segunda-feira, 22 de junho de 2015

Multidão de questões sobre a Gramática, e ainda sobre a Poética (em resposta a perguntas de aluno do curso Por Uma Filosofia Tomista)


RESPOSTAS DO PROFESSOR
NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO

Escrevo-lhe este longo e-mail a fim de que se elucidem certos conceitos concernentes à Filosofia e à Gramática/Linguística, muito embora acredite que em sua Suma Gramatical devam estar expostas pelo menos a maior parte das questões mais detalhadamente. Tentarei organizar abaixo as questões que tenho mente.
1.  Como dividir a linguagem e a língua segundo os critérios natural/artificial, falada/mímica/escrita e se possível conforme os sentidos humanos visual/auditiva?

RESPOSTA. Todas as línguas são igualmente linguagem. Ora, a linguagem é um produto artificial vocal com finalidade significativa; e, se se considera a mente dos que produzem e usam a linguagem, temos então que se trata de uma arte. Pois bem, falando propriamente, só a linguagem humana pode dizer-se simpliciter tal; a dos animais, só muito impropriamente. A escrita é signo da linguagem, e pode dizer-se também linguagem (e até, de certo ângulo – o gramatical –, ainda mais propriamente); mas a mímica, a linguagem gestual, etc., não podem ser senão auxiliares da linguagem; ou seus substitutos precários no caso, por exemplo, dos surdos-mudos. A visão e a audição não são linguagem de modo algum: são somente receptores sensitivos seus. 

2.     A língua é um ente concreto ou abstrato? Conforme a nossa gramática, deve ser substantivo concreto. Do pondo de vista da Metafísica, como descrever a língua? Enquanto ente, deve possuir uma essência. Assim a língua portuguesa possui uma essência x, enquanto que a língua inglesa possui uma essência y. E como distinguir a essência do brasileiro enquanto dialeto do português lusitano? Onde entram as variantes linguísticas?


RESPOSTA. Divido-a.
a) Cuidado: gramaticalmente, abstrato não é sinônimo de imaterial. Assim, são concretos os anjos, as almas, e até os entes mitológicos; abstratos são os nomes de ação e os de qualidade (ida, luta, resolução, etc., e bondade, humanidade, brancura, etc.)
b) A linguagem (e todas as línguas são linguagem) é um todo artificial de ordem e de composição com um fim: significar os conceitos da alma.
c) Mas as línguas não têm essência própria, porque são todos artificiais. Isso de que cada língua tem uma essência vem do Positivismo, e é indefensável.
d) Quanto a língua, dialeto, etc., vou dar-lhe as conclusões a que chego.
• O que faz que o falado no Brasil e o falado em Portugal sejam a mesma língua? Ou serão dialetos da mesma língua? E o que se fala no nordeste e no sul do Brasil? São pura e simplesmente a mesma língua? Ou serão falares de uma mesma língua? E façam-se as mesmas perguntas a respeito do inglês, do russo, do espanhol, do francês... É questão em torno da qual muito já se escreveu e debateu, e à qual, a meu ver, só rara vez se respondeu satisfatoriamente.
Toda e qualquer língua é, propriamente, um todo composto por determinados sons e palavras que se combinam gramaticalmente para significar nossas concepções mentais e comunicá-las aos demais, o que implica uma compreensibilidade geral. Em outras palavras e como dito, é um todo artificial de ordem e de composição. É porém uma espécie tal de todo de ordem e de composição, que:
a) é sempre e mais ou menos rapidamente cambiante, ou por entropia e desordem, ou por progresso; 
b) poucos de seus falantes o têm de todo na mente, se se trata de suas estruturas morfossintáticas; e nenhum nunca o tem totalmente, se se trata de seu vocabulário. Em outras palavras, é um todo assimptótico.
Neste sentido, diga-se que o falado no Brasil pelas camadas mais cultas é o que mais propriamente se pode dizer língua portuguesa, e que a pequena diversidade fonética, vocabular e sintática que se dá pelo país afora entre estas camadas constitui falares.
Tratar-se-á pura e simplesmente de línguas diversas se implicarem algum grau de incompreensibilidade mútua. Podem todavia dar-se línguas que não o sejam pura e simplesmente, mas segundo algo ou enquanto algo.
Se se dá incompreensibilidade na fala em algum grau, mas a língua escrita permanece substancialmente a mesma – o que sucede, por exemplo, entre o português do Brasil e o de certas regiões de Portugal –, então há de dizer-se que só se trata propriamente da mesma língua segundo a escrita, língua de que tais linguagens orais distintas e em algum grau mutuamente incompreensíveis podem ter-se como dialetos.
No interior de umas mesmas fronteiras pode haver não só diversidade de linguagens (faladas) em algum grau mutuamente incompreensíveis, mas também uma espécie de língua franca, que alguns falam e todos entendem e talvez escrevam. Em situações assim, costumam-se considerar aquelas linguagens dialetos com respeito à língua franca, que não se diz língua senão precisamente enquanto é franca.
Pode dar-se, ainda, e dá-se de fato, que falantes de línguas em algum grau mutuamente incompreensíveis as considerem ou dialetos de uma mesma língua, ou até absolutamente a mesma língua – e isso sem língua franca nem escrita que as unifiquem, mas por quaisquer razões raciais, históricas, políticas, etc. Neste caso, portanto, tratar-se-á de dialetos ou de língua tão somente segundo alguma(s) de tais razões.
O caso mais complexo é o das chamadas “várias etapas” de uma mesma língua. Com efeito, se se considera o português medieval, ver-se-á que não só sua escrita não é para nós, falantes atuais do português, muito mais compreensível que a do espanhol de hoje, mas também sua fala, provável ou presumivelmente, não nos seria muito mais compreensível que a do espanhol contemporâneo. Como não seria assim, se, além de conter palavras que não contém o português atual, mas sim o espanhol contemporâneo,[1] continha outros vocábulos,[2] acidentes flexionais e torneios sintáticos também de todo desaparecidos do português de hoje, mas substituídos às vezes por outros mais razoavelmente semelhantes a seus correlatos atuais do espanhol?[3] Em verdade, fases linguísticas tão diversas não podem considerar-se propriamente a e da mesma língua senão segundo um sentimento de continuidade dos falantes atuais, sentimento devido a razões históricas.     

