sexta-feira, 4 de abril de 2014

Intentio cordis (em português)


Intentio Cordis
São Bento

Carlos Nougué 

Escreve São Bento no Capítulo 52 (“Do Oratório do Mosteiro”) de sua Regra: Sed et si aliter vult sibi forte secretius orare, simpliciter intret et oret, non in clamosa voce, sed in lacrimis et intentione cordis (“Mas, se porventura também outro [monge] quiser rezar em silêncio, simplesmente entre e reze, não com voz clamorosa, mas com lágrimas e intentio cordis”). Propositadamente deixamos esta última expressão sem traduzir, porque, embora seja comum traduzi-la por “pureza do coração”, e embora efetivamente esta tradução não seja de todo ruim, o fato é que a expressão não tem equivalente preciso em outras línguas, dada sobretudo a dificuldade de encontrar neste contexto versão perfeita para intentio. Vejamos brevemente por quê.
Dentre os muitos significados do termo intentio, cinjamo-nos aqui aos que mais de perto têm que ver com a passagem da Regra de São Bento e o assunto deste artigo:
1) ação de esticar, tensão;
2) aplicação, atenção, dedicação, esforço (intentio cogitationum, esforço ou tensão do espírito; intentio operis, dedicação ao trabalho; Sêneca: si mihi accomodaveris subtilitatem et intentionem tuam, se teu espírito penetrante me prestar atenção);
3) tendência a um fim ou desígnio (Plínio: Hæc intentio tua, ut..., Estes [teus esforços] tendem a...);
4) intensidade, grau (Sêneca: Summi dolori intentio, O grau sumo [ou o paroxismo] da dor);
(Os outros significados são sempre técnicos: ou jurídico, ou lógico [em Quintiliano significa “a premissa maior do silogismo”], ou médico.)
Pois bem, a nosso ver, em intentio cordis o termo amalgama todos os significados precedentes, além do de pureza. Com efeito, esclarece Cassiano:[1] “Quando a mente estiver fundada em tal tranquilidade e libertada dos liames de todas as paixões carnais e aderir de forma tenacíssima ao Sumo Bem, aí está a ‘intentio cordis’. Por meio dessa pureza, de certo modo, é absorvido o sentido da mente e reformado de sua situação terrena à semelhança espiritual e angélica; o que quer que receba em si, no ocupar-se ou no fazer algo estará realizando puríssima e sinceríssima oração. É assim cumprida a palavra do Apóstolo: ‘sine intermissione orate’, ‘orai sem cessar’ (I Tess., V, 17)”.
Ora, ninguém está mais aderido ao Sumo Bem que os bem-aventurados (anjos ou homens) ao contemplar a Deus face a face. Ao contrário do que dizia Duns Scot, e como dizia Santo Tomás de Aquino, a vontade daquele que vê a essência de Deus já não pode pecar nem sequer venialmente: está submersa na perfeita beatitude ou felicidade que é o seu Fim Último. Está como que em seu elemento: “respira-o”.
Então, no estado de contemplação de Deus face a face, já não será necessária a Fé. Mas para nós, os que ainda peregrinamos nesta terra de exílio, a Fé não só é necessária para o atingimento daquela perfeita beatitude, mas é essa mesma perfeita beatitude já incoada, já iniciada na vida atual. Por isso, pode dizer-se, quanto maior for a Fé, mais incoada estará na vida atual a perfeita beatitude e, portanto, mais a mente e o coração estarão fundados em grandíssima tranquilidade, porque mais libertos estarão dos liames das paixões carnais e mais tenazmente estarão aderidos ao Sumo Bem. Logo, mais capazes serão essa mente e esse coração feridos pelo pecado original, mas efetivamente purificados e limpos pela Graça, de prestar a glória devida a Deus.
