quarta-feira, 17 de junho de 2015

A Verdade; a Noção de Participação; as Categorias (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


RESPOSTAS DO PROFESSOR NO CORPO
DO PRÓPRIO E-MAIL DO ALUNO

1)  Se não estou errado, em alguma aula o senhor disse que o princípio de (não) contradição vem antes do princípio de identidade. Se assim for, entendo que sua afirmação não concorda com Jolivet:
“a) A consideração do ser em si mesmo dá origem ao princípio de identidade: “o que é é”, ou ainda: “o ser é idêntico a si mesmo”. – O princípio de identidade pode exprimir-se sob uma forma negativa: “o que não é não é”, ou ainda “uma coisa não pode ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista ser e não ser” (princípio de não-contradição ou, mais resumidamente, princípio de contradição), – ou, sob forma disjuntiva: “uma coisa é ou não é”, ou ainda: “entre ser e não ser não existe meio termo” (princípio do terço excluído).”1
Parece-me que “princípio de identidade” e “princípio de não contradição” são expressões diferentes para a mesma coisa, vista de pontos de vista diferentes.
Se realmente o senhor afirmou a diferença entre os dois, gostaria que explicasse por que este trecho de Jolivet estaria sem sentido.


RESPOSTA. Sim, discordo quanto a isto tanto de Jolivet como de Garrigou-Lagrange e outros muitos; ou melhor, eles é que discordam de Aristóteles e Santo Tomás, ao afirmar que o princípio da contradição é que deriva, como forma negativa, do princípio da identidade. Na verdade, Aristóteles nem sequer fala de princípio da identidade, que se formulou na Escolástica para simplificar o princípio da contradição e dar-lhe uma forma, digamos, positiva. Na filosofia moderna é que foi alçado à posição de princípio primeiríssimo, e o que dizem Jolivet, Garrigou e outros já é resultante da pressão exercida pelas doutrinas adversárias, como não me canso de dizer.
Diga-se aliás algo semelhante do princípio do terceiro excluído: formulado pelo mesmo Aristóteles como corolário do princípio da contradição, passou a ser considerado na filosofia moderna como princípio autônomo.
Veja-se pois que, estritamente falando, há apenas um primeiríssimo princípio da razão especulativa: o da contradição, enquanto os dois outros são ou uma simplificação sua ou um corolário seu.

2)    Não compreendi muito bem sua explicação sobre a verdade da aula 7. Gostaria que relacionasse os conceitos de “verdade ontológica” e “verdade lógica” com o que o senhor explicou:
1. A verdade ontológica exprime o ser das coisas, enquanto corresponde exatamente ao nome que se lhe dá, enquanto, por conseguinte, é conforme à idéia divina de que procede. As coisas, com efeito, são verdadeiras enquanto são conformes às idéias segundo as quais foram feitas. Conhecer esta verdade, quer dizer, conhecer as coisas tais quais são, é tarefa de nossa inteligência.
2. A verdade lógica exprime a conformidade do espírito às coisas, isto é, à verdade ontológica. Desde que eu afirme: “Estou ouro é puro”, enuncio uma verdade, se verdadeiramente a pureza pertence a este ouro, isto é, se meu julgamento está conforme ao que é.
Segue-se daí que a verdade lógica só existe no juízo, e jamais na simples apreensão. A noção “ouro puro” não exprime nem verdade nem erro. Neste exemplo, não pode existir verdade, a não ser que o espírito, afirmando uma coisa de uma outra, conheça seu ato e sua conformidade ao objeto, o que se produz unicamente no juízo.”2
Penso que o senhor tenha querido ensinar que a verdade lógica se encontra em nossa mente quando realizamos um juízo que esteja conforme ou adequado à realidade, enquanto que o ente é verdadeiro ontologicamente na medida em que participa da ideia no intelecto divino. Sendo assim, poderia explicar mais detalhadamente o que seria a participação do ser (ou ente) em Deus?