3.   Parece-me que se a língua portuguesa, por exemplo, possui uma essência determinada, então haverá uma pronúncia verdadeira (aquela conforme à essência da língua): o grafema L sempre como consoante (/l/) e não como semivogal (/w/); o T e o D sempre puros (/t/, /d/), sem chiados (/t/,/dʒ/); o O e o E sempre como /o/ e /e/ e não como U e I respectivamente; de modo que a pronúncia realizada fora deste padrão (L sempre consoante, T e D sempre puros...) não corresponderia perfeitamente à (essência da) língua portuguesa. Não encontrei em gramáticas o sotaque padrão do português brasileiro pelo menos, supondo que a gramática possa prescrevê-lo.

RESPOSTA. Divido-a ainda.
a) Como já disse, a linguagem não tem essência própria, e as diferenças entre as línguas são acidentais, assim como, analogamente, são acidentais as diferenças raciais entre os homens ou entre os cães.
b) As diferenças fonéticas são ainda mais acidentais, se tal se pode dizer, se se trata de diferenças em uma mesma língua.
c) Como explico na Suma Gramatical, não há sotaque-padrão no Brasil, dado que há diferenças de sotaque entre as mesmas camadas igualmente cultas.
d) A Gramática é antes a arte da escrita, e o bem falar decorre dela reflexamente. A arte que rege mais propriamente o bem falar, em ordem à Retórica, é a Eloquência.
e) Quanto à questão fonética, e de que é um fonema, grassa a mais absoluta confusão entre gramáticos e linguistas. Mas de fato o assunto não é nada simples. Exponha-se.
Para dar um exemplo mais abrangente do que quero mostrar, observe-se o seguinte quadro, em que se podem ver as diferenças entre a pronúncia lisboeta, a paulistana e a compostelana atuais – as duas primeiras no âmbito da língua portuguesa, e a última no âmbito da galega – na leitura de uma passagem (I, 33) d’Os Lusíadas, de Luís de Camões.     
Original
       (Lisboa)
      (São Paulo)
(Santiago de  Compostela)
Sustentava contra ele Vénus bela,
suʃt’tavɐ ‘kõtɾɐ ‘elɨ ‘vɛnuʒ ‘βɛlɐ
sust’tavɐ ‘kõtɾɐ ‘eli ‘venuz ‘bɛlɐ
susten’taβa ‘kontɾa ‘el ‘βɛnuz ‘βɛla
Afeiçoada à gente Lusitana,
ɐfɐjsu’aðaːʒẽtɨ luzi’tɐnɐ
afejsu’adaːʒẽtʃi luzi’tɐnɐ
afejθo’aðaːʃente lusi’tana
Por quantas qualidades via nela
puɾ ‘kwɐ̃tɐʃ kwɐli’ðaðɨʒ ‘viɐ ‘nɛlɐ
puɾ ‘kwɐ̃tɐs kwali’dadʒiz ‘viɐ ‘nɛlɐ
poɾ ‘kantas kwali’ðaðez ‘βia ‘nɛla
Da antiga tão amada sua Romana;
dɐ̃’tiɣɐ ‘tɐ̃w̃ ɐ’maðɐ ‘suɐ ʁu’mɐnɐ
ː’tʃiɡɐ ‘tɐ̃w̃ ɐ’madɐ ‘suɐ ho’mɐnɐ
dan’tiɣa ‘taŋ a’maða ‘sua ro’mana
Nos fortes corações,
na grande estrela,
nuʃ ‘fɔɾtɨʃ kuɾɐ’sõj̃ʃ
n
ɐɣɾɐ̃dɨʃ’tɾelɐ
nus ‘fɔɾtʃis koɾa’sõj̃s
na ‘
ɡɾɐ̃dʒis’tɾelɐ
nos ‘fɔɾtes koɾa’θons
na ‘
ɣɾandes’tɾela
Que mostraram na terra Tingitana,
kɨ muʃ’tɾaɾɐ̃w̃ nɐ ‘tɛʁɐʒi’tɐnɐ
ki mos’tɾaɾɐ̃w̃ na ‘tɛhɐ tʃĩʒi’tɐnɐ
ke mos’tɾaraŋ na ‘tɛra tinʃi’tana
E na língua, na qual quando imagina,
i nɐ ‘lĩɡwɐ nɐ ‘kwaɫ ‘kwɐ̃du jmɐʒinɐ
i na ‘lĩɡwɐ na ‘kwaw ‘kwɐ̃dima’ʒinɐ
e na ‘liŋɡwa na ‘kal ‘kando jma’ʃina
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
kõ ‘pokɐ kuʁup’sɐ̃w̃ ‘kɾe ki’ɛ ɐ lɐ’tinɐ
kũ ‘pokɐ kohup(i)’sɐ̃w̃ ‘kɾe ki’ɛ a la’tʃinɐ
kom ‘powka korup’θoŋ ‘kɾe ‘ke ‘ɛ a la’tina[4]
