Intentio
Cordis
São Bento |
Carlos Nougué
Escreve São Bento no Capítulo 52 (“Do Oratório do Mosteiro”) de sua Regra: Sed et si aliter vult sibi forte secretius orare, simpliciter intret et oret, non in clamosa voce, sed in lacrimis et intentione cordis (“Mas, se porventura também outro [monge] quiser rezar em silêncio, simplesmente entre e reze, não com voz clamorosa, mas com lágrimas e intentio cordis”). Propositadamente deixamos esta última expressão sem traduzir, porque, embora seja comum traduzi-la por “pureza do coração”, e embora efetivamente esta tradução não seja de todo ruim, o fato é que a expressão não tem equivalente preciso em outras línguas, dada sobretudo a dificuldade de encontrar neste contexto versão perfeita para intentio. Vejamos brevemente por quê.
Dentre os muitos significados do termo intentio,
cinjamo-nos aqui aos que mais de perto têm que ver com a passagem da Regra de
São Bento e o assunto deste artigo:
1)
ação de esticar, tensão;
2)
aplicação, atenção, dedicação, esforço (intentio cogitationum,
esforço ou tensão do espírito; intentio operis, dedicação ao trabalho;
Sêneca: si mihi accomodaveris subtilitatem et intentionem tuam,
se teu espírito penetrante me prestar atenção);
3)
tendência a um fim ou desígnio (Plínio: Hæc intentio tua, ut...,
Estes [teus esforços] tendem a...);
4)
intensidade, grau (Sêneca: Summi dolori intentio, O grau sumo [ou
o paroxismo] da dor);
(Os outros significados são sempre técnicos: ou
jurídico, ou lógico [em Quintiliano significa “a premissa maior do silogismo”],
ou médico.)
Pois bem, a nosso ver, em intentio cordis o
termo amalgama todos os significados precedentes, além do de pureza. Com
efeito, esclarece Cassiano:[1] “Quando a mente estiver fundada em tal
tranquilidade e libertada dos liames de todas as paixões carnais e aderir de
forma tenacíssima ao Sumo Bem, aí está a ‘intentio cordis’. Por meio dessa
pureza, de certo modo, é absorvido o sentido da mente e reformado de sua
situação terrena à semelhança espiritual e angélica; o que quer que receba em
si, no ocupar-se ou no fazer algo estará realizando puríssima e sinceríssima
oração. É assim cumprida a palavra do Apóstolo: ‘sine intermissione orate’,
‘orai sem cessar’ (I Tess., V, 17)”.
Ora, ninguém está mais aderido ao Sumo Bem que os
bem-aventurados (anjos ou homens) ao contemplar a Deus face a face. Ao
contrário do que dizia Duns Scot, e como dizia Santo Tomás de Aquino, a vontade
daquele que vê a essência de Deus já não pode pecar nem sequer venialmente:
está submersa na perfeita beatitude ou felicidade que é o seu Fim Último. Está
como que em seu elemento: “respira-o”.
Então, no estado de contemplação de Deus face a
face, já não será necessária a Fé. Mas para nós, os que ainda peregrinamos
nesta terra de exílio, a Fé não só é necessária para o atingimento daquela
perfeita beatitude, mas é essa mesma perfeita beatitude já incoada, já
iniciada na vida atual. Por isso, pode dizer-se, quanto maior for a Fé, mais
incoada estará na vida atual a perfeita beatitude e, portanto, mais a mente e o
coração estarão fundados em grandíssima tranquilidade, porque mais libertos estarão
dos liames das paixões carnais e mais tenazmente estarão aderidos ao Sumo Bem.
Logo, mais capazes serão essa mente e esse coração feridos pelo pecado
original, mas efetivamente purificados e limpos pela Graça, de prestar a glória
devida a Deus.