Intentio cordis é, pois, essa pureza de uma mente e de um coração aplicados, tendentes e aderidos em alto grau a Deus e grandissimamente libertos das impurezas da soberba e do amor-próprio, porque “mais precioso que o mais fino ouro é o meu fruto, meu produto tem mais valor que a mais fina prata” (Prov. VIII, 19). E não é senão com intentio cordis que podemos cumprir o mandado do Apóstolo de orar sem cessar, porque com intentio cordis oraremos purissimamente no que quer que estejamos fazendo: rezando no oratório beneditino, dando aula, arando o campo, entalhando a madeira, lavando a louça, comendo, cantando ou corrigindo amorosamente o filho querido (“Bate no teu filho com a vara e livrarás a sua alma da morte”, Prov., XXIII, 14). E orar assim incessantemente, com intentio cordis, em qualquer de nossas atividades, faz parte propriamente do santificar-se. Mas que distância entre esta afirmação e a de que nos santificamos fazendo bem (quase) qualquer ofício do mundo ou a de que agrada a Deus o fazer naturalmente bem, por exemplo, uma obra de arte!
A primeira, uma variante muitíssimo difundida do humanismo e do liberalismo “católicos”,[2] incorre em flagrante desvio da sã doutrina. Com efeito, se de santificação se trata, será decorrente da Graça e das virtudes teologais infusas (Fé, Esperança e Caridade), ou não o será. Não se pode pensar em santificação sem o motor primeiro do sobrenatural, porque a santificação é já um produto sobrenatural e se ordena ao Sobrenatural. Pretender que nos santificamos fazendo bem (quase) qualquer ofício do mundo é afirmar, eo ipso, que o natural é capaz por si do sobrenatural. É incorrer, propriamente, numa sorte de heresia pelagiana com odor de calvinismo. Naturalmente, os modernos defensores desse modo de pensar perfeitamente anticatólico não dizem que nos santificamos fazendo bem qualquer ofício do mundo, mas quase qualquer ofício, porque se assim não fosse seriam obrigados a reconhecer, por exemplo, que “o mais antigo ofício do mundo” é motor de santificação... Não, seu erro não reside aí. Reside precisamente em crer que gerir bem um banco, digitar bem o que dita o patrão ou varrer bem uma casa é por si capaz de santificar, independentemente de ter-se ou não a referida intentio cordis. Trata-se de uma espécie de sobrenaturalização do fazer natural, tão larga, que é capaz de incluir na subida da escada de Jacó até a não católicos e a pecadores mortais. Mas é óbvio que se trata de uma falsidade, porque o que santifica é ser movido pela Graça a ter uma intentio cordis tal, que se seja capaz até de deixar de fazer os ofícios do mundo para servir a Deus, de renunciar até aos mais lícitos prazeres do mundo para viver para Deus, de dar a própria vida para tornar-se mártir de Deus. “E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: Abraão, Abraão. E ele respondeu: Aqui estou. E (o anjo) disse-lhe: Não estendas a tua mão sobre o menino, e não lhe faças mal algum; agora conheci que temes a Deus, e não perdoaste a teu filho único por amor de mim. Abraão levantou os olhos, e viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os espinhos, e, pegando nele, ofereceu-o em holocausto em lugar de seu filho. E chamou àquele lugar o Senhor ‘Providência’” (Gên., XXII, 11-14). Não, Abraão não se santificou por pastorear bem seus rebanhos, mas por oferecer ao Senhor não só seu pastorear, mas toda a sua vida, a ponto de por amor e obediência a ele ser capaz de sacrificar o próprio filho amado. E foi Santo entre os santos o Descendente de Abraão, de Isaac, de Jacó e de Judá não por ter sido bom carpinteiro, mas por ter morrido de morte na Cruz como vítima propiciatória e satisfatória da glória ofendida do Pai, e em obediência absoluta e perfeita a ele. Isto é ter intentio cordis. Obviamente, também é ter intentio cordis oferecermos nosso trabalho a Deus, o que implica tentar fazê-lo bem; mas, também obviamente, não deixaremos de ter intentio cordis se, conquanto oferecendo perfeitamente a Deus até o mais estafante dos trabalhos e tentando fazê-lo bem, não pudermos por qualquer razão acidental fazê-lo bem. O inferno só não está cheio, podemos parafrasear a Chesterton, de “malfazedores”. Ademais − e isto é tão fundamental que merece tratamento à parte –, nem todos os ofícios considerados honestos pelo mundo o são aos olhos de Deus. Será bom aos