RESPOSTAS DO PROFESSOR NO CORPO DO E-MAIL
DO ALUNO
1) Estou
lendo o livro La nozione metafísica di partecipazione secondo S. Tommaso
d”Aquino de Cornelio Fabro – aliás, que maravilha é o Fabro; pode-se dizer
que é o maior tomista do século XX-XXI? – e surgiu-me uma dúvida.
RESPOSTA. Antes de tudo, meus parabéns pela importante leitura. Quanto a
quem é o maior tomista do século XX-XXI, depende do ângulo. Se se trata da
amplitude da obra e de sua profundidade, é talvez Jacques Maritan. Se se trata do
resgate da noção de ser como ato de ser, o posto cabe a Fabro. Se se trata do
resgate mais abrangente do espírito do tomismo, temos o P. Álvaro Calderón. Mas
avancemos no assunto. Jacques Maritain, espírito profundo, capaz de voos
próprios, foi porém – ou em parte por causa disso mesmo – o maior dos
desvirtuadores da doutrina do Mestre. O Padre Fabro, por seu lado, não só se deixou levar por demasiado ecletismo, o que por fim o fez incorrer em
algo perfeitamente antitomista: a hipertrofia da vontade em detrimento do
intelecto; mas ainda incorreu em demasiada rigidez terminológica: assim, por
exemplo, é falso dizer com Fabro que para S. Tomás, a partir do Comentário ao Liber de Causis, a
dialética do ser passou a dar-se “tão somente” entre o esse per essentiam e o ens per participationem, ou seja, teria S. Tomás deixado de chamar ente
a Deus. Com efeito, tal não é fato: abunda na Suma Teológica, por
exemplo, o chamar a Deus ente primeiro, etc. Sucede apenas que o ente
primeiro “é o mesmo Ser” enquanto os demais entes “têm ser”, razão por que
ainda se está no campo da analogia. Mas Fabro, com sua rigidez, quer
equivocadamente dar a ambos os termos a fixidez da univocidade. Ademais,
insista-se em seu ecletismo nefasto: aproximar de qualquer modo a doutrina
tomista do esse da Diremtion hegeliana é quase anular o valor que
a obra do Italiano possa ter. Por fim, estou grandemente de acordo com a obra
do Padre Calderón em seu resgate do autêntico tomismo, embora aqui e ali tenha
divergências com ela, uma das quais expressei (sem citar o Padre) em certa aula
do final do curso e no texto As duas primeiras operações do
intelecto: uma crítica a Maritain e a outros tomistas. Mas sem dúvida alguma devemos esperar muito de seus prometidos três tratados
(um de Lógica, um de Física e um de Metafísica); suas introduções (em Umbrales de la Filosofía) já são um
manancial de que muito hauri e hauro. Segue sendo, para mim, não só o maior
tomista vivo, mas o maior desde há muito tempo; um verdadeiro mestre-auxiliar
de Santo Tomás. Digo-o desconsiderando quaisquer possíveis discrepâncias em outros campos, não estritamente científicos.
2) No
início da Parte II do livro, que me parece a parte central da obra, Fabro
observa algo que o senhor também havia dito no curso: as três partes em que
Santo Tomás (seguindo Aristóteles) divide as ciências especulativas – a saber,
Metafísica, Matemática e Física – não são fruto de “três graus de
abstração”, como a tradição tomista insistiu em dizer, mas sim de processos
abstrativos diferentes (p. 134), embora as referidas ciências, como diz o
Aquinate no Comentário ao De Trinitate, de fato se distingam “secundum ordinem remotionis a materia et motu” (q.
5, a. 1).
RESPOSTA. Não compreendi bem seu “embora”. O que se há de discutir em
Santo Tomás é a noção de separatio,
como você mesmo dirá a seguir. Mas Fabro está corretíssimo, em princípio, em sua crítica da escada
quantitativa ou gradativa da abstração científica.
3) A
rigor, Santo Tomás distingue dois tipos de “isolamento nocional ou
abstração”: a abstração formal, própria da Matemática, e abstração
total, própria da Física e das ciências em geral (já que as ciências só
estudam o universal). Como Fabro observa, o processo pelo qual a Metafísica
chega a seu termine, que é o ato de ser, não é chamado por Santo Tomás propriamente
de abstração, mas de “separatio”. Fabro, porém, por razões ao que me
parece didáticas, propõem chamá-lo de “abstração intensiva”, “in opposizione a
quella totale, estensiva, in quanto che la ragione (di essere) a cui si
arriva nulla lascia perdere delle perfezioni positive degli inferiori, ma tende
a vederle unificate tutte quante” (p. 141).
