RESPOSTAS DO PROFESSOR
NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO
1) Assisti
à aula de número 23 na qual o senhor fala do Evolucionismo. Após assistir-lhe,
venho formular questões relacionadas à Linguagem – nossa área de atuação
profissional.
Como
sabemos, as ideias evolucionistas também têm sido aplicadas ao estudo da
linguagem. Resultado disso, por exemplo, é a opinião de que com o decorrer do
tempo as línguas evoluem, quer dizer, estão em constante progresso, sai-se do
menos e vai-se ao mais. Neste sentido, não se pode afirmar que uma língua se
corrompe ou que está em crise, pois está sempre melhorando – tese esta que se
afina com o Panteísmo.
Mattoso
Câmara (2011, p. 139) diz do vocábulo “evolução”: “Conjunto de mudanças (v.)
que sofre uma língua em sua história interna (v.). O nome foi adotado nos
meados do séc. XIX, a exemplo das ciências naturais, onde ‘evolução’ significa
o crescimento gradual e paulatino de um organismo até atingir a plenitude.
Muitos linguistas rejeitam ou pelo menos evitam o termo, porque na língua não
há a rigor um crescimento, mas apenas mudanças e, muito menos, a marcha para a
plenitude. A ilusória impressão em contrário resulta de uma confusão entre o
crescimento em certos aspectos da cultura (técnicas, pensamento científico,
atividade literária) com a língua que serve de veículo a essa cultura (v.).
Apesar de tudo, o caráter paulatino e gradual das mudanças, num encadeamento
estrito, é inegável para muitas mudanças na língua e por isso o uso do termo se
justifica, despojada em linguística a sua significação da noção de crescimento
ou progresso.”
O senhor
concorda com a posição do linguista Mattoso Câmara no tocante ao uso da
expressão “evolução da língua” e seu significado?
RESPOSTA. Sem ser destituída de interesse, a posição de Mattoso Câmara
(que aliás é dos poucos linguistas de que nos podemos valer algum tanto para a
parte especulativa da Gramática) peca por imprecisão e confusão. Por quê?
a) Antes de tudo, a língua não é um todo substancial como o é um
vivente; é um todo em parte de ordem (como uma cidade ou um exército), em parte
de composição (como uma casa), mas com um caráter único: como produto
artificial que é, e conquanto sirva ao modo de paradigma social a todo um povo,
individualiza-se na mente de cada membro deste povo.
b) Além do fato de o evolucionismo darwinista e quejandos serem já por
si insustentáveis cientificamente, erra Mattoso ao defini-lo: não é como o diz
que os mesmos evolucionistas o entendem.
c) À parte tudo isso, o fato é que as línguas não só se corrompem, mas
progridem.
• Corrompem-se cada vez que algum de seus paradigmas se esboroa
socialmente, e perecem quando o conjunto ou grande parte deles se desfaz.
• Progridem, ao contrário, cada vez que se consolida ou estabelece algum
paradigma seu. E
isto é assim por que a Linguagem tende a refletir em suas construções a própria
constituição da realidade; e tanto mais se
atualizará esta tendência quanto mais cultivada for a língua, ou seja, quanto
mais se valerem dela e a aprimorarem verdadeiros mestres. Vide, por exemplo, o caso de Platão e de Aristóteles com respeito
ao grego ático: não só lhe deram todo um conjunto de novas palavras para
significar os mais profundos conceitos filosóficos, mas, pela necessidade mesma
de fazer servir a língua à Filosofia, contribuíram até para o aprimoramento de
seus paradigmas casuais. (Cf. para o Estagirita o Aristóteles de Émile Boutroux, Rio de Janeiro, Record, 2000.)
2) José
Carlos de Azeredo (2012, p.61), na Gramática Houaiss, escreve: “Outra ideia
muito difundida no passado, também hoje superada, é que as línguas ‘evoluem
para um estado de perfeição’, ilustrado na maneira como a praticam seus grandes
oradores e poetas, e que, atingido este estágio, elas precisam ser defendidas
‘da corrupção daqueles que a utilizam mal’, e, portanto, de toda mudança que as
afaste daquele ideal de perfeição.”
