RESPOSTAS DO PROFESSOR
NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO
Escrevo-lhe
este longo e-mail a fim de que se elucidem certos conceitos concernentes
à Filosofia e à Gramática/Linguística, muito embora acredite que em sua Suma
Gramatical devam estar expostas pelo menos a maior parte das questões mais
detalhadamente. Tentarei organizar abaixo as questões que tenho mente.
1. Como dividir a linguagem e a língua segundo os critérios natural/artificial,
falada/mímica/escrita e se possível conforme os sentidos humanos
visual/auditiva?
RESPOSTA. Todas as línguas são igualmente linguagem. Ora, a linguagem é
um produto artificial vocal com finalidade significativa; e, se se considera a
mente dos que produzem e usam a linguagem, temos então que se trata de uma
arte. Pois bem, falando propriamente, só a linguagem humana pode dizer-se simpliciter tal; a dos animais, só muito
impropriamente. A escrita é signo da linguagem, e pode dizer-se também linguagem
(e até, de certo ângulo – o gramatical –, ainda mais propriamente); mas a
mímica, a linguagem gestual, etc., não podem ser senão auxiliares da linguagem;
ou seus substitutos precários no caso, por exemplo, dos surdos-mudos. A visão e
a audição não são linguagem de modo algum: são somente receptores sensitivos seus.
2. A língua é um ente concreto ou abstrato?
Conforme a nossa gramática, deve ser substantivo concreto. Do pondo de vista da
Metafísica, como descrever a língua? Enquanto ente, deve possuir uma essência.
Assim a língua portuguesa possui uma essência x, enquanto que a língua inglesa
possui uma essência y. E como distinguir a essência do brasileiro enquanto
dialeto do português lusitano? Onde entram as variantes linguísticas?
RESPOSTA. Divido-a.
a) Cuidado: gramaticalmente, abstrato não é sinônimo de imaterial.
Assim, são concretos os anjos, as almas, e até os entes mitológicos; abstratos
são os nomes de ação e os de qualidade (ida,
luta, resolução, etc., e bondade,
humanidade, brancura, etc.)
b) A linguagem (e todas as línguas são linguagem) é um todo artificial de ordem e de composição
com um fim: significar os conceitos da alma.
c) Mas as línguas não têm essência própria, porque são todos artificiais. Isso de que cada língua tem uma
essência vem do Positivismo, e é indefensável.
d) Quanto a língua, dialeto, etc., vou dar-lhe as conclusões a que chego.
• O que faz que o falado
no Brasil e o falado em Portugal sejam a mesma língua? Ou serão dialetos da
mesma língua? E o que se fala no nordeste e no sul do Brasil? São pura e
simplesmente a mesma língua? Ou serão falares de uma mesma língua? E façam-se as
mesmas perguntas a respeito do inglês, do russo, do espanhol, do francês... É
questão em torno da qual muito já se escreveu e debateu, e à qual, a meu ver,
só rara vez se respondeu satisfatoriamente.
•
Toda e qualquer língua é, propriamente, um
todo composto
por determinados sons e palavras que se combinam gramaticalmente para
significar nossas concepções mentais e comunicá-las aos demais, o que implica uma
compreensibilidade geral. Em outras palavras e como dito, é
um todo artificial de ordem e de
composição. É porém uma espécie tal de todo de ordem e de composição,
que:
a) é sempre e mais ou menos rapidamente cambiante, ou por entropia e
desordem, ou por progresso;
b) poucos de seus falantes o têm de todo na mente, se se trata de suas
estruturas morfossintáticas; e nenhum nunca o tem totalmente, se se trata de
seu vocabulário. Em outras palavras, é um todo assimptótico.
Neste sentido, diga-se que o falado no Brasil pelas camadas
mais cultas é o que mais propriamente se pode dizer língua portuguesa, e que a
pequena diversidade fonética, vocabular e sintática que se dá pelo país afora
entre estas camadas constitui falares.
• Tratar-se-á pura e
simplesmente de línguas
diversas se implicarem algum grau de incompreensibilidade mútua. Podem todavia
dar-se línguas que não o sejam pura e simplesmente, mas segundo algo ou
enquanto algo.
• Se se dá incompreensibilidade na fala em algum grau, mas a
língua escrita permanece substancialmente a mesma – o que sucede, por exemplo,
entre o português do Brasil e o de certas regiões de Portugal –, então há de
dizer-se que só se trata propriamente da
mesma língua segundo a escrita, língua
de que tais linguagens orais distintas e em algum grau mutuamente
incompreensíveis podem ter-se como dialetos.
• No interior de umas mesmas fronteiras pode haver não só
diversidade de linguagens (faladas) em algum grau mutuamente incompreensíveis,
mas também uma espécie de língua franca,
que alguns falam e todos entendem e talvez escrevam. Em situações assim,
costumam-se considerar aquelas linguagens dialetos
com respeito à língua franca, que
não se diz língua senão precisamente enquanto é franca.
