não incorre, na
referida passagem, em nenhuma posição scotista. – Ademais e por fim, atente-se
a como escreve o Doutor Angélico para melhor precisar seu pensamento: “in
forma, idest in specie”.
Naturalmente, este “isto é (idest)”
tem a função precípua de evitar a identificação sin más entre forma e espécie.