RESPOSTA. Se é verdade a primeira parte do que diz este autor – ou seja,
as línguas não evoluem para um estado de perfeição, e a afirmação em contrário
é de cariz positivista –, por outro lado propende ele à posição geral da
Linguística, a saber, a de que as línguas não se corrompem, senão que mudar é o
que lhe é próprio per se – o que por
sua vez é do mais puro heraclitismo. Deixada porém à deriva, sem gramática, como
querem muitos linguistas que, porém, o mais das vezes, defendem sua tese sem
nenhuma deriva gramatical, a língua seria como a realidade-rio de Heráclito:
seria puro fluxo, a ponto de não poder falar-se duas vezes como a mesma língua.
Com efeito, para o filósofo grego Heráclito de Éfeso (século
V a.C.) nada na realidade teria estabilidade: tudo seria e fluiria como um rio,
em que não se poderia entrar duas vezes porque, na segunda vez, já não seria o
mesmo rio. Como escrevi em outro lugar, para esse filósofo “nada é senão
enquanto não é”.
3) Eu
entendo que deveríamos evitar o termo “evolução da língua”, pois assim
assumimos que a língua apenas evolui, quando na verdade podemos encontrar
deficiências, como, por exemplo, a ausência em português de um correspondente
ao pronome “one” em inglês quando nos referimos à ideia de pessoa, pronome esse
que, numa aula de língua portuguesa avançada, o senhor disse que existia
antigamente no português e se perdeu... Ora, esta perda seria uma prova de que
a língua não evolui, mas ao contrário se deteriorou (neste aspecto pelo menos);
assim como a queda do gênero neutro em português, ainda existente no alemão,
apesar de resquícios nos pronomes “isso”, “isto”, “aquilo”.
RESPOSTA. Concedo perfeitamente o que diz. Precisaria apenas, todavia,
que tais corrupções podem ser pontuais e compensadas pelo estabelecimento de
novo paradigma (e veja que a função precípua da gramática, em todos os sentidos
desta, é fechar paradigmas). Assim, em inglês o uso do indeterminador man corrompeu-se, mas substituiu-se pelo
uso de one, o que porém não se deu de
forma estável em português. Uma saída deu-a o povo: o uso universal de se em lugar de homem: vende-se casas, aluga-se bicicletas, a par de estuda-se muito aqui, precisa-se de empregados. Ora, a
gramática espanhola aceita-o (pode dizer-se tanto se venden casas como se vende
casas, com claro sentido distinto); mas a gramática portuguesa nunca o
aceitou, apesar de sua defesa por Said Ali. Prossegue portanto tal
instabilidade entre nós.
4) Assim
sendo, preferiria o termo “transformação da língua” ou “mudanças linguísticas”
que por si não implicam ideia nem de progresso, nem de decadência da língua. No
entanto, acredito que por influência do Evolucionismo, encontramos pessoas que
apreciam a constante transformação da língua, aderindo facilmente à ideia de
que se deve deixar a língua solta, sujeita às transformações, porque é
organismo vivo, enfim, conforme o senhor afirma no blog Contra
Impugnantes, o heraclitismo da língua.
RESPOSTA. Perfeito. Só acrescentaria que se pode falar de progresso ou
progressos linguísticos no sentido referido acima: fechamento de paradigmas e
maior capacidade de expressar a realidade.
5) De
qualquer modo, dado que a língua se transforma, ou que ocorrem mudanças
linguísticas, o que dizer do metaplasmo? Ele se refere à língua
(portanto, palavras que sofrem prótese, síncope, aférese... são gramaticais) ou
ao uso da língua (as pessoas falam erroneamente, visto que “alembrá”,
“adevogado”... não pertencem à língua)?
RESPOSTA. A ambas as coisas. De início os metaplasmos se dão na mente de
alguns usuários da língua, o que implica corrupção individual; quando porém
atingem o conjunto ou a maioria dos falantes, implica corrupção global. Em
algumas línguas, há um verdadeiro abismo entre a linguagem culta e a da maioria
da população: é o caso, por razões diferentes, do português brasileiro e do
inglês americano. Era bem menos o caso do espanhol; mas a decadência global da
humanidade está levando a que o mesmo espanhol se corrompa progressivamente e,
portanto, a que se abra também ali, progressivamente, tal abismo.