RESPOSTA. São duas coisas completamente diferentes: a questão da verdade (e, para compreendê-la ainda mais cabalmente, veja-se por exemplo a primeira questão das Questões De veritate, de S. Tomás); e a questão da participação.
a) Uma vez mais, Jolivet mostra-se ao menos confuso.
• A verdade é sempre uma adequação entre o intelecto e a coisa real; mas está antes no intelecto que na coisa.
• Diga-se, ademais, que a verdade está no intelecto recipiente ao modo deste mesmo recipiente, assim como a mesma quantidade de água se amolda a recipientes diversos (quadrado, bojudo, etc.) sem deixar, todavia, de ser a mesma água e na mesma quantidade.
• Se porém se trata do intelecto divino,  é este que é a medida das coisas; e, se se trata do humano, são as coisas que o medem.
• Pode até falar-se de verdade ontológica e de verdade lógica, mas tão só segundo o que explico na aula 12: as duas intenções intelectuais, a ontológica e a lógica. Peço-lhe a paciência de esperar, portanto, a aula 12 para entendê-lo mais perfeitamente, porque é assunto longo e complexo. Porém já posso dizer algo aqui: têm-se intenções primeiras ou ontológicas quando consideramos as coisas em si mesmas; e têm-se intenções segundas ou lógicas quando consideramos as próprias concepções ou ideias primeiras que temos das coisas. As intenções segundas tomam as intenções primeiras apenas como matéria sua, e são considerações não diretas, mas reflexas. E é em decorrência disto que se diz, como verá na aula 13 ou 14, que os elementos lógicos são entes de razão e que as relações lógicas são relações de razão.
• Quanto por fim aos dois exemplos de Jolivet: o primeiro, em que busca mostrar o que é a verdade ontológica, é simplesmente confuso; mas o segundo está definitivamente errado. A verdade expressa por “Este ouro é puro” (um juízo compositivo) responde a uma intenção primeira, tanto quanto se se dissesse “O homem é um animal racional” ou “Esta folhagem é verde”: julga-se de coisas em si mesmas.
• Exemplos de entes e de relações de razão (e de verdades lógicas): gênero, espécie, diferença; a espécie é-o de um gênero segundo uma diferença específica.
• Exemplos de entes e de relações segundo intenções primeiras (são verdades ontológicas): animal, homem, racional; o homem é um animal racional.
Observação 1 (importantíssima): os entes de razão de que se trata aqui têm sempre fundamento (remoto) in re, nas coisas mesmas, donde não implicarem falsidade.
Observação 2: Para cumprir o que digo na aula 1 do curso, ou seja, para seguir também a letra de Santo Tomás, transcrevo in extenso uma passagem do nosso Teólogo a respeito do assunto que nos ocupa aqui (no Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo I, dist. II, q. 1, a. 3):
«... às vezes aquilo que o intelecto concebe é uma semelhança da coisa que existe fora da alma, como o que se concebe do nome “homem”; e tal conceito do intelecto tem fundamento na coisa imediatamente, enquanto a coisa mesma, por sua conformidade com o intelecto, faz que o intelecto seja verdadeiro, e que o nome que significa tal intelecção se diga propriamente da coisa [trata-se da intenção ontológica].
Às vezes, todavia, o que o nome significa não é uma semelhança da coisa que existe fora da alma, senão que é algo que se segue do modo de entender a coisa que está fora da alma: tais são as intenções [segundas, lógicas] que nosso intelecto inventa, assim como o significado pelo nome “gênero” não é semelhança de nenhuma coisa existente fora da alma, senão que, porque o intelecto entende “animal” como dando-se em muitas espécies, lhe atribui a intenção de gênero; e, embora o fundamento próximo destas intenções não esteja na coisa, mas no intelecto, tem todavia fundamento remoto na coisa mesma. Daí que o intelecto que inventa estas intenções não seja falso. E algo semelhante se passa com todas as outras intenções que se seguem do modo de entender, como a abstração dos entes matemáticos e outros que tais.»    
b) Quanto à noção de participação. Podemos considerá-la por três ângulos:
• enquanto se trata de Deus como causa, é Deus, que é o próprio Ser subsistente por Si mesmo, quem participa – quem dá – o ser aos entes (por isso, aliás, é que é preferível chamar aos entes entes e a Deus Ser);
• enquanto se trata dos entes enquanto dizem relação a Deus, são os entes que participam do ser criado por Deus (ou seja, do ser como ato de todos os atos dos entes);
• considerando, contudo, ainda os entes com respeito a Deus, também se diz que participam de Deus enquanto o imitam, cada qual à sua maneira: o não vivente enquanto é (porque Deus é o próprio Ser); o vivente enquanto é e vive (e a vida de Deus é a vida por antonomásia); o vivente sensível enquanto é, vive e conhece (e Deus é o próprio conhecer, sobre todo e qualquer conhecer); e o homem e o anjo enquanto são, vivem, conhecem intelectivamente e querem, cada um a seu modo (e Deus é o Intelecto-Vontade de que todo intelecto e todo querer decorrem).

3)  Sobre as dez categorias do ser de Aristóteles, Jolivet afirma:
“Tais são, com a substância, as dez categorias (ou predicamentos) distinguidos por ARISTÓTELES. É contudo uma questão saber se cada um destes modos de ser constitui uma realidade acidental especial, ou se alguns não são mais do que aspectos diferentes de uma mesma realidade ou comportamentos puramente extrínsecos. As opiniões se dividem.”3

RESPOSTAS. Sim, as opiniões se dividem: de um lado os que defendem tal redução; do outro lado, os que não a sustentam – e sobre todos Aristóteles e o mesmo Santo Tomás. Como digo em alguma aula: as categorias do ente são dez, nem mais nem menos, assim como as causas são quatro, nem mais nem menos, como o diz S. Tomás, por exemplo, em seu Comentário à Física de Aristóteles, Livro II, Lectio V.
É verdade: às vezes Aristóteles não cita as dez categorias, mas tão somente oito. Isto porém é acidental e se deve ao estilo lacunar (e como que de rascunho) dos escritos aristotélicos que nos chegaram.