Mas por que trago à baila o galego, que é uma língua e não um dialeto do português? Porque importa sobremaneira no que quero demonstrar. Veja-se, no quadro acima, o modo galego de dizer o /ç/ de “afeiçoada” (segundo verso): como /θ/ [afejθo’aða], ou seja, como o zeta usado em grande parte da Espanha para dizer, por exemplo, zorro. É um som de articulação interdental, fricativo e surdo, o mesmo que também é representado, ainda em espanhol, pela letra c quando seguida de e ou i exatamente como no galego (embora em certas regiões da Galiza também se diga, como em português, como /s/). Pois bem, o que hoje é o fonema /θ/ no galego era dito provavelmente /ts/ não só no galego-português (o que se considera a primeira etapa do português), mas também ao menos em parte da etapa seguinte, a do português “arcaico”, na qual o galego e o português se separaram por razões geopolíticas. O som /ts/ era representado pela letra ç. Pois bem, como se julga sejam etapas da mesma língua o galego-português, o português “arcaico” e o “moderno”, pergunte-se: /θ/ é o fonema de que o antigo /ts/ era “realização” ou, inversamente, /θ/ é “realização” de um antigo fonema /ts/? Com efeito, ambos têm potência ou possibilidade de converter-se um no outro. Mas não parece conveniente que uma coisa seja “modelo” de algo desaparecido antes de seu surgimento, ou, o que é o mesmo, que algo seja “realização” de uma coisa inexistente no momento em que se dá. Ademais, se alguém dissesse hoje entre nós /tsorro/ para significar zorro (raposo), provavelmente não seria de imediato entendido. Somos capazes de entender que /tchia/ e /tia/ são a mesma palavra; mas não que o sejam /tsorro/ e /zorro/. Que conclusão tirar desse impasse?
Conclusão outra que a da Linguística. Vejamo-la passo a passo, a começar do mesmo exemplo acima, o de zorro.
Suponhamos que a certa altura do século XV já coexistissem, na Galiza, /tsorro/ e /θorro/, e, em Portugal, /tsorro/ e /zorro/, escritos sempre “çorro”. Transcorreu o tempo, porém, e na Galiza desapareceram tanto /tsorro/ como o ç para representar na escrita o /θ/ de /θorro/; passou-se a usar em seu lugar o z. Agora, porém, na mesma Galiza, zorro passou-se a dizer tanto /θorro/ como /sorro/, sendo este /s/ também representado, na escrita, por z. Em Portugal, por seu lado, ainda naquela altura do século XV, desapareceram igualmente /tsorro/ e a letra ç, e passou-se a dizer exclusivamente a palavra como/zorro/ e a escrever zorro. O que sucedeu?
Na Galiza, suposta certa baliza fincada algo arbitrariamente no tempo, havia um fonema único para dizer o som inicial de zorro: /ts/, escrito ç. Passou o tempo, e por razões complexas /ts/ se transformou em /θ/ em parte da região galega; mas chegou o momento em que /θ/ veio a substitur /ts/ de todo, ao passo que o ç com que se escrevia também foi substituído de todo por z. É patente: neste caso, o “modelo” é /ts/, e /θ/ é uma variação ou transformação – não “realização” – daquele “modelo”, transformação que, se por certo tempo conviveu com o “modelo”, acabou porém por substituí-lo completamente. Quanto à substituição de ç por z neste caso, deve-se a razões históricas: já estava a Galiza integrada à Espanha. Mas veja-se o mais importante aqui: agora, sempre na Galiza, a mesma letra z serve de representação tanto para /θ/ como para /s/, sendo /s/ uma transformação do “modelo” /θ/.
Ponha-se agora, hipoteticamente, que a certa altura da história da língua portuguesa a vogal átona, pós-tônica e final de dorme se dissesse /i/ por todos os lusófonos, e que depois tenha passado a dizer-se, concomitantemente, também /ɨ/ (em Portugal) e /e/ (no Paraná, talvez por influência do espanhol). Que se passou? Passou-se que /i/ se transformou tanto em /ɨ/ como em /e/, mas não desapareceu, e permaneceu na boca da maioria dos brasileiros. Coexistem, assim, o “modelo” e duas de suas transformações, todas três escritas como sempre o fora /i/: e.