• Pode dar-se, ainda, e dá-se de fato, que falantes de línguas
em algum grau mutuamente incompreensíveis as considerem ou dialetos de uma
mesma língua, ou até absolutamente a mesma língua – e isso sem língua franca
nem escrita que as unifiquem, mas por quaisquer razões raciais, históricas, políticas,
etc. Neste caso, portanto, tratar-se-á de dialetos
ou de língua tão somente segundo alguma(s) de tais razões.
• O caso mais complexo é o das chamadas “várias etapas” de uma
mesma língua. Com efeito, se se considera o português medieval, ver-se-á que
não só sua escrita não é para nós, falantes atuais do português, muito mais
compreensível que a do espanhol de hoje, mas também sua fala, provável ou
presumivelmente, não nos seria muito mais compreensível que a do espanhol
contemporâneo. Como não seria assim, se, além de conter palavras que não contém
o português atual, mas sim o espanhol contemporâneo,[1]
continha outros vocábulos,[2]
acidentes flexionais e torneios sintáticos também de todo desaparecidos do
português de hoje, mas substituídos às vezes por outros mais razoavelmente
semelhantes a seus correlatos atuais do espanhol?[3]
Em verdade, fases linguísticas tão diversas não podem considerar-se
propriamente a e da mesma língua
senão segundo um sentimento de
continuidade dos falantes atuais, sentimento devido a razões
históricas.
3. Parece-me que se a língua portuguesa, por exemplo,
possui uma essência determinada, então haverá uma pronúncia verdadeira (aquela
conforme à essência da língua): o grafema L sempre como consoante (/l/) e não
como semivogal (/w/); o T e o D sempre puros (/t/, /d/), sem chiados (/t∫/,/dʒ/); o O e o E sempre como /o/ e /e/ e não como U
e I respectivamente; de modo que a pronúncia realizada fora deste padrão (L
sempre consoante, T e D sempre puros...) não corresponderia perfeitamente à (essência da)
língua
portuguesa. Não encontrei em gramáticas o sotaque padrão do português
brasileiro pelo menos, supondo que a gramática possa prescrevê-lo.
RESPOSTA. Divido-a ainda.
a) Como já disse, a linguagem não tem essência própria, e as diferenças
entre as línguas são acidentais, assim como, analogamente, são acidentais as diferenças raciais entre os homens
ou entre os cães.
b) As diferenças fonéticas são ainda mais acidentais, se tal se pode
dizer, se se trata de diferenças em uma mesma língua.
c) Como explico na Suma Gramatical,
não há sotaque-padrão no Brasil, dado que há diferenças de sotaque entre as
mesmas camadas igualmente cultas.
d) A Gramática é antes a arte da escrita, e o bem falar decorre dela
reflexamente. A arte que rege mais propriamente o bem falar, em ordem à
Retórica, é a Eloquência.
e) Quanto à questão fonética, e de que é um fonema, grassa a mais
absoluta confusão entre gramáticos e linguistas. Mas de fato o assunto não é
nada simples. Exponha-se.
• Para dar um exemplo mais abrangente do
que quero mostrar, observe-se o seguinte quadro, em que se podem ver as
diferenças entre a pronúncia lisboeta, a paulistana e a compostelana atuais –
as duas primeiras no âmbito da língua portuguesa, e a última no âmbito da
galega – na leitura de uma passagem (I, 33) d’Os Lusíadas, de Luís de Camões.