4) Gostaria que comentasse a possibilidade da redução das dez categorias do ser de Aristóteles a quatro, tendo em vista o seguinte trecho de Nida:
“Uma vez ou outra, já fizemos uso dos termos objeto, evento, abstrato e relação. Torna-se crucial neste ponto explicar o que queremos dizer com estes termos. Em primeiro lugar, eles se referem a categorias semânticas básicas, em contraste com os termos mais familiares substantivo, verbo, adjetivo, preposição etc, que se referem a classes gramaticais. Segundo, essas quatro categorias incluem exaustivamente todas as subcategorias semânticas de todas as línguas, ainda que várias línguas tenham conjuntos bem diferentes de classes gramaticais; em outras palavras, elas são universais. Isso significa que o universo inteiro da experiência é dividido entre essas quatro categorias: (1) Objeto se refere àquelas classes semânticas que designam coisas ou entidades que normalmente participam de eventos, por exemplo, casa, cachorro, homem, sol, pau, água, espírito etc. (2) Evento é a classe semântica que designa ações, processos, acontecimentos, por exemplo, correr, pular, matar, falar, brilhar, aparecer, crescer, morrer. (3) Abstrato se refere à classe semântica de expressões que têm como seus únicos referentes as qualidades, as quantidades e graus de objetos, eventos e outros abstratos. Por exemplo, vermelho não é nada em e de si mesmo; é somente uma qualidade inerente a certos objetos, por exemplo, chapéu vermelho, capa de livro vermelha, rosto vermelho. Desses objetos, a qualidade vermelho é abstraída e nomeada como se tivesse existência separada. Semelhantemente, rapidamente é uma qualidade de certos eventos, tais como correr rapidamente, mas que pode ser conceitualmente abstraída e nomeada. Abstratos de quantidade incluem dois e duas vezes, muitos, frequentemente, diversos etc. Os abstratos que servem para marcar o grau de outros abstratos, por exemplo, demais  e muito, pertencem a esta subclasse geral. (4) Relações são as expressões de conexões significativas entre outros tipos de termos. Frequentemente são expressas por partículas (em inglês muitas são preposições e conjunções); algumas línguas fazem uso extensivo de afixos, tais como terminações de caso, para propósitos semelhantes; e muitas línguas, incluindo o inglês, usam a ordem de partes extensivamente para significar relações significativas, por exemplo, o sujeito e o predicado em João comeu o amendoim. Finalmente, algumas línguas usam verbos especiais tais como ser/estar e ter (em alguns de seus usos apenas) para expressar relações, por exemplo, João está na casa, João é um menino, João tem um irmão (mas não em “Aquele que vier a Deus deve acreditar que ele é” onde ser é um verbo de existência).”4

RESPOSTAS. O que o autor faz não é reduzir a quatro as dez categorias aristotélicas do ente. Ela trata do que ele mesmo chama categorias semânticas. Ainda assim, por vários motivos não posso concordar com sua tese (à primeira vista, e após ler apenas o pequeníssimo trecho que você me oferece). A Linguagem tende a refletir em suas construções a própria constituição da realidade. É o que se dá com as diversas classes de palavras, as quais expressam de alguma maneira os dez modos de ser ou gêneros máximos dos entes, a saber, a substância e seus nove acidentes: quantidade, qualidade, relação, lugar (ou onde), tempo (ou quando), situação (ou posição), hábito (ou posse, etc.), ação e paixão (ou ser paciente de uma ação). Não é difícil notar que a classe do substantivo exprime as “substâncias” ou os “acidentes tratados como substância”; que o adjetivo corresponde ou à “qualidade” – e à “relação”, à “situação”, à “posse”, etc., entendidas a modo de qualidade – ou a certas determinações “quantitativas”; que o verbo expressa, propriamente, a “ação” e a “paixão”, mas também a “posse” entendida como ação de possuir, etc.; e que o advérbio se ocupa do “tempo” e do “lugar”, e se aplica a qualquer forma passível de receber mais ou menos, ou seja, de ter certas modalidades.
Falarei um pouco de tudo isto na parte do curso “Lógica e Gramática”.  

Referências das citações do aluno:
1. JOLIVET, R. Curso de Filosofia. 13ª ed. Rio de Janeiro: Agir (1979). Pág. 250
2. Idem, pág. 61-62
3. Idem, pág. 277

4. Tradução de: NIDE, E. A.; TABER, C. R. The Theory and Practice of Translation. Leida: E. J. Brill (1982). Pág. 37-38.