Vê-se pois que os “modelos” fonéticos não são ideias platônicas, sem existência material, das quais participassem umas “realizações”; mas são, eles mesmos, fonemas materialmente realizados, enquanto aquelas “realizações” têm, do ângulo fonético mais concreto, o mesmo estatuto que seus “modelos”. Com isso, no entanto, ainda não se responde a uma interrogação: como é possível, então, que não só os lusófonos brasileiros que dizem /tchia/ entendam perfeitamente os que dizem /tia/, e vice-versa, mas, ainda, todos considerem as duas formas de dizer variações de um mesmo fonema? É possível responder a esta interrogação diferentemente de como o faz a Linguística, ou seja, sem recorrer a um “modelo” equidistante de todas as suas “realizações”?[5]
Sim, é possível, e é a única resposta correta: fatos como este sempre se devem a uma mescla de diversas razões. No caso de tia, há três razões principais para dar-se o que acabamos de ver. Com efeito, os lusófonos brasileiros entendem-se perfeitamente aqui:
α. porque /tchia/, que é uma transformação de /tia/, coexiste com seu “modelo”;
β. porque sempre se usa concomitantemente a seu “modelo” em contextos fonéticos idênticos: /tchia/ e /tia/, /Tchiago/ e /Tiago/, /tchimbre/ e /timbre/ é a parte de razão que cabe à Linguística, o que, porém, sempre esteve de algum modo suposto nas gramáticas anteriores ao surgimento desta;
γ. porque ambos os fonemas se dizem no mesmo país, na constante comunicação entre os falantes das duas maneiras;
δ. e importantíssimo: porque são ambos representados na escrita pela mesma letra t, o que é a causa principal do que se diz em β supra.    
E agora temos perfeitas condições para responder com segurança a uma segunda pergunta, subjacente desde o início: por que /tch/ e /t/ não só podem entender-se, pela mesma Linguística, como “realizações” de um /t/, mas se representam igualmente por t na escrita? Precisamente, porque /tch/ é uma transformação de /t/ e, como se sabe, “antiguidade é posto”; e porque o /t/ não desapareceu no tempo nem no espaço, ao contrário do que se deu como o antigo /ts/ de zorro.    
Pois bem, o que distingue concretamente, na fala, tia de pia não é um fonema ideal, mas alternadamente o fonema /tch/ e o fonema /t/, que servem para o mesmo por diversas razões combinadas, das quais resulta certo senso de que /tch/ deriva de /t/. Daí que, se em um sentido /tch/ e /t/ são por igual fonemas e servem para distinguir (por exemplo, de /p/), em outro sentido o fonema /t/ é, digamos, mais fonema que /tch/, porque é sempre de algum modo em referência a ele que este cumpre seu papel. Ou seja: /tch/ e /t/ são analogamente fonemas, mas é antes a /t/ que se atribui o termo fonema. E é por isso, e somente por isso, que os que interessam à Gramática são os que se dizem anterior e mais propriamente fonemas.
