quarta-feira, 24 de junho de 2015

As ideias e a primeira operação do intelecto (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


PERGUNTAS DO ALUNO

Vou dizer algo que, se estiver errado peço que me corrija.
A primeira operação simpliciter nunca é errada nem falsa, mas visto que em verdade, tampouco há operação humana perfeita, a idéia que a primeira operação produz pode ser pouca clara, como diz, por exemplo, o P. Garrigou-Lagrange e eu até hoje entendo.
Se alguém elaborar o conceito de homem "bípede implume", não elaborou uma realidade, mas idealizou uma imagem; não se trata de erro, mas de possível confusão ou fantasia a respeito do homem "animal racional" assim já conceituado.
Então a deformação da realidade dessa primeira operação não foi cometida senão per accidens: ou por intromissão da intenção de um juízo imaginativo, ou seja por atribuição de conceito a algo de que não é conceito da realidade física, mas de uma possível fantasia. Assim, "se digo "homem: quadrúpede imortal", tal "conceito" só é falso porque pressupõe, acidentalmente, o juízo falso "o homem é um quadrúpede imortal"; e, se atribuo "figura geométrica de quatro lados" a um triângulo, falseio o conceito por atribuí-lo a uma figura geométrica de que não é conceito."
Mas o acidental do «quiditativo» é resolvido adiante porque a idéia está por tomar corpo e ser melhor definida no juízo.
Diria que também não é falso o "conceito" proposto para contestar realidades menos certas que as da geometria, e até «outras».
Vão ser somente a operações seguintes do espírito a pôr ordem do certo ou errado ou a coerência do justo ou falso nessa operação mental.
Não é por isto que elas existem e se completam?
Perdoe-me se insisto em pensar que a confusão de qualquer idéia, mesmo as platônicas, resolvem-se nas operações intelectivas seguintes.
Diga-me por favor se e onde erro. Obrigado.


RESPOSTAS DO PROFESSOR

Dividirei a resposta em duas partes. Na primeira, darei a estrita posição de Aristóteles e, especialmente, de S. Tomás. Na segunda, responderei a cada questão sua.


I) Assim como a visão nunca se engana per se quanto a seu objeto próprio (a cor), assim tampouco o intelecto se engana per se, em sua primeira operação, quanto a seu objeto próprio (as essências ou quididades, que podem ser quididades essenciais – “animal racional”, por exemplo – ou “quididades” acidentais – “que caminha sobre dois pés”, “que não tem penas”, “que tem brancura”, etc., por exemplo). Mas, assim como a visão se engana per accidens (ou quanto a seu objeto próprio, como, por exemplo, por daltonismo ou por causa da distância; ou quanto a objetos que não lhe sejam próprios, como quando vê chegar algo branco que lhe parece ser Pedro, mas é Paulo), assim também a inteligência dos incomplexos pode enganar-se per accidens (ou quanto a seu objeto próprio, como, por exemplo, por demência; ou porque atribui uma quididade a algo que não a tem, como se atribuísse “figura geométrica de quatro lados” a um triângulo; ou porque já se imiscui [o termo é de S. Tomás] na primeira operação uma falsidade da segunda operação ou juízo, como quando se dá “quadrúpede imortal” porque se supõe que “existe algum quadrúpede imortal” [e a presença do verbo indica que já se está na segunda operação]).
O erro de Platão, se se considera a primeira operação, também é acidental e também decorre, em última instância, de falsidade proveniente da segunda operação: porque, com efeito, se o homem é de fato “bípede (e) implume”, sendo “bípede” e “implume” acidentes próprios seus (assim como o são “social”, “falante”, etc.), há todavia falsidade em julgar “A definição de homem é bípede implume”.
Observação. Naturalmente, pode dar-se o conceito de homem de forma menos precisa: por exemplo, como “animal que pensa”. Mas isto não é errado nem confuso intelectualmente, apenas impreciso linguisticamente. Se, ao contrário, defino o homem como “animal que fala”, já per se não o defino, porque, em vez de dar-lhe sua diferença específica, dou um seu acidente próprio ou propriedade (“que fala”), que decorre precisamente de sua essência. Ora, “animal que fala” também o é o papagaio.  

II) Agora, divido suas questões.

a) “A primeira operação per se nunca é errada nem falsa, mas visto que em verdade, tampouco há operação humana perfeita, a ideia que a primeira operação produz pode ser pouca clara, como diz, por exemplo, o P. Garrigou-Lagrange e eu até hoje entendo.”