6) Quanto
à língua, na resposta às dúvidas 52, o senhor escreve: “Vê-se pois que os ‘modelos’
fonéticos não são ideias platônicas, sem existência material, das quais
participassem umas ‘realizações’; mas são, eles mesmos, fonemas materialmente
realizados, enquanto aquelas ‘realizações’ têm, do ângulo fonético mais
concreto, o mesmo estatuto que seus ‘modelos’.”
RESPOSTA. Veja que o que digo aí se refere
tão somente aos fonemas. A única maneira de entender a questão fonética da
língua é fazê-lo segundo uma analogia de atribuição, e é assim que a
estudo na referida passagem.
7) Gostaria
que explicasse melhor a natureza (ontológica) da língua
utilizando terminologia metafísica (ato/potência, essência/existência,
substância/acidente...). A mim parece que ela não existe realmente, assim como
o Pégaso ou o Minotauro também não.
RESPOSTA. Mas é claro que existe realmente e que não é um ente
quimérico. É evidente, e não podemos provar o evidente; mas podemos defendê-lo.
E, com efeito, se se tratasse de um Pégaso, a língua não serviria de signo de
nossas concepções mentais, e você nem sequer poderia dizer com pretensão de
verdade que ela é um Pégaso. Logo, é verdade que a língua é verdadeiramente
real. Ademais, que será isto que falamos e escrevemos? Um ente imaginário? Se o
fosse, nós mesmos seríamos parte da imaginação de alguém, assim como também o
seria a cidade ou sociedade, quando de fato esta decorre realmente de nossa mais que real natureza racional.
8) Mas, a
partir de certos elementos (a princípio, palavras compostas de fonemas – /a/,
/b/, /s/...) combinados segundo normas, formamos a ideia de “língua
portuguesa”, assim como a partir de elementos como corpo de cavalo, asas,
cabeça de touro... combinados entre si, formamos as ideias de “Pégaso” e de
“Minotauro”. Assim me parece que a língua portuguesa, assim como as outras, é
um constructo mental, ou melhor, ideia, que elaboramos, que não é sensível, mas
intelectivo, ou seja não iremos encontrar materializado como este celular ou
esta carteira, mas que podemos apreender; enfim, a língua seria ente concreto.
Mas o senhor diz nas dúvidas 52 que “Todas as línguas são igualmente
Linguagem.” e que “... as diferenças entre as línguas são acidentais, assim
como são acidentais as diferenças raciais entre os homens ou entre os cães.”.
Assim, por serem acidentes da linguagem (verbal), as línguas não seriam
concretas? Tampouco o raciocínio acima valeria?
RESPOSTA. Quanto à primeira parte desta pergunta, já a considero
resolvida na resposta anterior. Quanto à segunda parte, divido-a.
a) Os acidentes não só se seguem à substância, mas são o que mais
terminantemente a concretiza. Eles não subsistem sem a substância; mas são o
que termina de fazer que substância seja hoc
aliquid, este algo, e não aquele outro. E sobretudo quando se trata do
acidente quantidade: porque, com
efeito, as formas são individuadas pela
matéria signada ou delimitada pela quantidade.
b) Logo, o raciocínio acima efetivamente não vale.
9) Se as línguas
são essencialmente (uma só) Linguagem e suas diferenças são acidentais (por
exemplo, modificações no plano de expressão não alteram a “lógica” de que após
o verbo deva vir um objeto, de que os substantivos podem ser próprios ou
comuns, de que consoantes se realizam acompanhadas de vogais etc.), então
poderíamos, como gostaria Chomsky, elaborar uma gramática universal da
qual decorrem as gramáticas particulares (da língua portuguesa, inglesa,
italiana...)?
RESPOSTA. De modo algum, e Chomsky não faz com isso senão criar, agora
sim, um ente de razão quimérico, ou antes, uma ideia platônica. As únicas
regras comuns a todas as línguas são as regras lógicas; e as gramáticas não são
senão reduções analógicas de tais regras.
10) Considerando
a explicação que espero que dê sobre a natureza da língua, acredito que devamos
rejeitar a concepção de que a língua é prática social,
conforme há autores que afirmam, correto?