Imagine-se agora, porém, que num dia futuro o /t/ desaparecesse da fala do português tal como um dia desapareceu o /ts/. Que poderia acontecer? Se estivéssemos no período em que se deu o desaparecimento do /ts/, ou seja, em meio às mesmas condições concretas (entre as quais, ausência de Gramática e de ensino formal da língua), perder-se-ia a referência de /tch/ a /t/, e provavelmente esta letra desapareceria em benefício de outra para os mesmos contextos fonéticos. Mas não estaríamos em tal período, senão em outra época, prolongamento da atual, quando o latim já deixou de ser, há muito, a língua de cultura, e o português o substituiu totalmente no âmbito lusofalante e é ensinado, ou bem ou mal, segundo determinada Gramática. Logo, se tal se desse, se viesse a desaparecer totalmente da fala o /t/ de tia, etc., então provavelmente permaneceria a letra t para representar, na escrita, tão somente o fonema /tch/, como uma espécie de memória do fonema de que foi transformação o fonema que agora o substitui de todo. Continuaria assim o /tch/, de certo modo, a referir-se ao /t/, e este, de certo modo, ainda seria mais propriamente fonema que /tch/. 
Aí está mais um exemplo da importância da escrita. Mas concluo-o tão só de uma mera hipótese como a do desaparecimento do fonema /t/? Não, de modo algum: é tão somente pela escrita que podemos dizer que o português de certas regiões de Portugal e o do Brasil são a mesma coisa. Retome-se o quadro acima em torno da pronúncia diversa de uma passagem d’Os Lusíadas, e ver-se-á que já há quase tanta distância entre o português (mais escolarizado) de São Paulo e o português (mais escolarizado) de Lisboa quanto a que há entre ambos e o galego. Imagine-se agora a distância que medeia entre o português (mais escolarizado) do Brasil e o português mais geral de Trás-os-Montes, de Dão-Lafões, do Alentejo. É que, a partir de certo ponto, as transformações fonéticas em certa zona de uma língua acabam por acarretar algum grau de incompreensibilidade para as demais zonas. Assim, sobretudo se falado rapidamente, o português de certas regiões de Portugal, por sua radical consonantização, soa bastante incompreensível para os brasileiros, apesar de que o inverso nem sempre é verdadeiro. Com efeito, tal português lusitano está para o brasileiro um pouco como o holandês está para o alemão, e vice-versa.      
Mas a Linguística diz mais: para ela, os fonemas existem antes de tudo para servir de traços distintivos entre as palavras, e secundariamente para formá-las. A verdade é o contrário: os fonemas servem antes de tudo para formar as palavras, e secundariamente para distingui-las. Pois é claro que quem forma palavras não as quererá formar iguais, porque se o fizesse já não formaria senão uma só e única palavra. Mas quem forma palavras quer antes de tudo formar signos de seus conceitos mentais, e a distinção entre tais signos não é senão decorrência disso.
Isto, porém, parece certo do ângulo dos que formam as palavras. Mas o será dos que as usam? Sê-lo-á mais ainda, porque, se assim não fosse, não haveria os homófonos, ou seja, palavras que, conquanto sejam signos de conceitos ou ideias diversas, são ditas todavia de modo exatamente igual. Exemplo famoso: são – terceira pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ser; são – adjetivo sinônimo de “sadio”; e são – apócope de “santo”. Há mais, porém, e comecemos por um exemplo: também se tornaram homófonas, em grande parte do Brasil, mal e mau. Este exemplo é posto em geral por linguistas e gramáticos entre os casos de “realizações” diversas de um mesmo fonema. Como vimos, porém, ambos são analogamente fonemas, embora o /l/, pelas razões indicadas, seja neste caso mais propriamente fonema que o /u/. E, se dizer /cau/ em lugar de /cal/ não é contrário à função fonêmica de distinguir palavras, dizer /mau/ em vez de /mal/, sim, é-o, e de fato gera não pouca confusão.