olhos de Deus gerir bem um banco se por tal gestão muitos perdem casas e bens em razão de hipotecas impagáveis? Será bom aos olhos de Deus ser contador de uma fábrica de quaisquer coisas indecorosas? Será bom aos olhos de Deus um médico praticar um aborto legal? Veja-se que não se fala aqui de algo impossível; obviamente, os católicos que vivem no mundo de hoje, tão universalmente apóstata e tão universalmente abjeto, só muito raramente temos condições mais perfeitas de escapar a seus tentáculos. Como ter, então, neste mundo a referida e requerida intentio cordis? Antes de tudo, tentando até o último de nossos dias livrar-nos, da melhor maneira possível, de tais tentáculos, tendo sempre na mente e no coração que devemos vigiar sem interrupção, porque nossos inimigos – o demônio, a carne e o mundo − andam ao nosso redor, como um leão que ruge, procurando a quem devorar (cf. I Ped., V, 8). Depois, enquanto ou se não conseguirmos absolutamente livrar-nos deles, pedindo permanente perdão a Deus pelo que somos obrigados a fazer, como aquele violinista católico que, na Alemanha do século XIX, tocava na orquestra de costas para o público a fim de não ser tomado pela vaidade tão própria dos artistas daqueles tempos românticos, demasiado românticos... Mas, por fim, como no caso do médico com respeito a um aborto legal e como em tantos e tantos outros casos, renunciando se preciso for, em nome de Deus, ao nosso próprio ganha-pão e ofício, e entregando-nos totalmente em suas mãos: ou seja, sujeitando-nos ao suave jugo de Cristo com a certeza de que são bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça − justiça de Deus −, porque deles é o reino dos céus (cf. Mat., V, 10).
Ademais, como diz Cassiano e pressupunha São Bento em sua Regra, a intentio cordis implica a aceitação amorosa “do que quer que se receba em si”; implica o amor à cruz. Não disse Cristo que, “se algum quiser vir empós de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me” (Mat., XVI, 24), e que “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, e ninguém vai ao Pai senão por Mim” (Jo., XIV, 6)?
Há porém algo mais, e que esquecem tantos os defensores da tese da santificação pelo bem-fazer os ofícios do mundo quanto os defensores do ser do agrado de Deus o bem-fazer naturalmente, por exemplo, uma obra de arte:[3] pela intentio cordis, “é absorvido o sentido da mente e reformado de sua situação terrena à semelhança espiritual e angélica” (Cassiano, ibid.); ou seja, o sentido da mente de quem tem a intentio cordis está ordenado ao Fim Último, a Deus, à semelhança possível dos anjos glorificados e dos homens bem-aventurados, estes hoje como almas separadas do corpo e amanhã como unidades restauradas de alma e corpo gloriosos. A intentio cordis pressupõe uma reforma do homem antigo, um renascer em Cristo, conforme ao qual todos os fins terrenos se ordenem, como meios, ao Fim Último. Pressupõe, portanto, que o humano natural se subordine e ordene ao sobrenatural da Graça, e que devemos, como dizia São Paulo, possuir as coisas deste mundo como se não as possuíssemos, desfrutá-las como se não as desfrutássemos, e, como podemos consequentemente concluir, fazê-las sempre absolutamente em ordem ao Fim Último. O efetivamente subordinado deve ordenar-se essencialmente ao subordinante. Agrada a Deus o bem cozinhar um prato demasiado requintado? Para sabê-lo, basta ler as espécies de gula que enumera São Gregório Magno no livro XXX, C. 18, n. 60, de seus Livros Morais: “præpopere laute nimis ardenter studiose”, ou seja, “fora de tempo, com ostentação, com excesso, com voracidade, com excessivo esmero”.[4] Agrada a Deus o esculpir uma estátua de perfeito nu sensual? Agrada a Deus o compor uma complexa e musicalmente perfeita sinfonia que exacerbe as paixões do ouvinte? Agrada a Deus o descrever perfeitamente numa peça teatral quão baixo pode descer o homem em sua vileza sem mostrá-lo como condenável e sem apresentar o contraponto da Penitência e da Esperança cristãs? Agrada a Deus o filmar e exibir um beijo ardente ou adúltero? Agrada a Deus escrever os mais perfeitos versos em honra de Satã? Como lhe poderiam agradar se tal estátua, tal sinfonia, tal peça teatral, tal filme e tais versos, por mais artisticamente perfeitos que sejam, são em si mesmos pecaminosos e tendem a levar o próximo a pecar de algum modo?