RESPOSTA. A língua é um todo, como disse, tanto de ordem como de
composição, e, como decorre da natureza social ou política do homem, é, sim, e
antes de tudo, de caráter social, conquanto, como já dito também, se
individualize segundo os membros de dada sociedade. E naturalmente é prática social, o que não implica seja
construída per se pela sociedade:
como diz Sócrates no Crátilo platônico,
depende antes de tudo dos legisladores,
ou seja, dos fazedores de língua – assim como, conquanto a pólis seja de todo coletiva, depende das leis elaboradas por seus
legisladores.
11) O
senhor afirmou nas dúvidas 52 que “Toda e qualquer língua é, propriamente, um
todo composto por determinados sons e palavras que se combinam gramaticalmente
para significar nossas concepções mentais e comunicá-las aos demais, o
que implica uma compreensibilidade geral”. Outra questão é: esse todo composto comporta as variedades e variantes
linguísticas?
RESPOSTA. Como mostrei em alguma resposta do
mesmo documento 52, o conceito de língua é analógico, e diz-se de muitos modos.
Segundo um anterior e um posterior,
mais propriamente se diz língua a língua culta. Leiamos o que diz sobre isto o importante
gramático espanhol Andrés Bello: “prefere-se o uso linguístico da gente educada
porque é o mais uniforme nas várias províncias e povoados que falam uma mesma
língua, e portanto [é] o que faz que mais fácil e geralmente se entenda o que
se diz; ao passo que as palavras e frases próprias da gente ignorante variam
muito de uns povoados e províncias a outros, e não são facilmente entendidas
fora daquele estreito âmbito em que as usa o vulgo”. Desse modo, a língua mais
propriamente dita, o analogado principal desta analogia, não comporta variantes
linguísticas, senão que estas variantes se dizem língua apenas como analogado
secundários. – Por isso é que digo que, muitas vezes, se se tomam variantes
como o português brasileiro e o lusitano, o autêntico analogado principal é a língua escrita.
12) Como creio que o senhor também entende de
Música, creio também que poderá avaliar bem a seguinte comparação (também da
Gramática Houaiss):
“Para melhor caracterizar o conceito que vamos
apresentar nesta seção, faremos uma comparação entre a língua e a música.
Imaginemos uma canção qualquer que já tenha sido interpretada por três
diferentes cantores ou conjuntos musicais. Por maiores que sejam as diferenças
entre as três interpretações, sempre seremos capazes de reconhecer nelas a mesma
canção. Vamos chamar de A ao conjunto de características estruturais que
permitem reconhecer nas três interpretações a mesma canção, e de An (isto
é, A1, A2, A3) cada uma das interpretações. Agora vamos
imaginar que a interpretação A2 se torne uma espécie de modelo de
interpretação copiado por vários outros cantores ou conjuntos musicais, de
maneira que ao ouvi-los possamos facilmente dizer que esses novos intérpretes
estão repetindo uma interpretação anterior, que por alguma razão, não
necessariamente musical, se tornou a preferida deles. A2 é agora algo
mais do que A1 e A3; A2 tornou-se uma interpretação padrão.
De tal sorte que muitas pessoas passam a considerar A2 a forma ideal de A.
Vamos batizar esta nova concepção de A2 como Ap (p = padrão).
Isto não impede, é claro, que outros intérpretes inovem na maneira de executar
ou cantar a canção, realizando com as novas interpretações novas variantes de An
(A4, A5, A6...), dentre as quais algumas poderão ser
obras de boa qualidade estética.” (AZEREDO, 2012)
RESPOSTA. O que o autor busca dizer parece ser
o mesmo que digo: trata-se de analogia de atribuição. Mas algumas observações:
a) Fá-lo muito confusamente, e de modo
tendente a considerar que tal “interpretação” ideal seja meramente acidental.
É-o em certo sentido, mas, em determinado espaço de tempo, se se trata de
sociedade culta (o que muito dificilmente podemos encontrar hoje em dia), tal
“interpretação” ideal é, como dito, o analogado principal de nossa analogia.
b) Depois, parece-me algo pobre a analogia de
proporcionalidade que faz com a Música, e dou dupla razão para o dito.
• Em primeiro lugar, na Linguagem não há
interpretação, porque, com efeito, os falantes de uma língua não podem fazer
como uma banda de jazz que transforma
(horrivelmente, mas efetivamente) uma peça religiosa de Bach em música swing. Ao contrário, todos os falantes
de dada língua têm de entender o mesmo com respeito a certa palavra, sob pena
de, quanto a esta palavra, não falarem a mesma língua. Se digo casa em seu sentido próprio, todos os
falantes de português hão de entendê-la como eu; não a podem interpretar.