Intentio cordis
é, pois, essa pureza de uma mente e de um coração aplicados, tendentes e
aderidos em alto grau a Deus e grandissimamente libertos das impurezas da
soberba e do amor-próprio, porque “mais precioso que o mais fino ouro é o meu
fruto, meu produto tem mais valor que a mais fina prata” (Prov. VIII, 19). E
não é senão com intentio cordis que podemos cumprir o mandado do
Apóstolo de orar sem cessar, porque com intentio cordis oraremos
purissimamente no que quer que estejamos fazendo: rezando no oratório
beneditino, dando aula, arando o campo, entalhando a madeira, lavando a louça,
comendo, cantando ou corrigindo amorosamente o filho querido (“Bate no teu
filho com a vara e livrarás a sua alma da morte”, Prov., XXIII, 14). E orar
assim incessantemente, com intentio cordis, em qualquer de nossas
atividades, faz parte propriamente do santificar-se. Mas que distância entre
esta afirmação e a de que nos santificamos fazendo bem (quase)
qualquer ofício do mundo ou a de que agrada a Deus o fazer naturalmente
bem, por exemplo, uma obra de
arte!
A primeira, uma variante muitíssimo difundida do
humanismo e do liberalismo “católicos”,[2] incorre em flagrante desvio da sã
doutrina. Com efeito, se de santificação se trata, será decorrente da Graça e
das virtudes teologais infusas (Fé, Esperança e Caridade), ou não o será. Não
se pode pensar em santificação sem o motor primeiro do sobrenatural, porque a
santificação é já um produto sobrenatural e se ordena ao Sobrenatural.
Pretender que nos santificamos fazendo bem (quase) qualquer ofício do
mundo é afirmar, eo ipso, que o natural é capaz por si do sobrenatural.
É incorrer, propriamente, numa sorte de heresia pelagiana com odor de
calvinismo. Naturalmente, os modernos defensores desse modo de pensar
perfeitamente anticatólico não dizem que nos santificamos fazendo bem qualquer
ofício do mundo, mas quase qualquer ofício, porque se assim não
fosse seriam obrigados a reconhecer, por exemplo, que “o mais antigo ofício do
mundo” é motor de santificação... Não, seu erro não reside aí. Reside
precisamente em crer que gerir bem um banco, digitar bem o que
dita o patrão ou varrer bem uma casa é por si capaz de santificar, independentemente
de ter-se ou não a referida intentio cordis. Trata-se de uma espécie de
sobrenaturalização do fazer natural, tão larga, que é capaz de incluir na
subida da escada de Jacó até a não católicos e a pecadores mortais. Mas é óbvio
que se trata de uma falsidade, porque o que santifica é ser movido pela Graça a
ter uma intentio cordis tal, que se seja capaz até de deixar de fazer os
ofícios do mundo para servir a Deus, de renunciar até aos mais lícitos prazeres
do mundo para viver para Deus, de dar a própria vida para tornar-se mártir de
Deus. “E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: Abraão, Abraão. E ele
respondeu: Aqui estou. E (o anjo) disse-lhe: Não estendas a tua mão sobre o
menino, e não lhe faças mal algum; agora conheci que temes a Deus, e não
perdoaste a teu filho único por amor de mim. Abraão levantou os olhos, e viu
atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os espinhos, e, pegando nele,
ofereceu-o em holocausto em lugar de seu filho. E chamou àquele lugar o Senhor
‘Providência’” (Gên., XXII, 11-14). Não, Abraão não se santificou por pastorear
bem seus rebanhos, mas por oferecer ao Senhor não só seu pastorear, mas
toda a sua vida, a ponto de por amor e obediência a ele ser capaz de sacrificar
o próprio filho amado. E foi Santo entre os santos o Descendente de Abraão, de
Isaac, de Jacó e de Judá não por ter sido bom carpinteiro, mas por ter morrido
de morte na Cruz como vítima propiciatória e satisfatória da glória ofendida do
Pai, e em obediência absoluta e perfeita a ele. Isto é ter intentio cordis.