4.      A língua pode ser dividida em 2 modalidades: falada e escrita? Ou ela é essencialmente fonética (sons como signos) como preferia Saussure?

RESPOSTA. As teses de Saussure são não só confusas, mas nefastas. Seu objetivo principal é duplo: desprezar a escrita, e negar a necessidade da Gramática (e as duas coisas estão interligadas, porque como vimos a Gramática é antes a arte da escrita). O que não quer dizer que a linguagem falada não tenha anterioridade com respeito à escrita, até porque a linguagem escrita é signo da falada, enquanto esta é signo das concepções mentais.

5.      Como definir “palavra”, “vocábulo” e “termo”? Napoleão Mendes os define bem? As palavras seriam unidades de que se compõe a linguagem? Neste caso, os morfemas também não seriam unidades? O vocábulo seria a palavra considerada materialmente, ao passo que o termo seria a palavra considerada em relação a uma ideia? Neste caso, como conciliar esta definição com palavras que aparentemente não se vinculam diretamente a nenhuma ideia específica como “se”, “não”, da mesma forma que palavras como “cachorro” e “gato”?

RESPOSTA. Divida-se outra vez.
a) No âmbito gramatical, palavra, vocábulo e termo podem tomar-se como sinônimos. Parecem-me artificiais as distinções que se fazem entre elas.
b) A palavra é a unidade significativa mínima da Linguagem.
c) As palavras (ou vocábulos ou termos) se dividem em:
categoremáticas, as que significam por si como signos de substâncias ou de acidentes;
sincategoremáticas, que só significam junto a outras.

6.  Na Dúvidas 11 – Questões Gramaticais, o senhor afirma que a Linguística não possui método científico propriamente dito, e que por seu sujeito não se distinguir da parte teórica da Gramática não pode se distinguir desta. Como então bem definir a Gramática como ciência (incluindo seu método científico) e como arte? Napoleão Mendes expõe no parágrafo 13 da sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa: “Denomina-se gramática a reunião ou exposição metódica dos fatos de uma língua.” Parte deste método científico da Gramática entendo que seria, como ele faz, dividir a Gramática em três grandes partes (da língua): Fonética, Morfologia e Sintaxe. Quer dizer, analisar aspectos diferentes de um mesmo objeto, a língua (portuguesa).

RESPOSTA. Por partes.
a) A Gramática não é ciência, mas arte, e, como toda e qualquer arte, tem uma parte teórica ou especulativa, assim como a arte da Música tem tratados de harmonia, de composição, etc.
b) Gramática não é o que diz Napoleão, mas é a arte de dirigir a escrita para que esta atinja seus fins com ordem, com facilidade e sem erro. O que ele diz é no máximo uma parte da parte especulativa ou teórica da Gramática.
c) A Gramática divide-se em Fonética/Ortografia, Morfologia e a Sintaxe, embora, ao fim e ao cabo, se possa falar também, em certo sentido, de Morfossintaxe.

7.      Se a língua sofre mudanças ao longo do tempo, é justo que a Gramática seja ciência, haja vista que seu objeto não é fixo, e sim esteja mudando?

RESPOSTA. A Gramática não é ciência, como dito, mas arte.

8.  Na Dúvidas 38 – Sobre as Artes em Geral e as Artes do Belo, o senhor diz ser a Gramática a arte da escrita. Na Suma Teológica (I-II, q. 56, a. 3), São Tomás diz: “[...] o hábito da gramática nos dá a prática de falar corretamente [...]” (sicut per habitum grammaticae habet homo facultatem recte loquendi). A Literatura seria a ciência da escrita, conforme expõe Paulo Faitanin em http://www.aquinate.net/portal/Tomismo/Filosofia/a-filosofia-da-linguagem-tomista.php

RESPOSTA. Divido-a.
a) E di-lo perfeitamente Santo Tomás, porque se aprende a falar corretamente quando se tem o hábito gramatical da escrita.
b) Dizer que a Literatura é a ciência da escrita é incorrer em erro, ao menos se se usa a palavra Literatura nos sentidos atuais e dicionarizados. Se tomada como sinônimo de Poética, é a arte que rege a escrita (ou a fala, no teatro) a induzir ao bem mediante o belo e o sentimento. A definição é de Aristóteles e de Santo Tomás. Ademais, como o dizem estes mesmos, a Literatura/Poética é parte potencial da Lógica. Em outro sentido, é o conjunto das obras literárias ou poéticas. E em outro ainda, mais antigo, é o ensino das primeiras letras. – Em latim é que, sim, se encontra a definição referida, mas como sinônimo justamente de Gramática: litteratúra, ae = “arte de escrever, gramática; escrita; alfabeto; conhecimentos literários, literatura; instrução, saber, ciência; obras literárias” [< littera, ae = “letra, caráter de escrita”]. Mas é princípio estabelecido que não se pode ou não se deve tomar o étimo pelo sentido atual: como diz e exemplifica Santo Tomás em seu Comentário ao Perihermeneias, “aquilo a partir de que se impõe um nome para significar é distinto do que o nome significa; assim como o nome lapis [= pedra] se impõe a partir de lesio pedis [= ferimento do pé]...”.