RESPOSTA. Aqui começa o problema. Antes de tudo, extrapola Fabro a noção
de ser intensivo para o terreno da
abstração, e isto me parece indevido: porque, com efeito e por exemplo (não
posso agora espraiar-me no assunto), há diferenças de intensividade de ser
dentro, ponha-se, da mesma Biologia: vegetal → animal. – Depois, Santo Tomás
não dá a tese da separatio senão em
seu Comentário de juventude ao De
Trinitate de Boécio; não a repetirá mais, ou seja, quando volte a tratar
precisamente da tripla distinção das ciências especulativas (Física,
Matemática, Metafísica) segundo seu
respectivo sujeito. Já nem rastro de separatio
ou juízo separativo. Darei adiante o que tudo indica seja a solução para este
assunto.[1]
4) A
diferença entre a “abstração intensiva”, da Metafísica, e as demais, segundo
Fabro, é a seguinte: abstração sobre a qual se fundam as “ciências formais” só
alcança a forma dos entes reais, deixando sempre de fora de suas
considerações um “resíduo”, que não é senão o ato de ser, alcançado justamente
pela “abstração intensiva”: “l’astrazione propria della scienza formal, lascia
quindi sussistere sempre um ‘residuo’ che bisogna pur risolvere se si vuol dar
fondo all’intelligibilità. Questo residuo é l’atto di essere reale, alla
considerazione de quale, attende la ‘filosofia prima’, la quale mostra come la
ragion d’essere, che corrisponde all’atto di essere, è anch’essa um ‘astratto’,
mas non come gli altri astratti; è um ‘astratto’ che num può esser compreso nel
suo contenuto se no è visto in relazione al concreto in cui se realizza, dal quale
quindi no può mai astrarre del tutto” (p. 144).
Dito
isso, pergunto:
1)
Fabro de fato chama de “abstração intensiva” àquilo que Santo Tomás chama,
preferencialmente, de “separatio” ou eu entendi erradamente a passagem? O
senhor considera vantajosa a substituição?
RESPOSTA. Não creio que a “abstração intensiva” de Fabro signifique exatamente o mesmo que a separatio de Santo Tomás. Quanto ao
mais, porém, não posso responder à sua pergunta, porque, como dito, estou
convicto de que a tese da separatio
foi deixada de lado pelo mesmo Doutor. Dou agora a referida solução.
A abstração das três ciências (Física, Matemática, Metafísica) é
distinta segundo o seu mesmo e respectivo sujeito: o ente enquanto móvel, o ente
enquanto quantum e o ente enquanto
ente, o que se pode entender retrospectivamente a partir da mesma
Metafísica. Com efeito, o sujeito da Metafísica distingue-se do da Física na
medida em que este tem necessariamente
matéria, o que decorre de que a Física tem por sujeito o ente enquanto móvel e de
que a matéria é que é o princípio do movimento, ao passo que o sujeito da
Metafísica não necessariamente tem
matéria – e isto é assim porque, como dito em alguma aula do curso, o que
pertence per se à espécie não
pertence senão per accidens ao
gênero. Mas a matéria pertence per se
ao ente móvel, que é como uma espécie do ente genérico ou universal, de que se ocupa a
Metafísica. Se assim é, a matéria pertence, ainda que per accidens, ao ente
enquanto ente, que é o sujeito da Metafísica.
Não obstante, como dito pelo Padre Calderón (em Umbrales...), não só “o ens
communis não inclui a matéria entre suas causas próprias”, senão que “o
ente móvel é ente de maneira deficiente”, porque, com efeito, o que muda pode
ser e não ser ou deixar de ser, ao passo que a razão de ente se dá perfeitamente no que é ato sem potência para
não ser ou deixar de ser. Se porém não houvesse substâncias separadas da
matéria, a causa material seria o princípio comum ou universal do ente, e a
Física seria não só a ciência universal, mas a mesma sabedoria no campo das
ciências alcançáveis pela razão. Por outro lado, o que é a glória da Metafísica
– ou seja, o elevar-se à parte mais nobre de seu sujeito (as substâncias
separadas) – é ao mesmo tempo sua miséria, porque ela não pode saber o que são
estas substâncias senão na medida em que são causas do ente móvel ou material
(e isso é assim porque nosso conhecimento tem por objeto próprio as espécies
inteligíveis abstraídas das substâncias materiais). Toda e qualquer ciência,
todavia, precisa saber de seu sujeito não só que é ou existe, mas o que é, e isto é o que se dá na
Matemática e na Física, que têm experiência integral
do que estudam: não só sabem que é,
mas o que é. O caso da Matemática, ou
seja, segundo seu modo de abstrair o ens quantum,
é mais complexo que o da Física; mas, como explicado em alguma aula do curso,
não contradiz o que se acaba de dizer. O caso da Física, no entanto, é