Obviamente, também é ter intentio cordis oferecermos nosso trabalho a
Deus, o que implica tentar fazê-lo bem; mas, também obviamente, não deixaremos
de ter intentio cordis se, conquanto oferecendo perfeitamente a Deus até
o mais estafante dos trabalhos e tentando fazê-lo bem, não pudermos por
qualquer razão acidental fazê-lo bem. O inferno só não está cheio, podemos
parafrasear a Chesterton, de “malfazedores”. Ademais − e isto é tão fundamental
que merece tratamento à parte –, nem todos os ofícios considerados honestos
pelo mundo o são aos olhos de Deus. Será bom aos olhos de Deus gerir bem um
banco se por tal gestão muitos perdem casas e bens em razão de hipotecas
impagáveis? Será bom aos olhos de Deus ser contador de uma fábrica de quaisquer
coisas indecorosas? Será bom aos olhos de Deus um médico praticar um aborto
legal? Veja-se que não se fala aqui de algo impossível; obviamente, os
católicos que vivem no mundo de hoje, tão universalmente apóstata e tão
universalmente abjeto, só muito raramente temos condições mais perfeitas de
escapar a seus tentáculos. Como ter, então, neste mundo a referida e requerida intentio
cordis? Antes de tudo, tentando até o último de nossos dias livrar-nos, da
melhor maneira possível, de tais tentáculos, tendo sempre na mente e no coração
que devemos vigiar sem interrupção, porque nossos inimigos – o demônio, a carne
e o mundo − andam ao nosso redor, como um leão que ruge, procurando a quem
devorar (cf. I Ped., V, 8). Depois, enquanto ou se não conseguirmos
absolutamente livrar-nos deles, pedindo permanente perdão a Deus pelo que somos
obrigados a fazer, como aquele violinista católico que, na Alemanha do século
XIX, tocava na orquestra de costas para o público a fim de não ser tomado pela
vaidade tão própria dos artistas daqueles tempos românticos, demasiado
românticos... Mas, por fim, como no caso do médico com respeito a um aborto
legal e como em tantos e tantos outros casos, renunciando se preciso for, em
nome de Deus, ao nosso próprio ganha-pão e ofício, e entregando-nos totalmente
em suas mãos: ou seja, sujeitando-nos ao suave jugo de Cristo com a certeza
de que são bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça −
justiça de Deus −, porque deles é o reino dos céus (cf. Mat., V, 10).
Ademais, como diz Cassiano e pressupunha São Bento
em sua Regra, a intentio cordis implica a aceitação amorosa “do que quer
que se receba em si”; implica o amor à cruz. Não disse Cristo que, “se algum
quiser vir empós de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me”
(Mat., XVI, 24), e que “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, e ninguém vai ao
Pai senão por Mim” (Jo., XIV, 6)?
Há porém algo mais, e que esquecem tantos os
defensores da tese da santificação pelo bem-fazer os ofícios do mundo quanto os
defensores do ser do agrado de Deus o bem-fazer naturalmente, por exemplo, uma
obra de arte:[3] pela intentio cordis, “é absorvido o sentido da mente e
reformado de sua situação terrena à semelhança espiritual e angélica”
(Cassiano, ibid.); ou seja, o sentido da mente de quem tem a intentio
cordis está ordenado ao Fim Último, a Deus, à semelhança possível dos anjos
glorificados e dos homens bem-aventurados, estes hoje como almas separadas do
corpo e amanhã como unidades restauradas de alma e corpo gloriosos. A intentio
cordis pressupõe uma reforma do homem antigo, um renascer em Cristo,
conforme ao qual todos os fins terrenos se ordenem, como meios, ao Fim
Último. Pressupõe, portanto, que o humano natural se subordine e ordene ao
sobrenatural da Graça, e que devemos, como dizia São Paulo, possuir as coisas
deste mundo como se não as possuíssemos, desfrutá-las como se não as
desfrutássemos, e, como podemos consequentemente concluir, fazê-las sempre
absolutamente em ordem ao Fim Último. O efetivamente subordinado deve
ordenar-se essencialmente ao subordinante. Agrada a Deus o bem cozinhar um
prato demasiado requintado? Para sabê-lo, basta ler as espécies de gula que
enumera São Gregório Magno no livro XXX, C. 18, n. 60, de seus Livros Morais: “præpopere laute nimis
ardenter studiose”, ou seja, “fora de tempo, com ostentação, com excesso,
com voracidade, com excessivo esmero”.[4] Agrada a Deus o esculpir uma estátua
de perfeito nu sensual? Agrada a Deus o compor uma complexa e musicalmente
perfeita sinfonia que exacerbe as paixões do ouvinte? Agrada a Deus o descrever
perfeitamente numa peça teatral quão baixo pode descer o homem em sua vileza sem
mostrá-lo como condenável e sem apresentar o contraponto da Penitência e da
Esperança cristãs? Agrada a Deus o filmar e exibir um beijo ardente ou
adúltero? Agrada a Deus escrever os mais perfeitos versos em honra de Satã?