9.  Sobre “poesia”, “literatura” e “arte literária” (cf. Dúvidas 38 – Sobre as Artes em Geral e as Artes do Belo), gostaria de uma explicação mais clara e organizada, pois ainda não compreendi corretamente. Ferrater Mora, no Dicionário de Filosofia, define a poesia em contexto aristotélico: “Assim, a poesia pode ser definida, em geral, como “imitação” (representação) das ações humanas por meio da linguagem”. Esta mesma definição é mantida no Tomismo? O professor Massaud Moisés parece apreciar mais não esta definição aristotélica de “poesia”, mas o conceito de “poesia” conforme uma vertente romântica, por envolver ideias de subjetividade, mundo interior, eu, egocentrismo, sentimentos etc. O que seria o fim “lógico-significativo” da Poética e “objeto imediato”?

RESPOSTA. Sim, é mantida no tomismo. Não confundir, todavia, poesia com Poética: aquela é o que diz Ferrater, enquanto esta é a arte que a rege. Mas atenção ainda: uma coisa é o objeto próximo de determinada arte; e o da Poética é o dito por Ferrater, assim como o objeto imediato da Música é a imitação da natureza mediante melodias. Mas ambas a Poética e a Música têm, analogamente, o mesmo fim ou objeto mediato: induzir ao bem mediante o belo e o sentimento. Agora, por partes.
a) O Romantismo é tudo menos ciência, e portanto não é capaz de dar definições científicas de nada.
b) O fim lógico-significativo é, como dito, induzir ao bem mediante o belo e o sentimento.

10.  Costumam dividir a Gramática em normativa e descritiva. Não raro na faculdade, ouvia e percebia um certo preconceito com relação à “Gramática Normativa” e um certo apreço pelo descritivismo, como se a Linguística fosse boa para com todos por respeitar a diversidade, e a Gramática fosse má por querer se impor autoritariamente sobre as variedades linguísticas desprestigiadas socialmente. A Gramática Normativa imporia normas para serem obedecidas pelos falantes, ao passo que a Gramática Descritiva apenas apresenta os diversos falares sem discriminações. Napoleão Mendes, porém, na sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa (parágrafo 19) não realiza tal distinção, aliás as coloca como equivalentes: “Esta última, isto é, a gramática expositiva, que também se chama normativa, descritiva ou prática, é a que vamos estudar com relação à nossa língua [...]”. Esta colocação de Napoleão Mendes se justificaria na medida em que a língua tal como apresentada na Gramática Normativa é a verdadeira (correspondente à essência da língua) e a que deve ser seguida, ao passo que a Gramática Descritiva equivale a Normativa na medida em que os usos da língua divergentes daqueles da norma padrão não devem ser levados em conta gramaticalmente, logo a descrição pertinente que se faça da língua será a do uso conforme a Gramática Normativa? Ou ainda, se se vai fazer uma descrição da (gramática da) língua, se deve fazer não a de variações linguísticas (não correspondentes à essência da língua), mas a do uso da norma padrão (correspondente à essência da língua), logo Gramática Normativa e Descritiva se equivalem (conforme Napoleão Mendes)?

RESPOSTA. Por partes outra vez.
a) Tal divisão é, digamos, torta. O melhor é dividi-la em parte especulativa e parte normativa ou artística propriamente dita.
b) Quanto ao fato de a Gramática ser antes de tudo normativa, decorre do fato mesmo de ela ser arte e não ciência.
c) Na parte especulativa ou teórica da Gramática, deve descrever-se a língua culta ou dos bem falantes, em ordem a seus fins artísticos e normativos. Descrever as variantes incultas não pode deixar de servir a uma de duas coisas:
• mostrar pelo errado como há de ser o correto, assim como na Lógica aristotélica há um tratado (As Refutações Sofísticas) em que se estudam os sofismas em ordem a não incorrer neles no âmbito da ciência;
• ou satisfazer curiosidades. – Obviamente, isto último não pode interessar a um aristotélico-tomista, porque não interessa efetivamente, no âmbito das disciplinas racionais, senão o científico (que não se pode alcançar com tais acidentalidades) ou o artístico (que no caso da Gramática não se pode alcançar senão a partir da linguagem culta).

11.  Segundo me consta, a Sociolinguística tem crescido desde os anos 70, e os sociolinguistas – creio que em sua maioria movidos consciente ou inconscientemente pela visão de mundo marxista – têm adotado um conceito de língua como fenômeno pragmático, ou seja, no lugar de ela ser um sistema estruturado, ela seria uma “prática social”, daí os sociolinguistas não estudarem a língua enquanto estrutura (morfemas, crase etc), mas o seu uso (para veicular ideologia, discriminar socialmente, expressar diversidade cultural etc). Penso que confundindo os conceitos de langue e parole enunciados por Saussure, assumem que a língua é o uso que o falante faz das palavras e normas da língua (ente estruturado) mesma – daí sua ilogicidade – e assim não veem a língua como sistema homogêneo (p ex, o fonema /t/ deve ser sempre puro; artigo e substantivo devem concordar em número e gênero etc), e sim como um sistema heterogêneo (que compreende como aceitáveis e igualmente corretos os fonemas /t/ e /t/, “os peixes” e “os peixe” etc), causando a impressão do “tudo vale”. Assim seu foco é estudar (observar, registrar, descrever) principalmente a língua falada (já que a língua escrita é mais planejada, revisada etc), que, a exemplo das línguas vulgares no tempo de Dante frente ao latim (língua culta), varia de geração para geração. O que o senhor pensa a respeito da Sociolinguística?