evidente: ela “toca com o dedo” não só a existência das substâncias sensíveis,
mas a diferença entre estabilidade e mudança. Ora, a Metafísica não pode
“tocar” senão parcialmente seu sujeito: não pode alcançar imediatamente as
substâncias suprassensíveis, razão por que lhe é tão árduo precisar a universalidade como o próprio de seu sujeito.[2] É
daqui que decorre a separatio de
Santo Tomás no referido Comentário:
porque a Metafísica não alcança seu sujeito por abstração, mas por juízo divisivo. Isto, ou seja, a separatio tomista, não colide com a
doutrina de que o ente que é o sujeito da Metafísica é o que nosso intelecto primeiramente
conhece. Apenas aponta que o intelecto não o conhece ainda, neste primeiro
momento, com a solidez suficiente que permite fundar a Metafísica, o que não se
faz possível senão quando se alcança que o ente não é necessariamente sensível ou material. Em outras palavras, a separatio de Santo Tomás jovem expressa
já a universalidade do ente por sobre a mesma materialidade de nossa
experiência sensível, mas expressa-o não afirmativamente
– como o fará todo o Santo Tomás posterior ao Comentário ao De Trinitate –, senão apenas negativamente. – Ora, como sempre digo, devemos seguir a Santo
Tomás tanto em espírito como em letra, razão por que preferentemente devemos não
adotar a expressão separatio,
superada pelo mesmo Doutor, o que porém não quer dizer que devamos recorrer à
terminologia fabriana, que me parece eivada de problemas: sem dúvida, não se
pode dizer muito bem por que seu intensivo
com respeito à abstração não seria de algum modo gradativo.
2)
Pode-se dizer que a perda da distinção entre esse e essentia –
iniciada já no século XIII pelo antitomismo e que culminará no nominalismo – é
um “problema de abstração”? Ou seja, essa perda surge quando se toma o ato de
ser de que trata a metafísica como resultante não de uma “abstração intensiva”,
mas sim de uma “abstração total”, como fez Duns Scot (p. 139) – parando, pois,
na forma e não atingindo o esse?
RESPOSTA. Só posso responder que não, em coerência com tudo o que disse
até aqui. Esta perda não há de explicar-se, fundamentalmente,
senão pela referida dificuldade de passar do lógico ao ontológico quanto ao ente como não necessariamente material e
como mais nobre quando imaterial em toda
a sua concretude (porque, de fato, cada substância imaterial ou separada também
é este algo, hoc aliquid).
4)
Por fim, uma questão não relacionada às anteriores: por que no Comentário ao
De Trinitate, Santo Tomás afirma que o intelecto tem apenas duas
operações, a simples apreensão e o juízo ou composição?
RESPOSTA. Não é só aí que ele o diz, mas em muitas outras obras,
incluída a Suma (e como já o fizera
Aristóteles em vários lugares). Isso se deve a algo dito em alguma aula de
nosso curso: as duas primeiras operações são da razão enquanto intelecto, enquanto a terceira é da razão enquanto razão.
* * *
Pergunta do aluno
Isso que Santo Tomás chamou de “separatio” em sua juventude, como o chamará em seus textos de maturidade?
Resposta do professor
O que ele chama
negativamente na juventude separatio,
chamá-lo-á depois, positivamente, universalidade
do ente. Com a separatio diz: o ente não é necessariamente material; com
a outra maneira afirma que o ente é
universal e antes de tudo imaterial. Para entendê-lo, diga-se que na
ciência pode dizer-se que é princípio não só a definição do sujeito, mas a
mesma proposição que predica a definição do sujeito: por exemplo, o ente é o que não é necessariamente material. Esta é a maneira da separatio, que é um modo de explicar a
universalidade do ente ante a própria experiência do homem (que se dá já desde
quando o ente é o primeiro conhecido do intelecto): o ente não é necessariamente material. Mas positivamente, ou seja,
segundo a definição do sujeito e já não segundo a mesma proposição que predica
a definição do sujeito, dirá S. Tomás: o
ente é universal e antes de tudo imaterial.
[1] Para o estado da
questão, ver Santiago Gelonch, Separatio
y objeto de la metafísica en Tomás de Aquino, EUNSA, 2002, com muitas de cujas
conclusões, todavia, não podemos estar de acordo.
[2] Di-lo também o Padre
Calderón, com as seguintes palavras: “Ainda que o intelecto, que é uma potência
imaterial, alcance o ente e as primeiras noções comuns de maneira imaterial, ou
seja, sem relação necessária com o que se entende como matéria; no entanto,
como só se acham de fato em substâncias materiais, torna-se difícil ver que
esta maior universalidade é ontológica e não puramente lógica” (Umbrales..., p. 445).