• Em segundo lugar, embora tanto a Linguagem
como a Música sejam significantes, aquela o é diretamente de nossas concepções intelectuais, ao passo que esta
não o é senão ao modo de símbolo. Não
posso estender-me aqui sobre a distinção entre signo e símbolo (o que
faço num livro sobre as “artes do belo”, ainda em estado de escrita), mas veja
que, se a Linguagem é signo das
concepções do intelecto, a Música é símbolo
do mesmo transcendental belo; e,
enquanto a primeira tem por objeto a comunicação daquelas concepções, esta, a
Música, tem por objeto fazer propender ao bem e afastar do mal mediante fruição
estética e indução de sentimento.
13) O
conceito de variedade e variante linguísticas procede?
RESPOSTA. Procede como dito: se se entendem as variantes linguísticas
como analogados secundários.
14) Não
sei até que ponto a Sociolinguística acerta. Penso que o ensino de variedades
linguísticas começou após a 2ª Guerra Mundial com o movimento pós-colonialista,
em que colônias africanas da Inglaterra se tornaram independentes, pois aos
olhos dos países pós-guerra seria uma atitude nazista, ou quase, continuar
mantendo-as como colônias. Logo, deviam ser independentes, soberanas. Não
somente isso, não poderiam ser vistas como “inferiores”, mas como “diferentes”
(différance, ideia advinda do pós-estruturalismo de Derrida). Movidos
por este espírito de que “não há melhor, nem pior, apenas diferentes”,
dever-se-ia valorizar as diversidades – diga-se de passagem: as culturas dos
(países ex-colônias) “pobres oprimidos”. Assim, começou-se a valorizar a ideia
de heterogeneidade sobre homogeneidade (que, supostamente, levaria à
hegemonia). Enfim, esta mentalidade de diferenças e heterogeneidade naturalmente
afetou os estudos linguísticos. Então de uma visão de língua como sistema homogêneo
até quando durou o estruturalismo saussuriano nos anos 60, quando a língua era
vista como sistema homogêneo (“Enquanto a linguagem é heterogênea, a língua
assim delimitada é de natureza homogênea” (SAUSSURE, 2012)), dos anos 70 em
diante a língua passou a ser concebida como sistema heterogêneo: “Todas
as línguas apresentam um dinamismo inerente, o que significa dizer que elas são
heterogêneas.” (MOLLICA, 2012). Sendo heterogênea, a língua comporta não apenas
a variedade padrão oficial ou ideal (“nós vamos”, “eu me comportei bem”), mas
variedades linguísticas – que têm padrões linguísticos (gramaticalidade) – não
padrão (“nóis vai”, “eu se comportei bem”). Pela resposta nas dúvidas 52,
acredito que o senhor assuma que a língua (ou no nosso caso o dialeto
brasileiro) se identifica com a chamada “variedade padrão” que é aquela
utilizada pelos falantes cultos (aqueles que adquiriram cultura escrita, logo
se subentende que eles entendam que devemos obedecer às normas gramaticais a
fim de preservar a língua como patrimônio e não alterá-la constantemente a
ponto de século depois não se poder ler, por exemplo, uma literária de uma
mesma nacionalidade), ao passo que as chamadas “variedades não padrão” seriam
corrupções da língua por se desviarem do padrão culto o qual deve ser mantido.
Seria isso mesmo?
RESPOSTA. Em grande parte já respondi a isto. Mas digo ainda duas outras
coisas:
a) A distinção saussuriana entre Linguagem e língua é das mais pobres. O
correto é dizer, em analogia de
proporcionalidade própria: a Linguagem está para as línguas assim a
humanidade está para os homens.
b) As variedades não padrão podem ser ou corrupções da padrão, ou
anteriores no tempo à padrão, assim como o grego ático padrão, o de Platão e
Aristóteles, foi resultado da padronização de uma multidão de variantes
vulgares.