Original
|
(Lisboa)
|
(São Paulo)
|
(Santiago de
Compostela)
|
Sustentava contra ele Vénus bela,
|
suʃtẽ’tavɐ
‘kõtɾɐ ‘elɨ
‘vɛnuʒ
‘βɛlɐ
|
sustẽ’tavɐ
‘kõtɾɐ ‘eli
‘venuz ‘bɛlɐ
|
susten’taβa ‘kontɾa ‘el ‘βɛnuz ‘βɛla
|
Afeiçoada à gente Lusitana,
|
ɐfɐjsu’aðaː
‘ʒẽtɨ
luzi’tɐnɐ
|
afejsu’adaː
‘ʒẽtʃi
luzi’tɐnɐ
|
afejθo’aðaː
‘ʃente
lusi’tana
|
Por quantas qualidades via nela
|
puɾ
‘kwɐ̃tɐʃ
kwɐli’ðaðɨʒ
‘viɐ ‘nɛlɐ
|
puɾ
‘kwɐ̃tɐs
kwali’dadʒiz
‘viɐ ‘nɛlɐ
|
poɾ
‘kantas kwali’ðaðez ‘βia ‘nɛla
|
Da antiga tão amada sua Romana;
|
dɐ̃’tiɣɐ
‘tɐ̃w̃ ɐ’maðɐ
‘suɐ ʁu’mɐnɐ
|
dãː’tʃiɡɐ
‘tɐ̃w̃ ɐ’madɐ
‘suɐ ho’mɐnɐ
|
dan’tiɣa
‘taŋ a’maða ‘sua ro’mana
|
Nos fortes corações,
na grande estrela, |
nuʃ
‘fɔɾtɨʃ
kuɾɐ’sõj̃ʃ
nɐ ‘ɣɾɐ̃dɨʃ’tɾelɐ |
nus ‘fɔɾtʃis
koɾa’sõj̃s
na ‘ɡɾɐ̃dʒis’tɾelɐ |
nos ‘fɔɾtes
koɾa’θons
na ‘ɣɾandes’tɾela |
Que mostraram na terra Tingitana,
|
kɨ
muʃ’tɾaɾɐ̃w̃
nɐ ‘tɛʁɐ
tĩʒi’tɐnɐ
|
ki mos’tɾaɾɐ̃w̃
na ‘tɛhɐ
tʃĩʒi’tɐnɐ
|
ke mos’tɾaraŋ
na ‘tɛra
tinʃi’tana
|
E na língua, na qual quando imagina,
|
i nɐ
‘lĩɡwɐ
nɐ ‘kwaɫ
‘kwɐ̃du
jmɐ’ʒinɐ
|
i na ‘lĩɡwɐ
na ‘kwaw ‘kwɐ̃dima’ʒinɐ
|
e na ‘liŋɡwa
na ‘kal ‘kando jma’ʃina
|
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
|
kõ ‘pokɐ
kuʁup’sɐ̃w̃
‘kɾe ki’ɛ
ɐ lɐ’tinɐ
|
kũ ‘pokɐ
kohup(i)’sɐ̃w̃
‘kɾe ki’ɛ
a la’tʃinɐ
|
• Mas por que trago à baila o galego, que
é uma língua e não um dialeto do português? Porque importa sobremaneira no que
quero demonstrar. Veja-se, no quadro acima, o modo galego de dizer o /ç/ de “afeiçoada” (segundo verso): como /θ/ [afejθo’aða], ou seja,
como o zeta usado em grande parte da
Espanha para dizer, por exemplo, zorro.
É um
som de articulação interdental, fricativo e surdo, o mesmo que também é
representado, ainda em espanhol, pela letra c
quando seguida de e ou i –
exatamente como no galego (embora em certas regiões da Galiza também se diga,
como em português, como /s/). Pois bem, o que hoje é o fonema /θ/ no galego era dito
provavelmente /ts/ não só no galego-português (o que se considera a primeira
etapa do português), mas também ao menos em parte da etapa
seguinte, a do português “arcaico”, na qual o galego e o português se separaram
por razões geopolíticas. O som /ts/ era representado pela letra ç. Pois bem, como se julga sejam etapas
da mesma língua o galego-português, o português “arcaico” e o “moderno”,
pergunte-se: /θ/ é o fonema de que o antigo /ts/ era “realização” ou,
inversamente, /θ/ é “realização” de um antigo fonema /ts/? Com efeito,
ambos têm potência ou possibilidade de converter-se um no outro. Mas não parece
conveniente que uma coisa seja “modelo” de algo desaparecido antes de seu
surgimento, ou, o que é o mesmo, que algo seja “realização” de uma coisa
inexistente no momento em que se dá. Ademais, se alguém dissesse hoje entre nós
/tsorro/ para significar zorro
(raposo), provavelmente não seria de imediato entendido. Somos capazes de
entender que /tchia/ e /tia/ são a mesma palavra; mas não que o sejam /tsorro/
e /zorro/. Que conclusão tirar desse impasse?
• Conclusão outra que a da Linguística.
Vejamo-la passo a passo, a começar do mesmo exemplo acima, o de zorro.
• Suponhamos que a certa altura do século
XV já coexistissem, na Galiza, /tsorro/ e /θorro/, e, em Portugal, /tsorro/ e /zorro/,
escritos sempre “çorro”. Transcorreu o tempo, porém, e na Galiza desapareceram
tanto /tsorro/ como o ç para
representar na escrita o /θ/ de /θorro/; passou-se a usar em seu lugar o z. Agora, porém, na mesma Galiza, zorro passou-se a dizer tanto /θorro/ como /sorro/,
sendo este /s/ também representado, na escrita, por z. Em Portugal, por seu lado, ainda naquela altura do século XV, desapareceram
igualmente /tsorro/ e a letra ç, e
passou-se a dizer exclusivamente a palavra como/zorro/ e a escrever zorro. O que sucedeu?
