PERGUNTA DO ALUNO
Tenho uma
dúvida e não sei se é fora do contexto. Se for fora de contexto, não precisa
responder. Vi em um site recomendado por um amigo, os seguintes elementos
de técnica filosófica:
"1.
A anamnese pela qual o filósofo rastreia a origem das suas
idéias e assume a responsabilidade por elas.
2.
A meditação pela qual ele busca transcender o círculo das suas
idéias e permitir que a própria realidade lhe fale, numa experiência cognitiva
originária.
3.
O exame dialético pelo qual ele integra a sua experiência
cognitiva na tradição filosófica, e esta naquela.
4.
A pesquisa histórico-filológica pela qual ele se apossa da
tradição.
5.
A hermenêutica pela qual ele torna transparentes para o exame
dialético as sentenças dos filósofos do passado e todos os demais elementos da
herança cultural que sejam necessários para a sua atividade filosófica.
6.
O exame de consciência pelo qual ele integra na sua
personalidade total as aquisições da sua investigação filosófica.
7.
A técnica expressiva pela qual ele torna a sua experiência
cognitiva reprodutível por outras pessoas.”
Queria
saber se são válidas ou não e por quê.
RESPOSTA DO PROFESSOR
Antes de tudo, não, não é fora de contexto, senão que é uma pergunta
excelente. Vou por partes.
1) Naturalmente, há elementos de verdade no que me apresenta. Mas não
posso concordar com o núcleo desse esquema.
2) Que núcleo é este? Está dito já no item 1: “A anamnese pela
qual o filósofo rastreia a origem das suas ideias e assume a responsabilidade
por elas”. É o mesmo ponto de partida que tem a filosofia moderna desde
Descartes: suas próprias ideias, as ideias do próprio filósofo,
independentemente, antes de tudo, do que só se nomeará no item 3: a tradição.
Não foi este o objetivo de Descartes ou de Kant? Começar do zero, de si mesmos,
para depois ver como se integrariam na “tradição filosófica”. Pois.
3) Como espero ter deixado claro desde o início deste curso, meu ponto
de partida é todo outro. E, já que me apresentou um esquema da marcha do
filosófico, apresento um alternativo, similar a ele quanto à figura, mas
obviamente diferente quanto à forma ou conteúdo.
a) Como vimos em nosso curso, todos os homens conhecem, mas só alguns
sabem: são os filósofos. Ora, talvez eu tenha capacidade ou pendor para ser filósofo,
o que se vê por minhas mesmas interrogações acerca da realidade. Lembre-se de
que o menino Tomás de Aquino perguntou um dia: “Que é Deus?”
b) A realidade já me fala, a mim enquanto homem, e a mim enquanto
possível filósofo. Se assim não fosse, minhas ideias antecederiam o
conhecimento que tenho das coisas, o que analogamente
é um pouco pensar como Descartes: penso que penso antes de pensar que penso as
coisas.
c) Ademais, assim como o jovem Tomás de Aquino logo constatou que
gerações e gerações de filósofos anteriores a ele já haviam feito interrogações
acerca da realidade semelhantes às que ele fazia desde menino, assim também eu,
como todo e qualquer possível filósofo realista,
logo verei que não poderei senão alçar-me sobre ombros de gigantes.
d) E logo perceberei, em meu pendor filosófico realista, que alguns deram respostas mais adequadas e mais
realistas às comuns interrogações filosóficas – e aderirei a eles.
e) Se tiver verdadeiro pendor filosófico, não só aderirei a eles, mas os
aprofundarei, aprimorarei e/ou corrigirei (no que tiverem de corrigíveis), além
de, quando possível, sintetizar em meu nascente filosofar o que de assimilável
houver em todas as demais doutrinas.
f) Naturalmente, se tiver verdadeiro pendor filosófico realista, terei em concreto de aderir
antes de tudo a Santo Tomás, em sua síntese ordenada à sua Teologia Sagrada, na
qual ressalta o aristotelismo, ainda que aprimorado e completado por outras
contribuições, incluindo as próprias. Em outras palavras: não inventarei uma
nova doutrina, senão que, como dito nas duas primeiras aulas deste nosso curso,
seguirei a Santo Tomás em espírito e letra, tentando aplicar sua doutrina a
campos ou a aspectos da realidade a que o mesmo Santo Tomás não o fez. (E,
naturalmente, poderei até aperfeiçoá-lo e corrigi-lo no pouco dele que se pode
aperfeiçoar ou corrigir – sempre, porém, mediante conclusões diretas do núcleo
de sua mesma doutrina.) – Mas por que ser tomista, há espaço para insistir?
Simplesmente porque em sua doutrina Santo Tomás atingiu o ápice da sabedoria, e porque, sendo impossível superar um ápice,
não hei senão de pôr-me sob seu inteiro influxo, até que esta doutrina se me
constitua a forma mentis.
g) Mas posso ter pendor filosófico em diferentes modos e sentidos,
análogos segundo mais e menos. Posso ser “apenas” um excelente leitor ou um
ótimo professor de filosofia; posso ir além disto mas restringir-me a pensar
filosoficamente; e posso ir ainda além e escrever filosofia, ou seja,
transmitir aos outros meu mesmo filosofar – sempre tomista. E para isto último,
naturalmente, hei de encontrar os meios expressivos adequados: um modo de
escrever estritamente filosófico ou científico, ou seja, que não recorra ao
retórico senão muito pontualmente. Mas o mesmo Santo Tomás nos ensina a fazê-lo
com proficuidade.