15) Azeredo
(2012, p. 66) se expressa sobre o “uso adequado” da língua: “Cabe a cada
usuário da língua avaliar o contexto de uso e escolher a forma de expressão
mais apropriada. Afinal, paralelamente à sua condição de sistema de unidades e
regras combinatórias, a língua é expressão da imagem que os interlocutores
fazem da situação social em que se encontram – ou seja, uma forma de
comportamento –, e como tal requer de seus usuários discernimento para adequar
as formas que empregam à situação e à finalidade do ato comunicativo. É nisso que
consiste a competência verbal de um cidadão." O senhor concorda com tal
colocação? A meu ver, essa regra de escolha da forma mais apropriada conforme a
situação social não procede. Creio que o correto seria em todas as ocasiões nos
expressarmos segundo a linguagem formal, ainda que, por relaxamento, em
situações informais nos desviemos da língua padrão...
RESPOSTA. Naturalmente, em situação mais distensa tendemos a afrouxar as
regras linguístico-gramaticais. Mas o autor faz aqui “muito barulho por nada”;
trata-se tão somente do que acabo de dizer. Quanto ao que diz você, que
“deveríamos, etc.”, eu o precisaria: quem escreve e fala correntemente a língua
culta, tende naturalmente a relaxar menos em situação distensa; mas veja o que
já disse no documento anterior: nunca na fala (a não ser que estejamos
adestrados na arte da eloquência, e ainda assim com objeto sobreacrescido), nunca
na fala conseguiremos o mesmo grau de perfeição gramatical que na escrita. Isto
se deve a uma grande quantidade de razões, entre as quais talvez a principal
seja o automatismo da fala, em contraposição ao reflexivo da escrita.
16) Quanto
à homogeneidade/heterogeneidade da língua, pergunto: assim como em Química água
mais álcool no copo forma um sistema homogêneo (partes visíveis iguais)
e água mais óleo forma um sistema heterogêneo (partes visíveis
diferentes), como devemos conceber a língua? Como sistema homogêneo (que
comporta apenas o padrão A2, conforme citado por Azeredo) ou como sistema
heterogêneo (que comporta todas as variedades A1, A2, A3...)? Não sei nem ao
certo se esta questão tem sentido. A princípio, tenho uma tendência a aceitar
que a língua seja um sistema homogêneo (caso a questão se a língua é homogênea
ou heterogênea tenha sentido), porém a rigor me parece que homogênea a língua
não pode ser, já que os fonemas de que se compõe são diferentes, há tipos
diferentes de orações subordinadas, há tempos verbais diferentes, enfim todos
esses elementos do sistema língua não são idênticos entre si, mas diferentes,
assim como a água e o óleo se apresentam visivelmente diferentes no copo. Logo,
a rigor, me parece que a língua seria heterogênea, porém não na acepção dos
sociolinguistas de que a língua comporta todos os padrões linguísticos (“nós
vamos”, “nóis vai”, “nói vai”...) em uso.
RESPOSTA. Outra vez, já respondi a isto, mas insisto: por ser em parte
um todo de ordem, a língua é como um exército. Isso explica que uma língua
permaneça a mesma ainda que, por exemplo, se lhe acrescentem palavras, ou se
lhe corrompam outras, ou se lhe substituam umas por outras – tal como se dá num
exército e entre seus soldados, comandantes, etc. E, se lhe posso recomendar
algo, ei-lo: esqueça tal distinção homogêneo x
heterogêneo, e fique com a analogia que acabo de fazer. – Quanto ao mais, de
fato já não tenho nada que acrescentar.
17) Se
não estou enganado, o senhor mencionava numa aula a preservação da língua e
acho que o menos pior dos critérios seria o da língua literária, ou ainda, que
a gramática se conforme à língua tal como concebida pelos literatos. Mas ainda
assim não seria o melhor critério haja vista as licenças poéticas, por exemplo.
Poderia apresentar uma tabela comparativa desses critérios (lógico, literário,
jornalístico...)?
RESPOSTA. Vou responder-lhe com minha mesma tese, que porém pensava
estar clara: o gramático tem de fundar-se sobretudo
não nos autores poéticos ou retóricos, mas nos autores científicos, e isto
porque:
a) aqueles não necessariamente se cingem ao gramatical;
b) a Gramática se ordena à Lógica e à Filosofia ou Ciência, assim como a
Lógica se ordena à Filosofia e esta à Arte com que se fez o Universo.