• Na
Galiza, suposta certa baliza fincada algo arbitrariamente no tempo, havia um
fonema único para dizer o som inicial de zorro:
/ts/, escrito ç. Passou o tempo, e por razões complexas /ts/ se transformou em /θ/ em parte da região galega; mas chegou
o momento em que /θ/ veio a substitur /ts/ de todo, ao passo que o ç com que se escrevia também foi
substituído de todo por z. É patente:
neste caso, o “modelo” é /ts/, e /θ/ é uma variação ou
transformação – não “realização” – daquele “modelo”, transformação que, se por
certo tempo conviveu com o “modelo”, acabou porém por substituí-lo
completamente. Quanto à substituição de ç
por z neste caso, deve-se a razões
históricas: já estava a Galiza integrada à Espanha. Mas veja-se o mais
importante aqui: agora, sempre na Galiza, a mesma letra z serve de representação tanto para /θ/ como para /s/, sendo /s/ uma
transformação do “modelo” /θ/.
• Ponha-se agora,
hipoteticamente, que a certa altura da história da língua portuguesa a vogal
átona, pós-tônica e final de dorme se
dissesse /i/ por todos os lusófonos, e que depois tenha passado a dizer-se, concomitantemente, também /ɨ/ (em Portugal) e /e/ (no Paraná,
talvez por influência do espanhol). Que se passou? Passou-se que /i/ se
transformou tanto em /ɨ/ como em /e/, mas não desapareceu, e
permaneceu na boca da maioria dos brasileiros. Coexistem, assim, o “modelo” e
duas de suas transformações, todas três escritas como sempre o fora /i/: e.
• Vê-se pois que os
“modelos” fonéticos não são ideias platônicas, sem existência material, das
quais participassem umas “realizações”; mas são, eles mesmos, fonemas
materialmente realizados, enquanto aquelas “realizações” têm, do ângulo
fonético mais concreto, o mesmo estatuto que seus “modelos”. Com isso, no
entanto, ainda não se responde a uma interrogação: como é possível, então, que
não só os lusófonos brasileiros que dizem /tchia/ entendam perfeitamente os que
dizem /tia/, e vice-versa, mas, ainda, todos considerem as duas formas de dizer
variações de um mesmo fonema? É possível responder a esta interrogação
diferentemente de como o faz a Linguística, ou seja, sem recorrer a um “modelo”
equidistante de todas as suas “realizações”?[5]
• Sim, é
possível, e é a única resposta correta: fatos como este sempre se devem a uma
mescla de diversas razões. No caso de tia,
há três razões principais para dar-se o que acabamos de ver. Com efeito, os
lusófonos brasileiros entendem-se perfeitamente aqui:
α. porque /tchia/, que é uma transformação
de /tia/, coexiste com seu “modelo”;
β. porque sempre se usa concomitantemente a
seu “modelo” em contextos fonéticos idênticos: /tchia/ e /tia/, /Tchiago/ e
/Tiago/, /tchimbre/ e /timbre/ – é a parte de razão que cabe à Linguística, o
que, porém, sempre esteve de algum modo suposto nas gramáticas anteriores ao
surgimento desta;
γ. porque ambos os fonemas se dizem no
mesmo país, na constante comunicação entre os falantes das duas maneiras;
δ. e importantíssimo: porque são ambos
representados na escrita pela mesma letra t,
o que é a causa principal do que
se diz em β supra.
• E agora temos perfeitas
condições para responder com segurança a uma segunda pergunta, subjacente desde
o início: por que /tch/ e /t/ não só podem entender-se, pela mesma Linguística,
como “realizações” de um /t/, mas se
representam igualmente por t na
escrita? Precisamente, porque /tch/ é uma transformação de /t/ – e, como se sabe,
“antiguidade é posto”; e porque o /t/ não desapareceu no tempo nem no espaço,
ao contrário do que se deu como o antigo /ts/ de zorro.
• Pois bem, o que distingue concretamente, na fala, tia de pia não é um fonema ideal, mas alternadamente o fonema /tch/
e o fonema /t/, que servem para o mesmo por diversas razões combinadas, das
quais resulta certo senso de que /tch/ deriva de /t/. Daí que, se em um sentido
/tch/ e /t/ são por igual fonemas e servem para distinguir (por exemplo, de
/p/), em outro sentido o fonema /t/ é, digamos, mais fonema que /tch/, porque é sempre de algum modo em referência
a ele que este cumpre seu papel. Ou seja: /tch/ e /t/ são analogamente fonemas,
mas é antes a /t/ que se atribui o termo fonema. E é por isso, e somente por
isso, que os que interessam à Gramática são os que se dizem anterior e mais propriamente fonemas.