Como diz Santo Tomás na Suma Teológica (I, q. 1, a. 6, corpus), “entre as ciências práticas, a mais excelente é a que está ordenada a um fim mais alto, como acontece com a política [ou arte civil] com respeito à arte militar: pois o bem do exército está ordenado ao bem da cidade [e assim como acontece com a política com relação à arte musical, como o demonstram Platão na República e o Filósofo na Política]. Ora, o fim desta doutrina [a Sacra Teologia], enquanto prática, é a bem-aventurança eterna, à qual se ordenam todos os outros fins das ciências práticas [ou seja, da política, da arte militar, da arte musical, da arte arquitetônica, etc.]. Portanto, é claro que por qualquer ângulo a ciência sagrada é a mais excelente”. Pergunta-se: o fim da arte musical de um Wagner, o fim da arte teatral de um Nelson Rodrigues, o fim da arte arquitetônica de um Niemayer se ordenam à bem-aventurança eterna, ou antes “desordenam” dela? Mas então qualquer obra de arte que não seja estritamente católica não tem nenhuma importância e é nefasta para a vida do católico? Não, porque, por exemplo, algumas formas de arte greco-romanas eram, digamos, “batizáveis”, pois Deus mesmo, mediante sua Providência, preparara a cultura greco-romana como carne apta para receber o espírito do cristianismo; ou também porque algumas obras de arte, como muitos quadros de Rembrandt, são como que continuidades culturais ou últimos suspiros católicos em ambientes já não católicos; ou ainda, por fim, porque certas obras, mesmo sem ser estritamente católicas, não contradizem porém a ordem ao Fim último do homem, senão que até contribuem de alguma maneira para tal (por exemplo, e como diria Johann Sebastian Bach, recreando a alma dentro de justos limites). Sem dúvida alguma, porém, a melhor arte é a resultante dos que têm não só grande talento mas verdadeira intentio cordis, ou dos que, também dotados de grande talento, ao menos seguem os cânones daqueles: a arte de São Gregório Magno, a de Palestrina, a de Anton Bruckner, grandíssima parte da de Arvo Pärt, parte da de Bach; a arte de Michelino da Besozzo, a de Gentile da Fabriano, a de Fra Angelico, a de Francisco de Zurbarán, a de Augusto Ferrer-Dalmau; a arte de Lorenzo Ghiberti, a de Aleijadinho, parte da de Michelangelo; a arte dos anônimos arquitetos góticos, a de João de Castilho, a de Fernando de Casas Novoa; a arte de Gil Vicente, a de Chesterton, boa parte da de Lope de Vega; parte da arte de Robert Bresson, parte da de Andrei Tarkovski; etc.
Sim, porque para tudo numa vida ordenada a Deus com intentio cordis vale o que diz São Tiago (I, 22): “Sede realizadores da palavra e não apenas ouvintes”. E ter intentio cordis, fazer tudo com intentio cordis, é adquirir como Hieroteu a sabedoria divina não apenas estudando-a, mas padecendo-a até no menor ato da vida.[5]

Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência,
Rio de Janeiro, Brasil
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[1] Em Coll. 9, 6, apud A Regra de São Bento, trad. e notas D. João Evangelista Enout, O.S.B., 3a. ed., Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi, 2008, pp. 185.
[2] Só se pode entender a existência de um liberalismo ou de um humanismo “católicos”, como diz o Padre Álvaro Calderón em Prometeo o La religión del hombre, ao modo degenerativo de um câncer.
[3] Os que creem ser do agrado de Deus o mero bem fazer naturalmente, por exemplo, uma obra de arte não necessariamente se consideram, eles mesmos, liberais; mas com esta tese caminham perigosamente à beira do precipício do humanismo.
[4] PL 76, 556-557, apud Santo Tomás de Aquino, De Malo, q. 14, a. 3.
[5] Cf. Pseudo-Dionísio, De Divinis Nominibus, apud Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 1, a. 6, ad 3: “Hierotheus doctus est non solum discens, sed et patiens divina”.