Resposta. De modo algum pode ser pouco clara nem falsa per se, só per accidens. Se digo “São Paulo” e “papa”, não digo per se nada errado nem confuso, senão que “São Paulo” e “papa” são perfeitos em sua ordem como objetos próprios da primeira operação. Se porém digo “São Paulo: papa”, dou per accidens uma falsidade, porque se imiscuiu uma falsidade da segunda operação (“São Paulo foi papa”), assim como, mutatis mutandis, o engano de Platão se deve à atribuição ao homem de uma definição que não expressa a sua quididade essencial total (lembre-se que a definição conveniente se dá pelo gênero próximo [animal] + a diferença específica [racional]). O P. Garrigou-Lagrange, como tantos outros tomistas, engana-se também aqui, contra a letra tão repetida de Aristóteles e de S. Tomás; e seu erro é, em parte, o mesmo que o de Maritain: o julgar que o conceito ou ideia da primeira operação não é o mesmo que definição.

b) “Se alguém elaborar o conceito de homem "bípede implume", não elaborou uma realidade, mas idealizou uma imagem; não se trata de erro, mas de possível confusão ou fantasia a respeito do homem "animal racional" assim já conceituado.”

Resposta. Creio já ter respondido a esta questão.

c) “Então a deformação da realidade dessa primeira operação não foi cometida senão per accidens: ou por intromissão da intenção de um juízo imaginativo, ou seja por atribuição de conceito a algo de que não é conceito da realidade física, mas de uma possível fantasia. Assim, "se digo "homem: quadrúpede imortal", tal "conceito" só é falso porque pressupõe, acidentalmente, o juízo falso "o homem é um quadrúpede imortal"; e, se atribuo "figura geométrica de quatro lados" a um triângulo, falseio o conceito por atribuí-lo a uma figura geométrica de que não é conceito."”

Resposta. Sim. Eu só não usaria aqui o termo “deformação”.

d) “Mas o acidental do «quiditativo» é resolvido adiante porque a idéia está por tomar corpo e ser melhor definida no juízo.”

Resposta. Creio se devam precisar as palavras. A ideia “não está por tomar corpo”. Ela já é perfeita: “figura geométrica de quatro lados”. Acidentalmente é que se atribui a algo de que não é ideia ou conceito ou definição. Por isso, o juízo não define melhor nem pior nenhum conceito ou ideia, senão que atribui com verdade ou com falsidade um conceito a outro: “O cão (primeiro conceito) não é racional” (segundo conceito)”, ou “O cão (primeiro conceito) é racional (segundo conceito)”. Mas “cão” e “racional” não podem ser definidos pela segunda operação, porque a definição é o próprio da primeira operação. A primeira define, a segunda julga.

e) “Diria que também não é falso o "conceito" proposto para contestar realidades menos certas que as da geometria, e até «outras». Vão ser somente a operações seguintes do espírito a pôr ordem do certo ou errado ou a coerência do justo ou falso nessa operação mental.”

Resposta. Outra vez, parece-me que há que precisar. A segunda operação não põe ordem aos conceitos; apenas atribui com verdade ou com falsidade um conceito a outro, um predicado a um sujeito.

f) “Não é por isto que elas existem e se completam? Perdoe-me se insisto em pensar que a confusão de qualquer idéia, mesmo as platônicas, resolvem-se nas operações intelectivas seguintes.”

Resposta. Não, não é por isso. As duas primeiras operações do homem são da razão enquanto intelecto, enquanto a terceira é da razão enquanto razão. Ora, as duas primeiras operações se ordenam à terceira, e por isso mesmo é que a terceira não visa a corrigir ou ordenar as anteriores, nem a segunda à primeira, senão que a primeira se ordena per se sem engano à segunda, enquanto a segunda pode ordenar-se com verdade ou com falsidade à terceira. Por isso, se se usam na terceira operação premissas falsas (e premissas sempre são juízos, ou seja, da segunda operação), então se terá uma conclusão (outro juízo) também falsa.
Observação 1. Quanto às ideias que levam seu nome, Platão não errava per se na primeira operação, até por impossível. Seu engano é científico ou metafísico, ou seja, trata-se de erro de terceira operação por premissas ou juízos falsos, como, por exemplo, “as essências são substâncias” (ou seja, subsistem separadamente).

Observação 2. Há que evitar a visão estritamente cronológica e sequencial das três operações, como se a terceira não se imiscuísse na segunda e a segunda na primeira; mas, como o vimos, só o fazem per accidens.