• Imagine-se agora, porém, que num dia
futuro o /t/ desaparecesse da fala do português tal como um dia desapareceu o
/ts/. Que poderia acontecer? Se estivéssemos no período em que se deu o
desaparecimento do /ts/, ou seja, em meio às mesmas condições concretas (entre
as quais, ausência de Gramática e de ensino formal da língua), perder-se-ia a
referência de /tch/ a /t/, e provavelmente esta letra desapareceria em
benefício de outra para os mesmos contextos fonéticos. Mas não estaríamos em
tal período, senão em outra época, prolongamento da atual, quando o latim já
deixou de ser, há muito, a língua de cultura, e o português o substituiu
totalmente no âmbito lusofalante e é ensinado, ou bem ou mal, segundo
determinada Gramática. Logo, se tal se desse, se viesse a desaparecer
totalmente da fala o /t/ de tia,
etc., então provavelmente permaneceria a letra t para representar, na escrita, tão somente o fonema /tch/, como
uma espécie de memória do fonema de que foi transformação o fonema que agora o
substitui de todo. Continuaria assim o /tch/, de certo modo, a referir-se ao
/t/, e este, de certo modo, ainda seria mais
propriamente fonema que /tch/.
• Aí está mais um exemplo da importância
da escrita. Mas concluo-o tão só de uma mera hipótese como a do desaparecimento
do fonema /t/? Não, de modo algum: é tão somente pela escrita que podemos dizer
que o português de certas regiões de Portugal e o do Brasil são a mesma coisa.
Retome-se o quadro acima em torno da pronúncia diversa de uma passagem d’Os Lusíadas, e ver-se-á que já há quase
tanta distância entre o português (mais escolarizado) de São Paulo e o
português (mais escolarizado) de Lisboa quanto a que há entre ambos e o galego.
Imagine-se agora a distância que medeia entre o português (mais escolarizado)
do Brasil e o português mais geral de Trás-os-Montes, de Dão-Lafões, do Alentejo. É que, a partir de certo
ponto, as transformações fonéticas em certa zona de uma língua acabam por
acarretar algum grau de incompreensibilidade para as demais zonas. Assim,
sobretudo se falado rapidamente, o português de certas regiões de Portugal, por
sua radical consonantização, soa bastante incompreensível para os brasileiros, apesar
de que o inverso nem sempre é verdadeiro. Com efeito, tal português lusitano
está para o brasileiro um pouco como o holandês está para o alemão, e
vice-versa.
• Mas a Linguística diz mais: para ela,
os fonemas existem antes de tudo para servir de traços distintivos entre as
palavras, e secundariamente para formá-las. A verdade é o contrário: os fonemas
servem antes de tudo para formar as palavras, e secundariamente para distingui-las.
Pois é claro que quem forma palavras não as quererá formar iguais, porque se o
fizesse já não formaria senão uma só e única palavra. Mas quem forma palavras
quer antes de tudo formar signos de seus conceitos mentais, e a distinção entre
tais signos não é senão decorrência disso.
• Isto, porém, parece certo do ângulo dos
que formam as palavras. Mas o será dos que as usam? Sê-lo-á mais ainda, porque,
se assim não fosse, não haveria os homófonos,
ou seja, palavras que, conquanto sejam signos de conceitos ou ideias diversas,
são ditas todavia de modo exatamente igual. Exemplo famoso: são – terceira pessoa do plural do
presente do indicativo do verbo ser; são – adjetivo sinônimo de “sadio”; e são – apócope de “santo”. Há mais,
porém, e comecemos por um exemplo: também se tornaram homófonas, em grande
parte do Brasil, mal e mau. Este exemplo é posto em
geral por linguistas e gramáticos entre os casos de “realizações” diversas de
um mesmo fonema. Como vimos, porém, ambos são analogamente fonemas, embora o /l/,
pelas razões indicadas, seja neste caso mais propriamente fonema que o /u/. E,
se dizer /cau/ em lugar de /cal/ não é contrário à função fonêmica de
distinguir palavras, dizer /mau/ em vez de /mal/, sim, é-o, e de fato gera não
pouca confusão.
4. A língua pode ser dividida em 2
modalidades: falada e escrita? Ou ela é essencialmente fonética (sons como
signos) como preferia Saussure?
RESPOSTA. As teses de Saussure são não só confusas, mas nefastas. Seu
objetivo principal é duplo: desprezar a escrita, e negar a necessidade da
Gramática (e as duas coisas estão interligadas, porque como vimos a Gramática é
antes a arte da escrita). O que não quer dizer que a linguagem falada não tenha
anterioridade com respeito à escrita, até porque a linguagem escrita é signo da
falada, enquanto esta é signo das concepções mentais.
5. Como definir “palavra”, “vocábulo” e
“termo”? Napoleão Mendes os define bem? As palavras seriam unidades de que se
compõe a linguagem? Neste caso, os morfemas também não seriam unidades? O
vocábulo seria a palavra considerada materialmente, ao passo que o termo seria
a palavra considerada em relação a uma ideia? Neste caso, como conciliar esta
definição com palavras que aparentemente não se vinculam diretamente a nenhuma
ideia específica como “se”, “não”, da mesma forma que palavras como “cachorro”
e “gato”?
