RESPOSTAS DO PROFESSOR NO CORPO DO E-MAIL
DO ALUNO
Professor,
comecei a ler algumas das obras indicadas (Analíticos Posteriores II é bem
difícil) nas bibliografias e senti a necessidade de fazer algumas
perguntas a fim de saber se estou raciocinando corretamente ou não a
respeito do conteúdo dado. Também gostaria de perguntar como o ambiente
filosófico contemporâneo lida com as matérias que foram tratadas nas aulas até
aqui.
RESPOSTA. Eu talvez não tenha sido suficientemente claro. Não lhes
recomendei que lessem agora as obras indicadas, até porque o curso visa
precisamente a dar-lhes o instrumental necessário para lê-las. As obras
indicadas devem ser lidas ao fim do curso. E ainda assim cuidado, porque, como
digo abundantemente ao longo das aulas, não se devem ler muitas obras de
Aristóteles diretamente, sobretudo as mais obscuras (e os Analíticos Posteriores talvez sejam a mais obscura), senão que se
devem ler os Comentários de S. Tomás a elas. O gênio do Aquinate foi capaz de
desentranhar o sentido do conjunto da obra do Estagirita, a qual nos chegou em
textos muitas vezes enigmáticos, lacunares, elípticos.
1) Pela aula
3 cheguei à conclusão de que o ente é aquilo que é ou que tem ser, conforme foi
dito, e de que a essência é aquilo que me permite definir o que é este ou
aquele ente em particular. Por exemplo: O que é este ente chamado homem? Está
correto tal raciocínio?
RESPOSTA. Sim, ente é o que é,
mas, como se verá ao longo do curso, o único ente a que se pode atribuir isso simpliciter é Deus.
Os demais, mais que serem o que é, têm
ser por participação. Por seu lado, essência ou quididade é o que se dá
como resposta à pergunta o que é, quid sit ou quid est. E o que se dá como resposta a esta pergunta é a definição
da coisa, como verá nas aulas. Assim, a essência ou quididade de homem é expressa
por sua definição: animal racional.
2) Nos
Analíticos Posteriores II Aristóteles afirma: “Assim, como
asseveramos, conhecer a essência de uma coisa é o mesmo que conhecer a
sua causa. Isto assim é, quer o sujeito simplesmente seja independentemente
de ser qualquer de seus predicados, quer seja um dos predicados;
por exemplo, ter a soma de seus ângulos igual a dois ângulos retos, ou
maior ou menor”. Confesso que não entendi por que ele afirma que conhecer a
essência de algo é equivalente a conhecer a sua causa.
RESPOSTA. Além de recomendar-lhes que não leiam agora tais obras
aristotélicas, e de que leiam antes os Comentários tomistas a elas, recomendo
ainda que tenham cuidado com as traduções. Esta não me parece muito boa. Pois
bem, em toda esta passagem dos Anal.
Post. (89b23-90a
35), Aristóteles trata de duas coisas essenciais:
a) as perguntas que se podem fazer a respeito de um ente, e que são
quatro: quia (que algo é); propter quid (por que causa); an sit ou si est (se é ou se existe); quid
sit ou quid est (o que é);
b) o que é o termo médio da demonstração, que é o que dá propriamente a
causa de ser (ou do modo essencial de ser) da coisa, e até do próprio ser da
coisa.
E, quando diz que conhecer sua essência é conhecer sua causa, Aristóteles
quer dizer que (di-lo agora Santo Tomás) “a pergunta o que é [que requer por resposta a essência] e a pergunta por quê [que requer por resposta a
causa] remetem ao mesmo sujeito, ainda
que difiram na noção [grifo meu]. Daí que, quando se busca por quê, se busca o que é o meio [ou termo médio]”.
Pois bem, trato disto aprofundadamente ao longo das aulas 3-10.
3)
Tornou-se recorrente no mundo contemporâneo afirmar ser impossível conhecer a
essência das coisas, acho que isso começou com Kant ao dizer que a coisa
em si mesma é incognoscível. Pelo pouco que já estudamos até aqui, qual
seria o erro da fenomenologia kantiana e seus partidários?
RESPOSTA. O erro principal do kantismo é exatamente este: afirmar que
não conhecemos a coisa em si, o númeno, mas tão somente seu fenômeno, ou seja,
o que dela é captado segundo nossos
conceitos a priori. Pois bem, se não
podemos conhecer a coisa em si, daí se conclui que também a mesma tese kantiana
não atinge o númeno, a coisa em si das relações entre realidade extramental e
intelecto. Ou seja, também ela é resultante de ideias a priori, razão por que não se pode dizer verdadeira – se se
considera que a verdade, como o direi em algumas aulas, é uma relação de
adequação entre o intelecto e a coisa.
4) Outros filósofos creio que também herdeiros de Kant, tentaram criar
cada um a seu modo, filosofias de viés hermenêutico/linguístico tais com
Wittgenstein, Heiddeger e Gadamer. Em que erram as "filosofias da
linguagem" contemporâneas no que tange às noções de ente e essência?
RESPOSTA. São erros de aparência diversa, mas de fundo arraigadamente
kantiano, ou husserliano. Mas Heidegger tentou dar um passo mais, e criticou a
filosofia ocidental por ter-se esquecido do ser, em benefício tão somente do
ente. À parte os erros próprios deste filósofo quanto a estes mesmos temas,
poder-se-ia conceder isso que diz, mas com a seguinte ressalva: diz ele que leu
inteira a Suma Teológica de S. Tomás.
Se o fez, porém, não a entendeu, porque obviamente a Metafísica tomista é-o
exatamente do ser: como diz o
Aquinate, o ser (ou ato de ser) é o que há de mais íntimo aos entes, e é a
atualidade não só da essência, mas de todos os atos, incluídas as mesmas
formas. Também disto falo bastante no curso.