RESPOSTA. Não é ciência nem parte de nenhuma ciência, nem é parte especulativa de nenhuma arte.

14.  Pode-se dizer que uma língua se corrompe? Com certeza, no mínimo que se transforma. Os evolucionistas alegarão que toda e qualquer língua está constantemente evoluindo. A corrupção da língua se iniciou na Torre de Babel ou desde o momento em que Adão perdeu a justiça original de modo que a língua adâmica (hebraico? árabe?) foi se corrompendo?

RESPOSTA. Toda língua tende à entropia (ou seja, à desordem e à corrupção) justamente porque, no interior das fronteiras em que é falada, sempre é mais estendido o linguajar inculto, que acaba por empurrar até os mais cultos ao erro e à corrupção linguística. Por isso é que o bem falar quase sempre é algo reflexo: decorre do aprendizado da Gramática (que, como visto, é a arte da escrita), da leitura de bons autores e do exercício da mesma escrita.
• Não confundir, porém, corrupção ou desordem com mudança: porque as línguas também podem mudar para melhor, como se deu com o grego ático com Platão e com Aristóteles.
• Toda e qualquer corrupção linguística, porém, contraria o fim precípuo da linguagem: a intercomunicação dos homens no espaço e no tempo.
• Mais: a própria diversidade das línguas contraria este mesmo fim, porque, como dizia Aristóteles, os que falam línguas diferentes não podem conviver bem entre si.
• Por fim, e como já disse numa resposta a algum outro aluno, não tenho hoje a menor condição de responder com segurança e ciência acerca do episódio da Torre de Babel; tal resposta requer uma competência exegética quanto a este ponto que pelo menos ainda não adquiri. Estou certo, no entanto, de que a diversidade das línguas se deve à sua tendência à entropia, e de que esta tendência se deve a uma corrupção ou desordem da própria natureza humana.     




[1] Por exemplo, “lo” (neutro) = lo, “elo” = ello (isso), “esto” = esto (isto), “mentre” = mientras (enquanto), “pero” = pero (mas), etc.
[2] Uso indiferentemente palavra ou vocábulo para denominar a unidade significativa mínima da linguagem.
[3] Em verdade, o português medieval conserva-se muito mais no galego atual. A título de exemplo, vejam-se os escolhos que uma cantiga cortesã do português medieval apresenta a nós, falantes e leitores do português hodierno: “Ai, mia senhor, veen-me conselhar / meus amigos, como vos eu disser: / que vos non servia, ca non m’é mester, / ca nunca ren por mí quisestes dar; / pero, senhor, non m’én quer’eu quitar / de vos servir e vos chamar senhor; / e vós faredes depoi-lo melhor. // E todos dizen que fiz i mal sén, / ai mia senhor, des quando comecei / de vos servir; e non os crerei / mentr’eu viver, nunca, por ũa ren: / ca, mia senhor, non me quitarei én / de vos servir e vos chamar senhor; / e vós faredes depoi-lo melhor. // E máis me dizen do que me vos deu / por mia senhor: que mi fez i gran mal. / Pois m’esto dizen, dizen-m’assí al: ‘Non a serviades, nen sejades seu’. Por tod’esto non me partirei eu / de vos servir e vos chamar senhor; / e vós faredes depoi-lo melhor. // E, mia senhor, conselha-me mui mal / quen mi o conselha; mais farei-m’eu al”. Observem-se, ademais, não só palavras como “mentre” e “pero”, que como já visto perduram de algum modo em espanhol (mientras e pero), mas palavras como “i”, “ca”, “non” e “ren”, que perduram de algum modo em francês (y, car, non e rien).
[4] Landeg White, The Lusiads English Translation, Oxford, Oxford University Press, “Oxford World’s Classics”, 1977.
[5] O que, diga-se de passagem, está em flagrante contradição com outro princípio da mesma Linguística: com efeito, como um “modelo” fonêmico pode estar equidistante de todas as suas “realizações” se são escolhidos precisamente dentre a multidão de sons da fala? Por isto e muito mais, não é exagerado dizer que falta à Linguística um método de verdadeira ciência.