RESPOSTA. Divida-se outra vez.
a) No âmbito gramatical, palavra, vocábulo e termo podem tomar-se como
sinônimos. Parecem-me artificiais as distinções que se fazem entre elas.
b) A palavra é a unidade significativa mínima da Linguagem.
c) As palavras (ou vocábulos ou termos) se dividem em:
• categoremáticas, as que
significam por si como signos de substâncias ou de acidentes;
• sincategoremáticas, que
só significam junto a outras.
6. Na Dúvidas 11 – Questões Gramaticais, o senhor afirma que a
Linguística não possui método científico propriamente dito, e que por seu
sujeito não se distinguir da parte teórica da Gramática não pode se distinguir
desta. Como então bem definir a Gramática como ciência (incluindo seu método
científico) e como arte? Napoleão Mendes expõe no parágrafo 13 da sua Gramática
Metódica da Língua Portuguesa: “Denomina-se gramática a reunião ou
exposição metódica dos fatos de uma língua.” Parte deste método científico da
Gramática entendo que seria, como ele faz, dividir a Gramática em três grandes
partes (da língua): Fonética, Morfologia e Sintaxe. Quer dizer, analisar
aspectos diferentes de um mesmo objeto, a língua (portuguesa).
RESPOSTA. Por partes.
a) A Gramática não é ciência, mas arte, e, como toda e qualquer arte,
tem uma parte teórica ou especulativa, assim como a arte da Música tem tratados
de harmonia, de composição, etc.
b) Gramática não é o que diz Napoleão, mas é a arte de dirigir a escrita para
que esta atinja seus fins com ordem, com facilidade e sem erro. O
que ele diz é no máximo uma parte da parte especulativa ou teórica da
Gramática.
c) A Gramática divide-se em Fonética/Ortografia, Morfologia e a Sintaxe,
embora, ao fim e ao cabo, se possa falar também, em certo sentido, de
Morfossintaxe.
7. Se a língua sofre mudanças ao longo do
tempo, é justo que a Gramática seja ciência, haja vista que seu objeto não é
fixo, e sim esteja mudando?
RESPOSTA. A Gramática não é ciência, como dito, mas arte.
8. Na Dúvidas 38 – Sobre as Artes em Geral e as Artes do Belo, o
senhor diz ser a Gramática a arte da escrita. Na Suma Teológica (I-II,
q. 56, a. 3), São Tomás diz: “[...] o hábito da gramática nos dá a prática de falar
corretamente [...]” (sicut per habitum grammaticae habet homo facultatem
recte loquendi). A Literatura seria a ciência da escrita, conforme
expõe Paulo Faitanin em http://www.aquinate.net/portal/Tomismo/Filosofia/a-filosofia-da-linguagem-tomista.php
RESPOSTA. Divido-a.
a) E di-lo perfeitamente Santo Tomás, porque se aprende a falar
corretamente quando se tem o hábito gramatical da escrita.
b) Dizer que a Literatura é a ciência da escrita é incorrer em erro, ao
menos se se usa a palavra Literatura nos sentidos atuais e dicionarizados. Se
tomada como sinônimo de Poética, é a arte que rege a escrita (ou a fala, no
teatro) a induzir ao bem mediante o belo e o sentimento. A definição é de
Aristóteles e de Santo Tomás. Ademais, como o dizem estes mesmos, a
Literatura/Poética é parte potencial
da Lógica. Em outro sentido, é o conjunto das obras literárias ou poéticas. E
em outro ainda, mais antigo, é o ensino das primeiras letras. – Em latim é que, sim,
se encontra a definição referida, mas como sinônimo justamente de Gramática: litteratúra, ae = “arte de escrever, gramática; escrita; alfabeto;
conhecimentos literários, literatura; instrução, saber, ciência; obras
literárias” [< littera, ae = “letra, caráter de escrita”]. Mas é
princípio estabelecido que não se pode ou não se deve tomar o étimo pelo
sentido atual: como diz e exemplifica Santo Tomás em seu Comentário ao Perihermeneias, “aquilo a partir de que se impõe um
nome para significar é distinto do que o nome significa; assim como o nome lapis [= pedra] se impõe a partir de lesio pedis [= ferimento do pé]...”.