Como lhe poderiam agradar se tal estátua, tal sinfonia, tal peça teatral, tal
filme e tais versos, por mais artisticamente perfeitos que sejam, são em si mesmos
pecaminosos e tendem a levar o próximo a pecar de algum modo?
Como diz Santo Tomás na Suma Teológica (I,
q. 1, a. 6, corpus), “entre as
ciências práticas, a mais excelente é a que está ordenada a um fim mais alto,
como acontece com a política [ou arte civil] com respeito à arte militar: pois
o bem do exército está ordenado ao bem da cidade [e assim como acontece com a
política com relação à arte musical, como o demonstram Platão na República
e o Filósofo na Política]. Ora, o fim desta doutrina [a Sacra Teologia],
enquanto prática, é a bem-aventurança eterna, à qual se ordenam todos os outros
fins das ciências práticas [ou seja, da política, da arte militar, da arte
musical, da arte arquitetônica, etc.]. Portanto, é claro que por qualquer
ângulo a ciência sagrada é a mais excelente”. Pergunta-se: o fim da arte
musical de um Wagner, o fim da arte teatral de um Nelson Rodrigues, o fim da arte
arquitetônica de um Niemayer se ordenam à bem-aventurança eterna, ou antes
“desordenam” dela? Mas então qualquer obra de arte que não seja estritamente
católica não tem nenhuma importância e é nefasta para a vida do católico? Não,
porque, por exemplo, algumas formas de arte greco-romanas eram, digamos,
“batizáveis”, pois Deus mesmo, mediante sua Providência, preparara a cultura
greco-romana como carne apta para receber o espírito do cristianismo; ou também
porque algumas obras de arte, como muitos quadros de Rembrandt, são como que
continuidades culturais ou últimos suspiros católicos em ambientes já não
católicos; ou ainda, por fim, porque certas obras, mesmo sem ser estritamente
católicas, não contradizem porém a ordem ao Fim último do homem, senão que até contribuem
de alguma maneira para tal (por exemplo, e como diria Johann Sebastian Bach,
recreando a alma dentro de justos limites). Sem dúvida alguma, porém, a melhor
arte é a resultante dos que têm não só grande talento mas verdadeira intentio
cordis, ou dos que, também dotados de grande talento, ao menos seguem os
cânones daqueles: a arte de São Gregório Magno, a de Palestrina, a de Anton
Bruckner, grandíssima parte da de Arvo Pärt, parte da de Bach; a arte de Michelino
da Besozzo, a de Gentile
da Fabriano, a de Fra Angelico, a de Francisco de Zurbarán, a de Augusto Ferrer-Dalmau; a arte de Lorenzo Ghiberti, a de Aleijadinho,
parte da de Michelangelo; a arte dos anônimos arquitetos góticos, a de João de
Castilho, a de Fernando de Casas Novoa; a arte de Gil Vicente, a de Chesterton,
boa parte da de Lope de Vega; parte da arte de Robert Bresson, parte da de
Andrei Tarkovski; etc.
Sim, porque para tudo numa vida ordenada a Deus com
intentio cordis vale o que diz São Tiago (I, 22): “Sede realizadores da
palavra e não apenas ouvintes”. E ter intentio cordis, fazer tudo com intentio
cordis, é adquirir como Hieroteu a sabedoria divina não apenas estudando-a,
mas padecendo-a até no menor ato da vida.[5]
Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, Rio de Janeiro, Brasil |
__________________
[1]
Em Coll. 9, 6, apud A Regra de São Bento, trad. e notas D. João
Evangelista Enout, O.S.B., 3a. ed., Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi,
2008, pp. 185.
[2]
Só se pode entender a existência de um liberalismo ou de um humanismo “católicos”,
como diz o Padre Álvaro Calderón em Prometeo o La religión del hombre,
ao modo degenerativo de um câncer.
[3]
Os que creem ser do agrado de Deus o mero bem fazer naturalmente, por exemplo,
uma obra de arte não necessariamente se consideram, eles mesmos, liberais; mas com esta tese caminham
perigosamente à beira do precipício do humanismo.
[4]
PL 76, 556-557, apud Santo Tomás de Aquino, De Malo, q. 14, a. 3.
[5]
Cf. Pseudo-Dionísio, De Divinis Nominibus, apud Santo Tomás, Suma
Teológica, I, q. 1, a. 6, ad 3: “Hierotheus doctus est non solum
discens, sed et patiens divina”.