9. Sobre “poesia”, “literatura” e “arte literária” (cf. Dúvidas 38 – Sobre
as Artes em Geral e as Artes do Belo), gostaria de uma explicação mais clara e
organizada, pois ainda não compreendi corretamente. Ferrater Mora, no
Dicionário de Filosofia, define a poesia em contexto aristotélico: “Assim, a
poesia pode ser definida, em geral, como “imitação” (representação) das ações
humanas por meio da linguagem”. Esta mesma definição é mantida no Tomismo? O
professor Massaud Moisés parece apreciar mais não esta definição aristotélica
de “poesia”, mas o conceito de “poesia” conforme uma vertente romântica, por
envolver ideias de subjetividade, mundo interior, eu, egocentrismo, sentimentos
etc. O que seria o fim “lógico-significativo” da Poética e “objeto imediato”?
RESPOSTA. Sim, é mantida no tomismo. Não confundir, todavia, poesia com
Poética: aquela é o que diz Ferrater, enquanto esta é a arte que a rege. Mas
atenção ainda: uma coisa é o objeto próximo de determinada arte; e o da Poética
é o dito por Ferrater, assim como o objeto imediato da Música é a imitação da
natureza mediante melodias. Mas ambas a Poética e a Música têm, analogamente, o
mesmo fim ou objeto mediato: induzir ao bem mediante o belo e o sentimento. Agora,
por partes.
a) O Romantismo é tudo menos ciência, e portanto não é capaz de dar
definições científicas de nada.
b) O fim lógico-significativo é, como dito, induzir ao bem mediante o
belo e o sentimento.
10. Costumam dividir a Gramática em normativa e descritiva. Não raro na
faculdade, ouvia e percebia um certo preconceito com relação à “Gramática
Normativa” e um certo apreço pelo descritivismo, como se a Linguística fosse
boa para com todos por respeitar a diversidade, e a Gramática fosse má por
querer se impor autoritariamente sobre as variedades linguísticas
desprestigiadas socialmente. A Gramática Normativa imporia normas para serem
obedecidas pelos falantes, ao passo que a Gramática Descritiva apenas apresenta
os diversos falares sem discriminações. Napoleão Mendes, porém, na sua
Gramática Metódica da Língua Portuguesa (parágrafo 19) não realiza tal
distinção, aliás as coloca como equivalentes: “Esta última, isto é, a gramática
expositiva, que também se chama normativa, descritiva ou prática,
é a que vamos estudar com relação à nossa língua [...]”. Esta colocação de
Napoleão Mendes se justificaria na medida em que a língua tal como apresentada
na Gramática Normativa é a verdadeira (correspondente à essência da língua) e a
que deve ser seguida, ao passo que a Gramática Descritiva equivale a Normativa
na medida em que os usos da língua divergentes daqueles da norma padrão não
devem ser levados em conta gramaticalmente, logo a descrição pertinente que se
faça da língua será a do uso conforme a Gramática Normativa? Ou ainda, se se
vai fazer uma descrição da (gramática da) língua, se deve fazer não a de
variações linguísticas (não correspondentes à essência da língua), mas a do uso
da norma padrão (correspondente à essência da língua), logo Gramática Normativa
e Descritiva se equivalem (conforme Napoleão Mendes)?
RESPOSTA. Por partes outra vez.
a) Tal divisão é, digamos, torta. O melhor é dividi-la em parte
especulativa e parte normativa ou artística propriamente dita.
b) Quanto ao fato de a Gramática ser antes de tudo normativa, decorre do
fato mesmo de ela ser arte e não ciência.
c) Na parte especulativa ou teórica da Gramática, deve descrever-se a
língua culta ou dos bem falantes, em ordem a seus fins artísticos e normativos.
Descrever as variantes incultas não pode deixar de servir a uma de duas coisas:
• mostrar pelo errado como há de ser o correto, assim como na Lógica
aristotélica há um tratado (As Refutações
Sofísticas) em que se estudam os sofismas em ordem a não incorrer neles no
âmbito da ciência;
• ou satisfazer curiosidades. – Obviamente, isto último não pode
interessar a um aristotélico-tomista, porque não interessa efetivamente, no
âmbito das disciplinas racionais, senão o científico (que não se pode alcançar
com tais acidentalidades) ou o artístico (que no caso da Gramática não se pode
alcançar senão a partir da linguagem culta).
11. Segundo me consta, a Sociolinguística tem crescido desde os anos 70, e
os sociolinguistas – creio que em sua maioria movidos consciente ou
inconscientemente pela visão de mundo marxista – têm adotado um conceito de
língua como fenômeno pragmático, ou seja, no lugar de ela ser um sistema
estruturado, ela seria uma “prática social”, daí os sociolinguistas não
estudarem a língua enquanto estrutura (morfemas, crase etc), mas o seu uso
(para veicular ideologia, discriminar socialmente, expressar diversidade
cultural etc). Penso que confundindo os conceitos de langue e parole
enunciados por Saussure, assumem que a língua é o uso que o
falante faz das palavras e normas da língua (ente estruturado) mesma –
daí sua ilogicidade – e assim não veem a língua como sistema homogêneo (p ex, o
fonema /t/ deve ser sempre puro; artigo e substantivo devem concordar em número
e gênero etc), e sim como um sistema heterogêneo (que compreende como
aceitáveis e igualmente corretos os fonemas /t/ e /t∫/, “os
peixes” e “os peixe” etc), causando a impressão do “tudo vale”. Assim seu foco
é estudar (observar, registrar, descrever) principalmente a língua falada (já
que a língua escrita é mais planejada, revisada etc), que, a exemplo das
línguas vulgares no tempo de Dante frente ao latim (língua culta), varia de
geração para geração. O que o senhor pensa a respeito da Sociolinguística?
RESPOSTA. Não é ciência nem parte de nenhuma ciência, nem é parte
especulativa de nenhuma arte.
14. Pode-se dizer que uma língua se corrompe? Com certeza, no mínimo que se
transforma. Os evolucionistas alegarão que toda e qualquer língua está constantemente
evoluindo. A corrupção da língua se iniciou na Torre de Babel ou desde o
momento em que Adão perdeu a justiça original de modo que a língua adâmica
(hebraico? árabe?) foi se corrompendo?
RESPOSTA. Toda língua tende à entropia (ou seja, à desordem e à
corrupção) justamente porque, no interior das fronteiras em que é falada,
sempre é mais estendido o linguajar inculto, que acaba por empurrar até os mais
cultos ao erro e à corrupção linguística. Por isso é que o bem falar quase
sempre é algo reflexo: decorre do aprendizado da Gramática (que, como visto, é
a arte da escrita), da leitura de bons autores e do exercício da mesma escrita.
• Não confundir, porém, corrupção ou desordem com mudança: porque as
línguas também podem mudar para melhor, como se deu com o grego ático com
Platão e com Aristóteles.
• Toda e qualquer corrupção linguística, porém, contraria o fim precípuo
da linguagem: a intercomunicação dos homens no espaço e no tempo.
• Mais: a própria diversidade das línguas contraria este mesmo fim,
porque, como dizia Aristóteles, os que falam línguas diferentes não podem
conviver bem entre si.
• Por fim, e como já disse numa resposta a algum outro aluno, não tenho
hoje a menor condição de responder com segurança e ciência acerca do episódio
da Torre de Babel; tal resposta requer uma competência exegética quanto a este
ponto que pelo menos ainda não adquiri. Estou certo, no entanto, de que a
diversidade das línguas se deve à sua tendência à entropia, e de que esta
tendência se deve a uma corrupção ou desordem da própria natureza humana.
[1] Por exemplo, “lo” (neutro) = lo, “elo” = ello (isso), “esto” = esto (isto), “mentre” = mientras (enquanto), “pero” = pero (mas), etc.
[2] Uso indiferentemente palavra ou vocábulo para denominar a unidade significativa mínima da linguagem.
[3] Em verdade, o português medieval conserva-se muito mais no
galego atual. A título de exemplo, vejam-se os escolhos que uma cantiga cortesã
do português medieval apresenta a nós, falantes e leitores do português
hodierno: “Ai, mia senhor, veen-me conselhar /
meus amigos, como vos eu disser: / que vos non servia, ca non m’é mester, / ca
nunca ren por mí quisestes dar; / pero, senhor, non m’én quer’eu quitar / de
vos servir e vos chamar senhor; / e vós faredes depoi-lo melhor. // E todos
dizen que fiz i mal sén, / ai mia senhor, des quando comecei / de vos servir; e
non os crerei / mentr’eu viver, nunca, por ũa ren: / ca, mia senhor, non me
quitarei én / de vos servir e vos chamar senhor; / e vós faredes depoi-lo
melhor. // E máis me dizen do que me vos deu / por mia senhor: que mi fez i
gran mal. / Pois m’esto dizen, dizen-m’assí al: ‘Non a serviades, nen sejades
seu’. Por tod’esto non me partirei eu / de vos servir e vos chamar senhor; / e
vós faredes depoi-lo melhor. // E, mia senhor, conselha-me mui mal / quen mi o
conselha; mais farei-m’eu al”. Observem-se, ademais, não só palavras como
“mentre” e “pero”, que como já visto perduram de algum modo em espanhol (mientras e pero), mas palavras como “i”, “ca”, “non” e “ren”, que perduram de
algum modo em francês (y, car, non
e rien).
[4] Landeg White,
The Lusiads – English
Translation, Oxford, Oxford University Press, “Oxford World’s Classics”,
1977.
[5] O que, diga-se de passagem, está em flagrante contradição
com outro princípio da mesma Linguística: com efeito, como um “modelo” fonêmico
pode estar equidistante de todas as suas “realizações” se são escolhidos
precisamente dentre a multidão de sons da fala? Por isto e muito mais, não é
exagerado dizer que falta à Linguística um método de verdadeira ciência.